You are here

O Iraque que o Papa Francisco vai encontrar

Francisco visita um país onde milícias se misturam com revolta social, com desemprego e pobreza crescentes e os problemas da pandemia.  Pretende encorajar os cristãos que fugiram a voltar. Artigo de José Manuel Rosendo publicado em meu Mundo minha Aldeia.
Catedral da Imaculada Conceição, em Qaraqosh, Novembro de 2016, já depois da expulsão da organização Estado Islâmico. Foto de José Manuel Rosendo publicada no seu blogue.
Catedral da Imaculada Conceição, em Qaraqosh, Novembro de 2016, já depois da expulsão da organização Estado Islâmico. Foto de José Manuel Rosendo publicada no seu blogue.

Podemos dizer que a visita do Papa ao Iraque, anunciada para março de 2021, será fortemente vigiada e segura, mas é de sublinhar a coragem de Francisco. É o primeiro Papa a visitar o Iraque, depois de João Paulo II ter revelado essa intenção, em 1999, mas as negociações com Saddam Husseín não chegaram a bom porto.

A visita do Papa Francisco tem, obviamente, a carga simbólica da visita de um líder católico a um país onde o Califado da organização Estado Islâmico se instalou e foi derrotado, sendo que esse Califado nada teve a ver com o Islão ou, de outra forma, foi obra de uma minoria criminosa e extremista, que apenas usou a religião. E é também uma visita a um país onde, segundo a ONG Hammourabi, vivem actualmente entre 300.000 a 400.000 cristãos, quando em 2003, antes da invasão, viviam 1.500.000. Muitos fugiram por causa da guerra civil, muitos outros por causa do Estado Islâmico.

Um dos objectivos assumidos pelo Papa é precisamente encorajar o regresso dos cristãos que fugiram do Iraque. Muitos sofreram o suficiente para temerem o regresso e o Iraque ainda vive uma enorme instabilidade. Muitos cristãos morreram durante a presença da organização Estado Islâmico. Houve cidades e templos quase totalmente destruídos.

Um país à espera de mudança

O Iraque regista neste momento a presença de várias milícias, algumas delas com ligações ao Irão, outras xiitas mais nacionalistas e ainda outras que são resquícios do Estado Islâmico. Há também uma revolta social e política que tem varrido o Iraque há já mais de um ano, embora com predominância no Sul do país. Aumentou o desemprego e a pobreza, os recursos do Estado caíram com a queda do preço do petróleo, trabalhadores do Estado e reformados chegam ao fim do mês sem salário ou reforma. A Unicef e o Banco Mundial dizem que a taxa de pobreza saltou de 20% para 31,7%. A estimativa peca por defeito.

As manifestações têm-se sucedido desde Outubro de 2019 – cerca de 600 mortos e 30.000 feridos, segundo a AFP – e o campo político apresenta-se muito dividido, incluindo fortes divisões entre xiitas, num país marcado pelo clientelismo e em que os sucessivos governos vivem com a pressão do aliado Irão, dos Estados Unidos e da “rua” naturalmente descontente com o facto de um país rico em recursos não conseguir dar um nível de vida satisfatório à população. Na Praça Tahrir (Praça da Libertação), em Bagdad, epicentro dos protestos, as tendas montadas durante meses, as fotografias dos mártires e as fotografias dos políticos considerados corruptos, fizeram recordar outras Tahrir quando teve início a chamada Primavera Árabe. A exemplo do que acontece noutros países árabes, a “rua” pede uma renovação completa da classe política, fim da corrupção, serviços públicos e… emprego. A chamada “Revolução de Outubro” é um sinal do desespero das pessoas normais quando tudo à sua volta deixa de fazer sentido e não há nenhum sinal de mudança. Raptos e assassínios não têm faltado num Iraque instável e imprevisível.

Num outro nível e na sequência do assassinato do General Qassem Souleimani, em janeiro de 2020, o parlamento iraquiano chegou a votar a retirada das tropas norte-americanas no Iraque e agora espera para ver no que dá a eleição de Joe Biden, mesmo sabendo que Biden votou favoravelmente a invasão do Iraque em 2003 e que chegou a propor a divisão do Iraque em três regiões autónomas (xiita, sunita e curda). Nada do agrado da maioria xiita.

Depois há ainda a pandemia que, aliás, ajudou a quebrar os grandes protestos que estavam na rua. Não se sabe como vai estar o mundo, e o Iraque em particular, em Março de 2021. O Iraque fechou recentemente as fronteiras a vários países e obrigou a quarentena os iraquianos que regressem ao país.

O chão que Francisco vai pisar

O roteiro da visita de quatro dias passa naturalmente por Bagdad, Ur (próximo de Nassíria, no sul, onde esteve a GNR no pós-invasão de 2003), Erbil (capital da região Curda), Mossul (cidade no norte onde foi declarado o Califado) e Qaraqosh (nos arredores de Mossul), cidade mártir onde as Igrejas foram parcialmente incendiadas e destruídas e até serviram de campo de tiro aos elementos do Estado Islâmico. Esse foi também um dos locais onde os cristãos tomaram a sua defesa nas próprias mãos e criaram milícias para combater os extremistas.

O programa da visita ainda não é conhecido, mas não surpreenderia que começasse em Ur (a base de Talil, nas proximidades, torna o acesso fácil), porque terá sido a cidade berço das três religiões monoteístas e terá sido de Ur que Abraão saiu para seguir a palavra de Deus. Ur poderá ser antes ou depois de Bagdad.

Também não surpreenderia que a visita terminasse em Erbil (onde existe um grande bairro cristão), como agradecimento aos curdos por terem acolhido os cristãos fugidos do Estado Islâmico e porque o aeroporto internacional permitirá uma saída directa para Itália. Entre Bagdad e Erbil, a passagem por Mossul – o líder da Igreja Católica vai estar na cidade onde o Califado foi anunciado e acabou por cair – faltando saber se visitará a Mesquita de Al Nuri, o local onde Abu Bakr al Baghdadi declarou o Califado e que já está a ser reconstruída pela UNESCO. Depois a cerca de 30 quilómetros, a cidade de Qaraqosh, porque era a maior cidade cristão do Iraque até à chegada do Estado Islâmico.

O Arcebispo siríaco católico de Mossul e Qaraqosh, Monsenhor Petros Mouché, considera que a viajem de Francisco encoraja os cristãos a ficar, mas reconhece que poderá não ser suficiente para fazer regressar os que partiram. Alguns estão na região Curda, a poucos quilómetros, com muito mais segurança. No dia de Natal, a agência France Press deu conta da chegada a Qaraqosh de um autocarro com voluntários e caixas cheias de postais de boas-festas com mensagens escritas manualmente, vindas de vários pontos do Iraque: Najaf, Bagdad, Bassorá, Salaheddine e também Dohouk. Não duvidemos de que muitos iraquianos muçulmanos querem que os cristãos continuem a viver no Iraque, mas não podemos ignorar que também haverá alguns que assim não pensam.

É este Iraque que o Papa Francisco vai encontrar e para além dos cristãos que o Papa pretende que regressem ao Iraque, muitos outros iraquianos merecem uma palavra que certamente ouvirão.

Termos relacionados Blogosfera
(...)