Numa paragem de autocarro, uma drag queen entoa uma música do Variações, enquanto fuma um cigarro. Um caixote do lixo de plástico laranja está cheio e nas paredes estão centenas de anúncios em papel, de festas a comunicados políticos. Nas traseiras da paragem há um graffiti de má qualidade onde se pode ler: “se as putas fossem flores, esta rua era um jardim”. Chove, é de madrugada. No banco, há uma resma de jornais “Tal & Qual”, à espera para serem distribuídos. Na capa, o título: “Sida: vírus mortal aterroriza homossexuais portugueses”.
O ano é 1983. Mil novecentos e oitenta e três é também o nome da exposição de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira que está a decorrer na galeria “Rialto 6”. Até Abril, vários artistas darão corpo a diferentes performances que acontecem no espaço da exposição: Symone de la Dragma, Jenny Larue, João Grosso e Guilherme Leal.
O ano não é um acaso. É o ano em que o tal “cancro gay” terá chegado a Portugal – quando se fez o primeiro diagnóstico. No ano seguinte morria António Variações. A homossexualidade tinha sido despenalizada em 1982. Passavam 9 anos da revolução que, segundo as palavras do general Galvão de Melo, “não se fez para prostitutas e homossexuais”.
Em Lisboa surgiam os primeiros espaços de “liberdade”, o bairro do Príncipe Real e as suas zonas de diversão noturna. Profissionais da arte, da moda, jornalistas, escritores cruzavam-se na noite, organizavam-se espetáculos de “transformismo” e, neste meio protegido e ao mesmo tempo privilegiado, falava-se de direitos e de conquistas, de igualdade, no fundo. Muitos destes e destas morreram poucos anos depois. Muitos e muitas. Os que sobreviveram, tiveram o caminho das pedras pela frente: uma doença fatal, tratamentos que nunca mais chegavam e a boa e velha discriminação!
A sida foi uma guerra e os corpos das pessoas LGBTI+ foram o seu campo de batalha. De um lado gritava-se “castigo de deus”, apoiado pelo silêncio cúmplice de Ronald Reagan (silêncio = morte, lembram-se?), pelas leis discriminatórias que Thatcher aprovava no Reino Unido (tão parecidas às de Putin!) ou pelas palavras do papa João Paulo II contra o preservativo. A história julgou-os a todos, mas não evitou as mortes aos milhões. Do outro lado, a “escumalha”, os “desviados”, os “pecadores”. Gente que queria conquistar o direito a existir mas a quem a pandemia retirou o direito de sobreviver.
Passaram 40 anos e o VIH passou a condição crónica. Ou melhor, estes 40 anos não passaram, eles conquistaram-se! Lutou-se pelo direito ao tratamento, ao acesso a medicação, pela modificação das regras da indústria farmacêutica e da forma como testavam novas substâncias, pela obrigação das autoridades de saúde ouvirem e consultarem as pessoas para as quais definiam políticas. Muitas conquistas e muitas mortes. E, desde a primeira hora, lutou-se contra a discriminação, que não é mais do que o direito a existir!
E é sobre o direito a existir que versa o projeto: “Os nomes estão todos do lado de dentro, 2022”, também do João Pedro Vale e do Nuno Alexandre Ferreira. Pedras da calçada gravadas a laser, com nomes de trans, trabalhadoras do sexo da zona do Conde Redondo e ativistas. Pedras dispostas ao longo dos passeios daquela rua que representam corpos que povoaram aquela zona da cidade durante décadas. Que também são luta e resistência pelo direito a existir e que construíram estes 40 anos. Porque se calhar o “caminho das pedras” é isso mesmo: o caminho que estes corpos percorreram ao longo dos 40 anos, que estes artistas querem “guardar”, gravando-as na pedra, e que nos permitem hoje sonhar em “construir um castelo”, um futuro um pouco mais respirável do que aquele que elas próprias encontraram, ao longo desse caminho.
Artigo de Bruno Maia