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A vigília na Capela do Rato, há 48 anos

A história já foi contada: há 48 anos, a 30 de dezembro de 1972, um grupo de cristãos, pela voz de Maria da Conceição Moita, comunicou à sua comunidade, no fim da missa das 19h30, que ficaria em vigília na capela por 48 horas, para discutirem a paz. Por Francisco Louçã.
Foto publicada no blogue Não Apaguem a Memória.

Não era a primeira iniciativa deste tipo. Uns anos antes, a 1 de janeiro de 1969, alguns dos organizadores da ocupação da Capela do Rato já tinham organizado uma reunião na Igreja de São Domingos. Mas, desta vez, a acção envolveu muito mais gente e paralisou a resposta da ditadura. Ao longo dessa noite e do dia seguinte, centenas de pessoas passaram pela Capela, participando numa assembleia que tinha como tema a guerra colonial.

Os promotores da iniciativa, como Nuno Teotónio Pereira, Luís Moita, Jorge Wemans e outros, publicavam clandestinamente o Boletim Anti-Colonial e, estimulados pela mudança de atitude do Vaticano em relação aos movimentos de libertação que combatiam pela independência nas colónias portuguesas, entenderam que era necessário ampliar o protesto contra a continuação da guerra. Tiveram a cooperação de várias organizações: a LCI, que se ocupou dos panfletos que divulgariam a ocupação entre a população (impressos por José Manuel Boavida, António Gomes e Alfredo Frade) e o PRP (Isabel do Carmo, Carlos Antunes), que os distribuiu. E o apoio de muitos jovens que sentiam a guerra como a expressão mais crua da ditadura.

Dois anos mais tarde, já deposto pela revolução e no seu exílio do Rio de Janeiro, Marcello Caetano contaria a sua versão dos acontecimentos: “na noite de 31 de Dezembro de 72 para 1 de Janeiro de 73, a pretexto da comemoração do dia da Paz universal, instalaram-se dentro dela [Capela do Rato] uns tantos senhores para protestar contra a 'guerra colonial'. Durante horas seguidas, no meio de cartazes publicitários alusivos aos fins da reunião, os contestatários, entre os quais havia católicos militantes, antigos católicos e outros que não eram, que nunca tinham sido, nem faziam tenção de ser católicos, iam entremeando as missas e as rezas com discursos e objurgatórias contra a defesa do Ultramar e distribuíam panfletos nesse sentido. As autoridades eclesiásticas nada fizeram para pôr termo ao escândalo. A autoridade civil teve de intervir. Desde que o governo sustentava a defesa do Ultramar, e a essa política era forçado pela Constituição, a ela era incitado pelos eleitores, nela era apoiado pela opinião, claro que não podia consentir em actos de propaganda terrorista, como esses. A polícia entrou na capela e cordatamente convidou as pessoas presentes a sair. Foram identificadas e algumas, por motivos vários, ficaram detidas, aliás por pouco tempo. Verificando-se que entre os presentes havia uma dúzia de funcionários públicos, foi o assunto levado a Conselho de Ministros onde, depois de curta discussão, por unanimidade se deliberou aplicar-lhes a lei que permitia demitir os funcionários que não dessem garantias de cooperar nos fins superiores do Estado” (Depoimento, Rio de Janeiro: Record, pg. 84). Mas há muita fantasia nesta descrição. Na verdade, a ditadura hesitou quanto à forma da resposta e, quando ao fim da tarde de dia 31 de dezembro o capitão Maltês e a sua unidade policial cercou a Capela, entrou e deteve uma centena de pessoas, já o governo sofrera a derrota marcada por uma simbólica assembleia de protesto no centro da capital.

Os detidos foram levados para a esquadra da polícia no mesmo Largo do Rato e, desses, 16 foram transferidos para Caxias: Moita (que abandonara o sacerdócio e era professor universitário), Teotónio Pereira (um dos mais brilhantes arquitetos portugueses), Wemans (viria a ser diretor da RTP2), Manuel Coelho (que viria a ser presidente da Câmara de Sines), Francisco Pereira de Moura (professor de economia e mais tarde ministro do primeiro governo pós-Abril) e outros, incluindo três estudantes liceais. No dia 1 de janeiro, os padres António Janela e Armindo Garcia foram conduzidos para interrogatório (o responsável pela Capela do Rato, o padre Alberto Neto, estava doente, embora acompanhasse o protesto) e só foram soltos quando o cardeal foi à polícia. Nesse mesmo dia, vários advogados, entre os quais Francisco de Sousa Tavares, Francisco Salgado Zenha, Jorge Sampaio e José Vera Jardim apresentaram-se para defender os detidos.

Sabe-se que estas prisões e a posterior expulsão de Pereira de Moura, o mais destacado economista português, da universidade, também provocaram uma onda de protesto internacional. Vários Prémios Nobel intercederam por Pereira de Moura e o ministro dos negócios estrangeiros, Rui Patrício, pediu aos seus colegas a libertação dos presos, para evitar mais uma campanha contra a ditadura. Não foi ouvido e, excepto os estudantes que seriam libertados poucos dias depois, contra o pagamento de uma caução, alguns dos detidos foram torturados e ficaram presos a aguardar julgamento.

As divisões acentuaram-se entre os partidários da ditadura. Os deputados da Ala Liberal, que tinham sido eleitos pelo partido da ditadura na promessa e expectativa de alguma abertura, levaram o tema ao plenário de S. Bento. Foi sobretudo o deputado Miller Guerra quem se levantou para condenar as prisões e as atas da sessão de 23 de janeiro reproduzem um seu longo debate com Casal-Ribeiro, um dos tenores da ditadura. Ia a conversa adiantada, e Casal-Ribeiro pergunta:

O Sr. Casal-Ribeiro: – Eu estava a perguntar a V. Ex.ª se acha bem e se concorda que na Igreja, ou em qualquer outro sítio, se discutisse ou se discuta a legitimidade da presença de Portugal no Ultramar.

O Orador (Miller Guerra): – Ora aí está uma pergunta objetiva e concreta e a que eu respondo também objetiva e concretamente: Acho, sim senhor. Não só na Igreja, como em qualquer outra parte.”

Uns dias depois, Sá Carneiro renunciou ao mandato de deputado, e o mesmo faria Miller Guerra a 6 de fevereiro. Um ano e poucos meses depois, a ditadura seria derrubada pela revolução de Abril.

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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