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Teletrabalho fez aumentar o trabalho não pago das mulheres

Especialistas dizem que o impacto do teletrabalho está a aumentar a carga das mulheres e leva a situações de esgotamento. A deputada Isabel Pires pensa que há que “assegurar que as desigualdades de género não se acentuam a reboque de uma ilusão de modernidade”.
Mulher em teletrabalho. Foto de Ecole polytechnique/Flickr.
Mulher em teletrabalho. Foto de Ecole polytechnique/Flickr.

Mesmo depois do desconfinamento, o teletrabalho parece ter vindo para ficar em muitas profissões. Um recente inquérito às condições dessa modalidade de trabalho em Portugal, realizado pela Escola Nacional de Saúde Pública mostrava a perceção de alguns dos trabalhadores sobre uma realidade feita de falta de apoio das empresas, de dificuldade de conciliar de trabalho e vida pessoal, de horas de trabalho em demasia e de dificuldade em desligar, de problemas de saúde devido a equipamentos não preparados para o uso que deles passa a ser feito.

Um outro inquérito da Universidade de Sussex, citado pelo jornal Guardian, a partir da experiência britânica, focou-se num aspeto mais específico, os cuidados com as crianças, concluindo que a desigualdade na partilha de tarefas parentais piorou durante o período do confinamento. Se antes eram 27% as mulheres que respondiam ser responsáveis por mais de 90% dos cuidados infantis, passaram a ser 45%. 70% responderam ser completamente ou maioritariamente responsáveis pelo acompanhamento escolar. 67% das mulheres que mantiveram compromissos de trabalho descreveram-se como o progenitor “padrão”. E 73% das mulheres em teletrabalho e com filhos no primeiro ciclo disse que trabalhar a partir de casa era “difícil” ou “muito difícil”. Para além disto, as mulheres questionadas revelaram ser dominantes em sete de oito categorias de trabalho doméstico.

Alison Lacey, investigadora da Escola de Psicologia daquela universidade, é taxativa: “a sociedade regrediu para uma forma de vida dos anos 1950, o que vai ter consequências sérias”.

Não é só uma questão de preconceitos enraizados, explica Lacey: como a diferença salarial entre género ainda existe, e até aumentou durante este período, muitas vezes a prioridade familiar é a proteção do trabalho do homem, o que secundariza o da mulher e leva à escolha de que seja ela a cuidar das crianças. O “malabarismo” necessário para fazer as duas coisas leva a um sentimento de esgotamento: “ouvimos mulheres que acordam às cinco da manhã, trabalham até às nove, depois tomam conta das crianças e assistem as aprendizagens escolares e voltam a fazer mais trabalho a partir da tarde”, revela.

Trabalho não pago aumentou, as mulheres assumem-no

Em declarações citadas pelo jornal Nius Diario, a socióloga María Ángeles Durán confirma estes problemas a partir da sua análise da sociedade espanhola, atacando a tese da conciliação fácil entre teletrabalho e vida pessoal. Para ela, “teletrabalhar não é conciliar, é somar dois trabalhos”, o que “pode ser um remendo” mas “não é uma solução a médio prazo”. Por outro lado, no confinamento e no teletrabalho, “abusou-se” dos “imensos recursos dos nossos lares” e “há muito cansaço e esgotamento, o tema das crianças não foi resolvido”.

Portanto, a “vantagem enorme” do teletrabalho, “a poupança nos tempos de transporte” não compensa os “muitos inconvenientes” de que dá alguns exemplos: a transição de “todos os custos do espaço de trabalho para casa”, onde não há condições de trabalho; nalguns casos conduz à desregulação de horários de trabalho porque “pode ser uma vantagem poder fazer um trabalho às quatro da madrugada ou a qualquer hora mas isso gera mais stress”; a ausência do “ambiente” e da socialização própria do lugar de trabalho.

Esta socióloga realça igualmente o diferente impacto de género do teletrabalho: “o trabalho não pago conseguiu diminuir o impacto negativo da crise. E isso repercutiu-se sobretudo nas mulheres”. Será portanto necessário estar mais atento ao trabalho não pago e “pensamos que o trabalho nas casas, como o voluntariado, é algo gratuito e inesgotável. Mas são recursos limitados e custam muito esforço a quem mais o realiza.”

Teletrabalho em Portugal, entre o deslumbramento institucional, a desilusão e o esgotamento

Olhando para a sociedade portuguesa, a professora do ISEG, Sara Falcão Casaca, reitera as quesões de desigualdade de género. Em dois artigos no Público, o primeiro intitulado (Des)ilusões: teletrabalho, qualidade de vida e igualdade de género e o segundo Deslumbramento com o teletrabalho? A agenda para a igualdade entre mulheres e homens determinaria mais ponderação…, a socióloga portuguesa aborda a questão do impacto de género do teletrabalho.

No primeiro, a partir de um estudo realizado em 2004 começa por também destacar “as assimetrias nas condições e nos meios para que o trabalho possa ser realizado a partir de casa”. Analisa igualmente o mito da “autonomia” proporcionada supostamente pelo teletrabalho: “o controlo sobre o tempo das pessoas em teletrabalho pode ser bastante exíguo”, uma questão que se coloca “fundamentalmente no caso das mulheres, cuja autonomia era particularmente reduzida pelos vários constrangimentos familiares e domésticos com que em geral se deparavam”.

Este estudo, realizado ainda antes da disseminação do teletrabalho devido ao confinamento em tempo de coronavírus, mostrava também que a opção por esta modalidade de trabalho era justificada de formas diferentes: por elas pela flexibilidade na gestão do tempo “de forma a atender às responsabilidades familiares e profissionais”, por eles pela “possibilidade de aumentar a concentração, a eficiência e a produtividade”.

Os problemas no teletrabalho, encontrados nos outros países, encontram-se assim igualmente em Portugal, nas palavras de Casaca. Muitas “teletrabalhadoras-mães” dizem trabalhar à noite depois das crianças estarem a dormir, o desgaste intensifica-se porque se tem de jogar com o espaço, não havendo em muitos casos uma “divisão da casa exclusivamente dedicada ao exercício da atividade profissional” e com o tempo próprio das crianças, aumenta o “isolamento social”.

Teletrabalho em tempos de pandemia

António Brandão Moniz

A investigadora garante que “muitos estudos atuais apontam no mesmo sentido, ajudando a desmistificar as ilusões relativamente ao teletrabalho”. Cita um, da CoLABOR, Trabalho e Desigualdades no Grande Confinamento, que mostrava que as mulheres em teletrabalho relatavam mais dificuldades na gestão dos tempos.

Na mesma linha, o segundo artigo da autora pede “ponderação” face ao “deslumbramento com o teletrabalho”. Tal recomendação surge a propósito da propalada intenção governamental de passar a ter em teletrabalho pelo menos 25% dos funcionários públicos.

A socióloga alerta que “está ainda por realizar um estudo que, a propósito destes temas, envolva especificamente as trabalhadoras e os trabalhadores da Administração Pública”. E que era preciso fazer um diagnóstico atualizado e “cruzá-lo com o conhecimento existente, envolvendo especialistas, sindicatos e organizações da sociedade civil num debate público amplo e devidamente informado”.

Para ela é difícil, “a partir dos resultados das investigações sobre as experiências do teletrabalho, sustentar uma visão monolítica e determinista”. Há benefícios e riscos mas “apenas as “situações não permanentes de teletrabalho/trabalho remoto – e que envolvem, portanto, alternância com trabalho presencial – estão associadas a algum equilíbrio entre riscos e benefícios”.

Há que assegurar que as desigualdades de género não se acentuam a reboque de uma ilusão de modernidade

A deputada Isabel Pires insiste que falta regulação e sobram abusos laborais: “no nosso país (tal como noutros ainda) o teletrabalho tem uma regulamentação mínima, o que tem levado a situações de abuso e de uma enorme dificuldade de conciliar tempo de trabalho e tempo de descanso, vida profissional e vida familiar”.

Para ela, “o cenário é ainda mais preocupante quando olhamos para os impactos de género”. Ainda antes da pandemia, “todos os estudos demonstravam que eram já as mulheres que suportavam mais horas em jornada dupla de trabalho, em modelo de teletrabalho (para aquelas que o conseguiram)”. Este peso que recai sobre as mulheres tem agora “impactos ainda mais negativos”, avalia.

Portanto, a deputada pensa que é precisa “uma reflexão rápida mas aprofundada para evitar os abusos de horários de trabalho que não se respeitem e pressão psicológica sobre quem trabalha para a disponibilidade permanente” mas também há que “assegurar que as desigualdades de género não se acentuam a reboque de uma ilusão de modernidade”.

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