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Floresta: de onde vimos, para onde vamos, o que fazer?

Não existirá uma floresta habitada, um meio rural sustentado e um território a travar a sua desertificação enquanto o dinheiro continuar a entrar nos cofres das celuloses. Por João Camargo
A partir da década de 90 Portugal disparou em relação aos restantes países mediterrânicos, sendo hoje incontestavelmente o país mediterrânico e europeu onde há mais incêndios florestais
A partir da década de 90 Portugal disparou em relação aos restantes países mediterrânicos, sendo hoje incontestavelmente o país mediterrânico e europeu onde há mais incêndios florestais

A Floresta em Portugal

Em Portugal, a área florestal atual é de 3 milhões e 180 mil hectares. A história da floresta no território acompanhou vários processos sociais e históricos, desde a regressão de uma floresta maioritariamente de carvalhos com a expansão da agricultura no Neolítico e do pastoreio mais tarde, desde a plantação do Pinhal de Leiria por D. Afonso III para fixar dunas até ao abate em grande escala de carvalhos para construção de naus, até às monoculturas do pinheiro e eucalipto. Com a expansão e o comércio marítimo, a procura por madeira (principalmente carvalho) tornou-se tão importante, e a madeira um bem tão escasso, que passou a haver medidas de regulamentação do abate e proteção de floresta. A Lei das Árvores, de 1565, obrigava à plantação de carvalhos, pinheiros e castanheiros autóctones em zonas incultas e baldios. O acesso a madeiras abundantes em África e no Brasil significou em grande medida que os 300 anos seguintes não tiveram muitos marcos importantes na floresta, que se encontrava restrita a poucas áreas. No séc. XIX a política florestal adotou uma visão estritamente utilitária, servindo para conter o avanço do litoral, fixar dunas e abastecer a Marinha para a construção de barcos: constituía-se a Administração Geral das Matas, que respondia ao Ministério da Marinha. Em 1875, a área arborizada era de 670.000 ha: 370.000 ha de montados, 210.000 ha de pinhais, 50.000 ha de soutos e carvalhais. Correspondia a menos de 7% do território nacional.

Na Monarquia, as matas públicas cresceram, o que continuou na 1ª República e na maior parte do Estado Novo. O Plano de Povoamento Florestal 1938–1968 previa arborizar 420.000 hectares do território nacional, principalmente com pinheiro bravo, para garantir segurança dos solos, redução do impacto da erosão pela chuva, melhoria da Saúde Pública e emprego. Este plano, destinado principalmente ao Norte do país, foi financiado através do orçamento do Estado. No final deste processo, a área de Matas Nacionais geridas pelos serviços florestais era de cerca de 60 mil hectares. Até 1995, a área florestal portuguesa apresentava uma tendência de aumento. Um dos maiores crescimentos em termos absolutos ocorreu entre 1875 e 1938, em que a área terá aumentado mais de 1 milhão e meio de hectares, com a promoção do montado no Sul e do pinhal no Norte. O Plano Florestal Nacional do Estado Novo, em contraste com a perspetiva florestal governamental anterior (uma estratégia de conservação), começou a voltar-se para a produção. Este plano expandiu a floresta em cerca de 400 mil hectares. Enquanto até 1938 era aos privados que cabia a principal fatia de plantação e orientação estratégica, a partir de então passou a ser o Estado a dominar a plantação, embora a propriedade continuasse a ser avassaladoramente privada (os Serviços Florestais plantavam em terrenos públicos e privados). Até 1989 o Estado foi o principal encarregado das plantações, com parcerias dos Serviços Florestais com a Portucel, na altura uma empresa pública. A área florestal máxima atingida em Portugal ocorreu perto de 1995, a seguir ao pico de área máxima de pinhal. Em 1996 foi aprovada uma Lei de Bases da Floresta, com planos regionais de ordenamento, zonas de intervenção, apoio ao associativismo. Durou pouco e influenciou menos, com o desmantelamento dos serviços florestais a começar, primeiro através da integração nos serviços da agricultura, depois passando a Autoridade Florestal Nacional e finalmente fundindo-se com o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas, a impotente mega-estrutura criada por Passos Coelho e Assunção Cristas e que se mantém até hoje. Em 2010, o eucalipto ultrapassou o pinheiro-bravo enquanto primeira espécie florestal em área. Nos últimos 25 anos, Portugal tem vindo a perder anualmente floresta a um ritmo médio de 10.000 hectares/ano, 254 mil hectares segundo a FAO, sendo assinalado como um dos 5 países do mundo que mais perdeu área florestal. Esta desflorestação foi acompanhada por um constante aumento na área de plantações de eucalipto: há mais 321 mil hectares de eucalipto nos últimos 25 anos. A floresta nacional é uma monocultura com baixa biodiversidade, com uma extensão de eucalipto de mais de 900 mil hectares, a maior área de eucaliptal relativo do mundo (mais de 9% do território nacional e mais de 28% da área “florestal”). É a 5ª maior área absoluta de eucaliptal, apenas atrás da China, do Brasil, da Índia e da Austrália. A produção florestal está maioritariamente direcionada para a produção de pasta de papel através da indústria da celulose, dominada pela Navigator Company (ex- PortucelSoporcel), pela Altri (Caima, Celtejo, Celbi e AltriFlorestal) e pela Europac&Kraft (a Renova pertence à CELPA mas tem um consumo marginal de celulose de eucalipto).

TeleSur

Mais de 85% das propriedades florestais em Portugal têm menos de 5 hectares. No Norte e no Centro do país predominam os proprietários de áreas pequenas (1 a 5 ha) e muito pequenas (menos de 1 ha), nas quais estão plantados sobretudo pinheiros e eucaliptos. Esta dimensão mínima é agravada pelo sistema da propriedade “indivisa” que retalha as propriedades por vários coproprietários. Estima-se que a área do território nacional abandonada e de dono desconhecido seja mais de 2 milhões de hectares, perto de 20% do território nacional e maioritariamente floresta. É na zona de minifúndio do Centro e Norte e no Algarve que se encontra a maioria desta área abandonada.

Em 2013, foi aprovado o Regime Jurídico de Arborizações e Rearborização (DL 96/2013), conhecido como Lei do Eucalipto que, a coberto de melhorar a burocracia nas operações florestais, liberalizou a plantação com eucaliptos ao dar deferimento tácito à plantação de eucaliptos abaixo dos 2 hectares (o que representa 80% das propriedades florestais do país). A responsabilidade desta lei é da ex-Ministra Assunção Cristas e do Secretário de Estado das Florestas Francisco Gomes da Silva, que veio substituir o hesitante Daniel Campelo (que aparentemente não queria aprovar esta lei) e, terminado o processo, saiu do governo. As celuloses gerem uma área pequena do território florestal (150 mil hectares diretamente), mas são os principais recetores dos mais de 750 mil hectares de eucalipto plantados por proprietários privados e também plantados em áreas abandonadas.

Incêndios Florestais

Os incêndios florestais na região do Mediterrâneo são uma constante milenar, com adaptações evolutivas das espécies predominantes na floresta autóctone. Portugal acompanhava as tendências de incêndios florestais dos climas que lhe eram comparáveis: Espanha, Itália, Grécia, Sul de França. A partir da década de 90 Portugal disparou em relação aos restantes países, sendo hoje incontestavelmente o país mediterrânico e europeu onde há mais incêndios florestais. Não existe nenhum outro fator com o poder explicativo para esta tendência, exceto a composição da floresta portuguesa, o predomínio do eucaliptal e o gigantesco abandono concreto de milhares de pessoas que abandonaram as zonas rurais e o próprio país. Na década de 80 o número de ignições médio anual era de 7380 e a área ardida anual de 73 mil hectares. Na década de 2000 o número de ignições mais do que triplicou para 24949 por ano e a área ardida para os 150 mil hectares. Entretanto, a subida da temperatura por força do aquecimento global exacerba todas as vulnerabilidades do território e aumenta drasticamente as condições para incêndios rápidos e de grandes dimensões. Cada vez que houver matéria combustível no chão (isto é, cada vez que não tenha havido um incêndio nos dois anos anteriores), cada vez que estejam 40ºC dois dias consecutivos, com vento, em que haja noite tropicais acima dos 20ºC, o número de dias de alerta vermelho não parará de crescer. Com menos precipitação e menos humidade, os incêndios suceder-se-ão. A certeza é que isto irá acontecer, não só pelo clima mediterrânico histórico, mas pelo novo, mais quente e mais seco clima. Está, aliás, já em marcha.

 

Em 2003 arderam 425 mil hectares e em 2005 arderam 338 mil. Estima-se que desde 1975 tenham ardido cerca de 4,3 milhões de hectares em Portugal. Em 2017, ainda antes da época de fogos começar, a 17 de Junho, com uma anomalia de temperatura 5 a 7ºC acima do que deveria estar no país e 9 a 11ºC acima do que deveria estar no Pinhal Interior, morreram 64 pessoas perto de Pedrógão Grande, queimadas vivas nas suas aldeias e nos seus carros, na tentativa de fuga.

Área ardida em Portugal entre 2006 e 2016. TSF.
Área ardida em Portugal entre 2006 e 2016. TSF.

A inação e manutenção do poder da indústria da celulose que prolifera no abandono reforça o ciclo abandono-eucaliptização-incêndio-eucaliptização-abandono, exaurindo simultaneamente solos e águas numa área crescente e aumentando todos os riscos de desertificação e inviabilidade do território português.

Para onde vamos e o que fazer

O centrão político está totalmente dominado pelo setor das celuloses. Basta que lhes acenem com a miragem de 12% das exportações nacionais e contributo de mais de 1% do PIB para lhes ser permitido qualquer crime, para lhes ser entregue mais de 9% do território nacional, para lhes serem dadas isenções fiscais, para lhes serem entregues subsídios públicos nacionais e comunitários, para que a sua ação e inação seja o pano de fundo para dezenas de mortes e mais de mil milhões de euros de prejuízos para cada ano de incêndios. O PS, mesmo no rescaldo das mortes em Pedrógão Grande, recusa-se a interromper um financiamento com mais de 9 milhões de euros para reeucaliptização de uma zona ardida… Em Pedrógão Grande. A reforma da floresta, prometida por António Costa e Capoulas Santos, mesmo depois da tragédia, promete ser uma fraude, mantendo estruturalmente intactos os interesses da indústria das celuloses e a estrutura de propriedade e o abandono patente do território.

Mais vinte anos de incêndios florestais e business as usual deverão tornar quase inviável a plantação de eucaliptos, ou de quaisquer outras espécies florestais, na verdade. O agudizar das alterações climáticas numa floresta totalmente artificializada e que, ao invés de conservar águas e solos, os destrói, está destruir a viabilidade do mundo rural na maior parte do território hoje considerado florestal.

Ao exultar a importância das exportações, as celuloses e vários académicos de departamentos fortemente subsidiados pelo setor - nomeadamente no Instituto Superior de Agronomia e na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro - assim como alguns avençados das celuloses, não reconhecem que a floresta de exportação, quer de eucalipto, quer de pinheiro, está efetivamente a retirar água e nutrientes do solos e a metê-los num navio, em matéria-prima ou transformados, para nunca mais voltarem, aumentando a vulnerabilidade à desertificação do território e todos os riscos de incêndio, criando ciclos vegetais cada vez mais frágeis e dependentes de inputs químicos e desvios de água em grande escala, fragilizando outros territórios. Sobre a criação de emprego, é importante referir os números: a celulose emprega menos de 3 mil pessoas.

Não se conhecem os proprietários da floresta em Portugal, o que só revela quão primitivo é o capitalismo das celuloses: ele depende da ignorância para se manter. 40 anos de governos de centro e direita coincidiram em não fazer um cadastro florestal. É necessário avançar com este cadastro. No final do mesmo, poderemos saber com exatidão que áreas abandonadas florestais há, para começar um processo de emparcelamento e nacionalização. Há uma ideia, representando os interesses de pequenos grupos de proprietários florestais, de que as áreas abandonadas devem ser entregues aos pequenos produtores que estão na floresta. Esta proposta não tem qualquer hipótese de servir um objetivo de uma floresta viável, habitada e de futuro, mas apenas criará uma pequena classe terra-tenente, com a promoção do Estado. Uma vez mais, um corporativismo primitivo. Os últimos 20 anos viram um enorme apoio ao associativismo florestal e o insucesso das Zonas de Intervenção Florestal revela a fragilidade dessa abordagem. Estes sectores juntam-se à direita numa obsessão pela propriedade, mesmo da propriedade e abandonada e perigosa para as populações e ecossistemas. Mesmo países com estados estruturalmente conservadores como o Reino Unido ou estruturalmente liberais como os Estados Unidos da América mantêm mais de 60% das áreas florestais na posse pública, mas em Portugal insiste-se na tese do papão da expropriação. A urgência das alterações climáticas e da salvaguarda de populações e territórios é clara: o Estado deve expandir as suas áreas próprias e impor regras muito concretas: sobre plantações, ordenamento, segurança, espécies. A recriação de Serviços Florestais também será uma tarefa importantíssima: Portugal tem 1/9 dos funcionários públicos em serviços florestais da Grécia. Portugal tem 1/20 avos dos funcionários em serviços florestais da Espanha. 540 pessoas para mais de 3 milhões de hectares. Acresce a necessidade de aumentar em milhares o número de Guardas e Vigilantes da Natureza, outra área devastada por décadas de austeridade e desmantelamento do aparelho do Estado: hoje são 223 pessoas.

Canadair combate um incêndio em Portugal. Lusa
Canadair combate um incêndio em Portugal. Lusa

É necessário um projeto de redução sustentada e acelerada da área de eucaliptal e de pinheiro em monocultura. Esse projeto tem objetivos principais: reduzir incêndios, reduzir a violência e a velocidade dos incêndios e substituir por outras espécies que permitam um efetivo aumento de capacidade de conservação de solos e águas, criando uma floresta multidimensional, que não seja só “cash crops” e que deve ter espécies como carvalhos, sobreiros, castanheiros, vidoeiros, entre outras, em articulação com agricultura extensiva, pastorícia e outras atividades de baixa intensidade. O objetivo deve ser manter a área florestal nos números de hoje, fixar populações mas mudar o perfil produtivo: a viabilidade do território é muitíssimo mais prioritária que a obtenção de rendimento imediato. O final de quaisquer apoios públicos a indústrias como a da celulose é imperativo, e deve ser transferido para apoiar a redução das áreas industriais. A jusante, o reforço do combate aos incêndios florestais deve implicar uma duplicação do número de bombeiros profissionais, de 6400 para 12800, e um reforço importante aos 42500 bombeiros voluntários, preparando o combate aos incêndios durante todo o ano e não apenas durante a época oficial de incêndios, que, já vimos, não é mais válida.

A escolha de para onde vamos e o que fazer é central: a indústria bater-se-á sempre pela sua sobrevivência, que significa a multiplicação dos riscos naturais do território mediterrânico para as populações. Não existirá uma floresta habitada, um meio rural sustentado e um território a travar a sua desertificação enquanto o dinheiro continuar a entrar nos cofres das celuloses. O lucro do capitalismo é inviável nas alterações climáticas e a civilização futura será inviável sob o lucro do capitalismo.

Artigo publicado na revista Práxis Magazine a 26 de junho de 2017

Sobre o/a autor(a)

Investigador em Alterações Climáticas. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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