David Harvey inicia o seu capítulo sobre “A Geopolítica do Capitalismo” em “Crónicas Anticapitalistas” com a ressalva de que “vindo de uma formação em Geografia, sinto que preciso sempre de inserir alguma Geografia na análise, de alguma forma e algures”. Aquilo que poderia ser interpretado como uma obrigação disciplinar superficial esconde a importância do seu contributo intelectual. O seu trabalho é uma das principais razões pelas quais estas relações entre Geografia e geopolítica do capital são hoje consideradas problemáticas fundamentais a abordar e que têm importantes implicações políticas.
ANTICAPITALISMO
David Harvey: “Precisamos de reivindicar a ideia de liberdade para o socialismo”
porDavid Harvey
Com origem nos podcasts bimestrais apresentados por Harvey, “Crónicas Anticapitalistas” foi publicado em 2020 na série Red Letter da Pluto Press, que procura criar “recursos para a educação popular em momentos operários e socialistas”. Este estilo de intervenção reflete o papel exemplar de Harvey como professor e interlocutor das ideias de Marx, bem como o seu compromisso de longa data com o envolvimento político e a pedagogia de esquerda. Ao longo do livro, Harvey providencia comentários perspicazes sobre as diferentes conjunturas políticas em que leu e ensinou Marx, procurando aplicar as suas ideias. Estas reflexões fornecem pontos de partida úteis para considerarmos o que está em causa no ensino de Marx em diferentes conjunturas, que aqui discuto.
Harvey recorda que lecionou pela primeira vez o seu já famoso curso sobre “O Capital” de Marx em 1970, quando acabara de chegar à Universidade Johns Hopkins, em Baltimore. A influência da cidade e da sua dinâmica social no seu pensamento emerge no capítulo sobre “Emissões de Dióxido de Carbono e Alterações Climáticas”, onde recorda a experiência da desconexão entre a branquitude dos primeiros movimentos ambientalistas e a população afro-americana da cidade. Nota que, após participar num evento do Dia da Terra em Baltimore, em 1970, onde havia “uma plateia composta inteiramente por brancos de classe média”, foi ao Baltimore Jazz Club com “apenas alguns brancos dispersos”. Os músicos que ali atuavam declararam, sob “grandes aplausos da plateia”, que “o nosso maior problema ambiental é Richard Nixon”.
Esta história situa o ensino inicial de Marx por Harvey em relação ao contexto pós-1968, no qual a geografia radical (re)emergiu e ganhou forma. A revista de geografia radical Antipode, da qual Harvey seria um dos primeiros colaboradores e apoiantes, por exemplo, foi fundada em 1969 na Universidade de Clark. Era também um contexto em que se estava a tornar mais significativo um envolvimento sério e não doutrinário com as ideias de Marx. Isto era notável, dado o contexto intelectual repressivo da Guerra Fria, que exercia uma pressão considerável e impunha limites tanto ao ensino de Marx como à investigação e aos intelectuais marxistas.
Assim, o historiador socialista E.P. Thompson foi “quase uma vítima do início da Guerra Fria na academia”, obtendo um cargo na Associação Educativa dos Trabalhadores (WEA) pouco antes de ser imposta a proibição dos comunistas, no final da década de 1940 [1]. Thompson defendeu a importância de ensinar numa perspetiva marxista aos seus superiores na organização, argumentando que “os marxistas eram frequentemente acusados de serem parciais quando na prática muitos deles eram 'muito mais cautelosos e menos preconceituosos na sua abordagem' do que muitos historiadores liberais ou conservadores”. [2]
A obra clássica de Thompson, “The Making of the English Working Class” (A Formação da Classe Operária Inglesa), foi decisivamente moldada por este trabalho de educação de adultos, realizado em West Riding of Yorkshire. Entre outras contribuições, Thompson documenta o uso extensivo de espiões pelo Estado para monitorizar os primeiros movimentos e lutas da classe trabalhadora em Inglaterra. Enquanto trabalhava no livro, o próprio Thompson foi alvo de intensa vigilância, como comprovam os arquivos mantidos sobre as suas atividades políticas pela polícia secreta britânica, conhecida nos círculos formais como MI5. Esta vigilância continuaria mesmo após a sua saída do Partido Comunista, na sequência da invasão da Hungria pela URSS em 1956.
Estes arquivos registam as suas interações com figuras anticoloniais como Cheddi Jagan, líder do Partido Popular Progressista da Guiana, que visitou Thompson em Halifax no final da década de 1950. Isto ocorreu depois de o governo britânico ter deposto o governo do PPP, eleito democraticamente, em 1953, depois de este ter implementado modestas reformas de esquerda. Thompson tentou, sem sucesso, persuadir Jagan a escrever para o New Reasoner, precursor parcial da New Left Review, que coeditou com John Saville. Estas ligações enfatizam as relações entre a descolonização, as lutas pelo acesso ao ensino superior e a repressão concertada das ideias de esquerda neste contexto.
Como observou Aijaz Ahmad no Socialist Register em 2004, durante a Guerra Fria, os EUA “propuseram-se sistematicamente a trazer estratos intelectuais chave dos países recém-descolonizados para as suas próprias instituições académicas, em diversos campos das ciências físicas e técnicas, das ciências sociais e humanas, das artes, da diplomacia, da jurisprudência e assim por diante [3]”. Este processo, no entanto, foi contestado de formas importantes. Assim, ao escrever sobre a criação dos Estudos Étnicos/Estudos Negros nos EUA, em 1967-1968, Robin D.G. Kelley afirma que “este projeto político e intelectual foi concebido não apenas fora da universidade, mas em oposição a uma cultura universitária com profundos laços com o poder corporativo e militar.” [4]
Um ponto de referência fundamental que marca as raízes autoritárias do neoliberalismo em “Crónicas Anticapitalistas” é a deposição do governo da Unidade Popular no Chile. Ao discutir o “economista Paulo Guedes”, assessor financeiro de Jair Bolsonaro, Harvey chama a atenção para o facto de este ter sido “formado em Chicago”. Estabelece aqui um paralelo histórico, referindo que “foi Chicago que forneceu os Chicago Boys ao General Pinochet após o golpe de 1973 no Chile, no qual o presidente socialista Salvador Allende foi deposto e a economia foi repensada em termos da teoria económica de Chicago”.
O golpe envolveu também uma repressão significativa das vibrantes culturas intelectuais de esquerda formadas durante o período da Unidade Popular. Marian E. Schlotterbeck observa, por exemplo, que entre 1968 e 1973 o Departamento de Sociologia da Universidade de Concepción se tornou “um centro de renome internacional para o pensamento marxista e a teoria da dependência.”[5] A cultura intelectual foi moldada tanto por intelectuais chilenos como por exilados do Brasil e da Argentina e viria a influenciar a política de partidos de esquerda como o MIR.
Existem aqui paralelos com as atuais tentativas de fechar espaços à dissidência política nos campus universitários – como a deportação de Mahmoud Khalil pelo seu papel na organização de protestos de solidariedade para com a Palestina na Universidade de Columbia. Esta repressão das culturas políticas de esquerda está a ser moldada pela aliança entre a “economia neoliberal” e o “populismo de direita” identificada por Harvey no seu capítulo sobre a viragem autoritária – aliança que se tornou ainda mais enraizada desde a publicação de “Crónicas Anticapitalistas”.
Harvey termina o capítulo sobre “A Geopolítica do Capitalismo” argumentando que “a geopolítica da fixação espacial tem de ser um foco de estudo sério”. No contexto atual, o próprio espaço da universidade tornou-se central nas lutas sobre as relações entre a geopolítica e as estratégias de acumulação. O relatório Weaponising Universities, publicado em 2024 pela Campaign Against the Arms Trade, chama a atenção para a crescente importância do “Complexo Militar-Industrial-Académico” no Ensino Superior do Reino Unido. Embora reconheça que tais ligações não são necessariamente novas, o autor do relatório, Okopi Ajonye, argumenta que “a privatização e a crise de financiamento das universidades estimularam coletivamente a indústria do armamento a subcontratar a I&D às universidades.”[6]
Os laços do “Complexo Militar-Industrial-Académico” com as empresas de armamento, com ligações ao que o Tribunal Penal Internacional definiu como genocídio em Gaza, estão hoje bem documentados. O completo apagamento das universidades em Gaza pelas Forças de Defesa de Israel é sustentado e facilitado pela repressão antidemocrática noutros locais, refletindo as formas como “partidos da extrema-direita aos sociais-democratas tradicionais” se apressaram “a cerrar fileiras em torno do Estado de Israel”. [7] Como defendem Adam Hanieh, Robert Knox e Rafeef Ziadah, “Globalmente, isto envolveu a repressão dos movimentos de protesto, a criminalização do ativismo e uma repressão do discurso pró-Palestina nas universidades e nos espaços públicos”. [8]
Esta conjuntura política repressiva é preocupante para a produção académica de esquerda. Ela sublinha também a necessidade urgente de reproduzir o marxismo e outras correntes críticas, informadas por uma sensibilidade anti-imperialista. Embora a obra de Harvey não ofereça um modelo para tal trabalho, fornece um exemplo formidável de trabalho intelectual empenhado e rigor académico. Além disso, destaca as possibilidades de ensinar Marx como um processo politicamente gerador.
Notas:
[1] Tom Steele, The Emergence of Cultural Studies: Cultural Politics, Adult Education and the English Question London: Lawrence and Wishart, 1997.
[2] Steele The Emergence of Cultural Studies, 150.
[3] Aijaz Ahmad ‘Imperialism of Our Times’ Socialist Register 2014, 55.
[4] Robin D.G. Kelley ‘Over the Rainbow: Third World studies Against the Neoliberal Turn’ in Aziz Choudry and Salim Vally (ed) Reflections on Knowledge, Learning and Social Movements, London, Taylor and Francis, p. 205-6.
[5] Marian E. Schlotterbeck Beyond the Vanguard: Everyday Revolutionaries in Allende’s Chile Oakland: University of California Press, p. 30.
[7] Adam Hanieh, Robert Knox and Rafeef Ziadah Resisting Erasure: Capital, Imperialism and Race in Palestine London, Verso, p. 3.
[8] Adam Hanieh, Robert Knox and Rafeef Ziadah Resisting Erasure: Capital, Imperialism and Race in Palestine London, Verso, p. 3
David Featherstone é professor de Geografia Política na Universidade de Glasgow.
Texto publicado originalmente no blogue da Verso como parte de uma série de artigos sobre os seus livros comemorativa do seu aniversário.
 
   
 
 
   
 
 
 
 
