Quem se atreve a tocar nas rendas da energia?

02 de setembro 2016 - 14:19

O Estado chinês, principal dono da EDP e da REN, encaixa todos os dias mais de meio milhão de euros vindos dos lucros destas empresas. Portugal acumula recordes europeus no preço da eletricidade e nos picos de mortalidade no Inverno. Muitos idosos não podem pagar aquecimento. A energia não é um mercado: um pequeno grupo de empresas privadas tem os seus lucros assegurados por consumidores obrigados a pagar cada vez mais. A maior urgência é social: podemos baixar já as faturas.

porJorge Costa

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António Mexia, António Costa e Eduardo Catroga. Foto Inácio Rosa/Lusa

Sócrates ficou com toda a fama, mas a direita também a merece. Os governos Cavaco, Guterres, Barroso/Portas, Santana/Portas, José Sócrates e Passos/Portas deixaram como herança um sistema elétrico que é um fardo sobre a economia e sobre as pessoas.

Se descascarmos uma fatura elétrica descobrimos com perplexidade que apenas dois terços se destinam a pagar a energia e as infraestruturas em que circula. Um terço do que pagamos destina-se a uns misteriosos Custos de Interesse Económico Geral (CIEG). Estes custos fixos resultam das decisões dos governos quanto à remuneração das empresas elétricas. É aqui que se alojam as gigantescas rendas garantidas à EDP chinesa e às outras multinacionais do setor. De onde vêm estes custos?

Mercado de livre concorrência… com lucros garantidos

Nos anos 90, a União Europeia favoreceu a privatização das empresas públicas de produção e abastecimento de energia, em nome dos grupos capitalistas espanhóis e portugueses interessados no monopólio da energia. Nessa época, para valorizar a EDP, o governo assegurou duas a três décadas de negócio das centrais da empresa, celebrando contratos de aquisição de energia (CAE). Estes CAE garantiam alta rentabilidade por bons anos e tornaram-se na maior parte do valor da própria EDP em privatização: quem comprava a empresa ficava com os ativos físicos e com este negócio garantido. Mais tarde, em nome da liberalização e da “livre concorrência no mercado ibérico de energia”, a Comissão Europeia mandou antecipar o fim dos CAE, mas não impediu que fossem definidas e pagas, de 2007 até 2024, enormes compensações às elétricas, apresentadas como “custos de manutenção do equilíbrio contratual” (CMEC) ainda mais chorudas que os próprios CAE anteriores. Assim nascia um mercado liberalizado…

O peso dos CMEC representou um terço dos lucros da EDP antes de impostos, entre 2009 e 2012

Segundo a Autoridade da Concorrência, o peso dos CMEC representou um terço dos lucros da EDP antes de impostos, entre 2009 e 2012. E nada de substancial mudou depois disso. As centrais com contratos CAE/CMEC atingem hoje taxas de remuneração anual de cerca de 14%, ao nível das PPP mais ruinosas, contas do regulador, a ERSE. Estas rendas - o valor pago por megawatt-hora (MWh) acima do preço médio - representam 370 milhões de euros na fatura dos consumidores em cada ano.

A única tentativa de tocar de forma significativa nestas rendas, consideradas excessivas pela própria troika, aconteceu em 2011 e acabou depressa, no ano seguinte, com a queda do secretário de Estado da Energia, Henrique Gomes, do PSD, obrigado a demitir-se sob a pressão das elétricas.

As renováveis são insustentáveis?

Os opositores ao investimento em energias renováveis têm-se apoiado no grande peso das remunerações que lhe são asseguradas por contrato. Praticamente toda a chamada Produção em Regime Especial (eólica, cogeração, solar, biomassa, minihídrica) tem a sua venda garantida, porque entra primeiro na rede para consumo. Além da venda é também assegurada a estes produtores de renováveis, ao longo dos primeiros 15 a 20 anos, uma tarifa fixa sem concorrência. O objetivo é que rentabilizem o seu investimento inicial. Essa tarifa é mais elevada que o preço médio de venda da eletricidade produzida em barragens ou em centrais a carvão e a gás. O total dessa diferença corresponde, em 2016, a 1250 milhões de euros, cerca de dois terços dos tais Custos de Interesse Económico Geral (CIEG).

Este valor impressionante pode enganar-nos: a taxa de remuneração praticada em média nas eólicas é dois terços da que é paga às centrais CMEC. De resto, estas contas não incluem custos das centrais convencionais, desde logo a despesa pública da sua instalação e desmantelamento.

Portugal tem hoje um desempenho notável na transição energética, sendo um dos países do mundo com maior parte do seu consumo elétrico assegurado por fontes renováveis. Esta evolução tem vantagens que, sendo difíceis de contabilizar, devem ser valorizadas, como o efeito na balança energética e comercial, diminuindo as importações de combustíveis fósseis e tornando possível o aumento das exportações de energia. Isto significa aumentar a soberania energética, resguardando o país das flutuações cíclicas dos preços das matérias-primas e dos combustíveis fósseis, nomeadamente uma eventual escalada dos preços do petróleo.

Mas quem paga a conta deve conhecer exatamente o que está a pagar. De facto, a falta de transparência pode comprometer a confiança e a adesão popular ao prosseguimento de uma estratégia de transição para as renováveis. Basta consultar o relatório e contas de uma das maiores empresas do setor - a EDP Renováveis, com 25% do mercado renovável português - para verificar que a tarifa garantida a esta empresa em Portugal resulta em preços incomparavelmente superiores aos que a mesma empresa pratica noutras geografias (ver gráfico). É assim que, com apenas 7% da sua produção situada em Portugal, a EDP-R obtém aqui 21% dos lucros.

A falta de transparência pode comprometer a adesão popular à transição para as renováveis

Assim, não se compreende que as empresas do setor renovável estejam dispensadas de contribuir para conter a dívida tarifária (que abordarei a seguir), nomeadamente através do pagamento da contribuição extraordinária sobre o setor energético já cobrada às empresas da produção convencional e que deveria ser adaptada e cobrada também às empresas de renováveis.

Além disso, a par do corte das rendas CMEC/CAE nas hídricas e térmicas, deve ser escrutinada a capacidade renovável do país, de modo a permitir corrigir remuneração excessiva em alguns projetos - sem os inviabilizar nem prejudicar novos investimentos em produção limpa. Esse escrutínio deve ser organizado pelo governo junto das dezenas de empresas do setor, que detêm centenas de unidades produtoras com diferentes regimes de tarifa. Estas empresas deverão colaborar, informando sobre os seus custos e remunerações, ou aceitar desde já uma contribuição adicional.

É escusado especular sobre novas transformações no modelo energético sem resolver o problema que o tem tornado insustentável - as rendas e subsídios excessivos que se arrastam e pervertem todo o sistema. Essas remunerações privilegiadas fazem crescer os dividendos pagos ao capital acionista à custa do agravamento das tarifas dos consumidores e da dívida tarifária. Terminar esses privilégios não só melhoraria o rendimento disponível das famílias como permitiria ainda libertar recursos para um modelo sustentável, com mais eficiência energética, mobilidade elétrica e armazenamento da produção intermitente (eólica e solar).

Dívida tarifária, um mal que-veio-por-bem que-veio-por-mal

Como vimos, os erros acumulados pela estratégia de privataria na eletricidade resultaram em custos crescentes para os consumidores de energia. Se esses custos tivessem sido sempre cobrados integralmente nas faturas, teriam implicado aumentos anuais de tarifa ainda maiores que os 3% verificados em média nos últimos anos.

O défice acumula-se numa “dívida tarifária” que a EDP transformou em novo negócio, vendendo-a a fundos internacionais.

Em 2008, invocando preocupações sociais, o governo Sócrates adiou para os anos seguintes a cobrança aos consumidores de uma parte dos valores correspondentes às rendas e subsídios atribuídos às elétricas. Na verdade, em vésperas de eleições, o governo encolhia a fatura e disfarçava o custo de opções erradas, em particular nos CMEC e nas concessões das barragens. Esse défice repetiu-se e foi-se acumulando em bola de neve numa “dívida tarifária” que a EDP pôde transformar num novo negócio, convertendo grande parte da dívida em títulos e vendendo-a a fundos internacionais. Os consumidores, esses continuam a pagar os juros altos (entre 6% e 2%, conforme os anos) pela dívida acumulada, que já vai em 5300 milhões de euros. Liquidar essa dívida e retirar o peso dos seus juros da fatura mensal é um dos objetivos que impõe uma intervenção política urgente contra os gastos supérfluos no sistema.

Pagar porque sim: interruptibilidade e garantia de potência

Gastos supérfluos permanecem também sob o pretexto da segurança do abastecimento, na disponibilidade de recursos para necessidades excecionais. Do lado da oferta de energia, trata-se da famosa “garantia de potência” oferecida por centrais excedentárias, paradas. A EDP e a Endesa são remuneradas para terem estas centrais em “estado de prontidão” e abastecerem a rede num caso de necessidade... que não se verifica. Esta disponibilidade é paga a peso de ouro, 33 milhões de euros por ano nas faturas. Para baixar este custo, o número de contratos deste tipo deve em breve ser reduzido e as centrais definidas por leilão e não por ajuste direto como até agora.

Mas, como se não bastasse, os consumidores pagam ainda outra “disponibilidade”, esta do lado da procura. Cerca de meia centena de unidades industriais consumidoras intensivas de energia são remuneradas generosamente por estarem prontas para uma redução de consumo em caso de necessidade da rede. Este “serviço” é supérfluo em grande medida, pois a segurança do abastecimento já está assegurada pela capacidade produtora excedentária e ainda pelas centrais que dão garantia de potência. E a REN confirma que o “serviço de interruptibilidade” nunca foi ativado e prestado por qualquer das empresas contratadas. No entanto, em quatro anos, duplicou o valor total deste subsídio, que já atingiu os 110 milhões euros só em 2015.

Sem prejudicar a viabilidade da Siderurgia Nacional - que tem nesta remuneração um forte apoio aos seus custos energéticos excecionais (2,4% do consumo elétrico do país) -, é possível redesenhar radicalmente este regime e retirar das faturas até 60 milhões de euros anuais de subsídio injustificado. Tanto mais quanto é certo que grande parte das unidades hoje contratadas não só não são chamadas a qualquer redução de consumo como, se o fossem, não a poderiam fazer, visto que não consomem energia da rede. É o caso das celuloses, por exemplo, que produzem em cogeração e são autosuficientes em eletricidade.

Na interruptibilidade como na “garantia de potência” escondem-se subsídios injustificados e abusivos aos grandes grupos elétricos e industriais.

Energia privada, concentração de riqueza e de poder

Constituído a partir de investimentos públicos, pagos pelos impostos ao longo de décadas, o sistema elétrico tornou-se um orçamento paralelo na casa dos 6500 milhões de euros anuais. E é também um dispositivo de transferência de riqueza social. Se a exploração se opera antes de mais no mundo laboral, ela ocorre também em muitas outras esferas, onde os trabalhadores são espoliados a favor do capital como contribuintes, devedores ou consumidores. É nesta última condição que milhões de trabalhadores portugueses passaram a ver uma fatia cada vez maior dos seus rendimentos capturada pelos grupos da energia privatizada.

A EDP, em particular, tornou-se uma peça central do modelo rentista, número um na distribuição de dividendos aos acionistas, com destaque, até há poucos anos, para as grandes elétricas espanholas, a banca portuguesa, o grupo Mello. A entrada do capital estatal chinês na EDP e na REN mudou o comando e terminou de vez com a entrega de dividendos ao Estado. De resto, o valor que o Estado encaixou na privatização corresponde a pouco mais de um trimestre de juros da dívida pública e, pelo lado chinês, será recuperado em poucos anos de dividendos. Nas palavras do presidente da China Three Gorges, Cao Guanjing, “a EDP foi barata” (Dinheiro Vivo, 30.12.2011).

Os anos da crise económica foram atravessados sem sobressaltos pelo oligopólio energético. Enquanto os bancos se afundavam em sucessivos resgates e crises, o negócio da energia pouco sofria, passando a representar quase metade do valor bolsista do PSI-20.

Ao longo de todo este percurso, do início da privatização até ao domínio chinês, a porta giratória com a política não parou de rodar. O ex-ministro das finanças Pina Moura presidiu à Iberdrola Portugal, a Endesa tem sido representada por um secretário de Estado da Energia dos tempos de Cavaco Silva e mesmo António Mexia, presidente executivo da EDP, não prescindiu de uma passagem pelo governo Santana Lopes, apesar das suas já vastas ligações políticas. Tem hoje ao seu lado, como presidente não executivo, o ex-ministro das Finanças Eduardo Catroga, ligado ao grupo Mello e representante do PSD nas negociações do memorando com a troika, onde ficou decidida a privatização final da EDP.

Nos anos da privatização, mais de vinte membros de governos passaram por órgãos sociais da EDP.

Estes não são casos isolados. Só desde os anos 90, mais de duas dezenas de antigos membros de governos portugueses passaram por órgãos sociais da EDP. Conhecer esta promiscuidade ajuda-nos certamente a compreender a força que permite manter no setor elétrico uma pilhagem tão sistemática e permanente contra a maioria da população. Só ela pode explicar escândalos como o das concessões das barragens, em que o Estado terá sido lesado em quase 600 milhões de euros, ou o da atribuição de uma licença perpétua para a central térmica de Sines, cuja licença de produção deveria expirar em 2017, sem qualquer contrapartida pela parte da EDP.

A dependência que todos temos do acesso à energia torna-nos vulneráveis ao poder do oligopólio. É nessa dependência que assenta a transferência de rendimento através do setor elétrico, uma estratégia forte que contribui para a robustez do regime liberal de concentração da riqueza. É por isso tão central nas orientações da União Europeia, na composição da elite política, nas crónicas mediáticas da “livre concorrência”. Esta é a estratégia dos grupos de capital, estatais ou privados, globais, que impõem a sua lei.

Jorge Costa
Sobre o/a autor(a)

Jorge Costa

Dirigente do Bloco de Esquerda. Jornalista.