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Evo Morales: “Fiquei surpreendido por ver o dono da Tesla confessar que participou no golpe”

Exilado na Argentina, o ex-presidente boliviano afirma nesta entrevista à revista Jacobin que na origem do golpe de estado da direita esteve o seu projeto de industrialização das reservas de lítio. “Eu disse: os Estados Unidos não entram aqui - e foi esse o nosso crime”, conclui Evo.
Evo Morales numa conferência de imprensa em Buenos Aires em fevereiro de 2020. Foto EPA/Juan Ignacio Roncoroni

O destino de Evo Morales após o golpe militar de novembro passado na Bolívia segue o mesmo padrão sombrio que o de muitos líderes de esquerda, progressistas e anti-imperialistas da região. Fizeram-se comparações com o golpe contra Salvador Allende em Setembro de 1973, a tentativa de sublevação militar contra Hugo Chávez na Venezuela em Abril de 2002, e a tentativa da polícia equatoriana de expulsar Rafael Correa em Setembro de 2010.

Com Morales agora no exílio na Argentina, foi também comparado ao líder daquele país, Juan Domingo Perón, após a tomada do poder por uma fação ultraconservadora do exército em Setembro de 1955. A ditadura militar implementou uma proibição total do movimento peronista, mas o exilado Perón continuou a exercer uma enorme influência devido à base que tinha construído ao longo de uma década de mudanças sociais radicais e de política externa independente que prosseguiu sob a sua presidência. Embora o seu nome tenha sido proibido, o movimento peronista permaneceu ativo, e após a vitória eleitoral do seu candidato Héctor Cámpora em Março de 1973, Perón foi finalmente autorizado a regressar.

Hoje, Evo Morales e o Movimento para o Socialismo (MAS) encontram-se numa situação bastante semelhante. O período desde o golpe militar em novembro foi marcado pela repressão, massacres de dezenas de sindicalistas e ativistas indígenas e tentativas de proibir o MAS de se candidatar às eleições presidenciais agora previstas para 18 de outubro. Isto é acompanhado de uma campanha contínua de manipulação dos meios de comunicação social e de notícias falsas concebidas para difamar catorze anos de governo socialista.

Apesar disto, o MAS continua a ser a força política mais forte da Bolívia, com as últimas sondagens a indicarem que os seus candidatos, Luis Arce Catacora e David Choquehuanca, deveriam ganhar as eleições na primeira volta com 44,4% dos votos - alcançando assim a margem necessária de 10% sobre o candidato no segundo lugar, Carlos Mesa, também perdedor das eleições de Outubro de 2019. No entanto, uma disputa livre e justa é vista como cada vez mais improvável, dada a interferência contínua da Organização dos Estados Americanos (OEA) e do seu secretário, Luis Almagro.

Nas vésperas desta eleição, Denis Rogatyuk e Bruno Sommer Catalan, da Jacobin, sentaram-se com o presidente deposto Morales para discutir o seu historial como sindicalista e como chefe de estado, a sua experiência do golpe, e o que o MAS pode fazer se e quando regressar ao governo.


BSC - Durante a Guerra da Água de Cochabamba de 1999-2000 - uma revolta em massa contra a privatização da água - foi um líder sindical que resistiu ao governo neoliberal de Jorge "Tuto" Quiroga. Como pode comparar a luta desses anos com a resistência atual nos trópicos de Cochabamba?

Vale a pena referir o grupo de jovens líderes camponeses e indígenas, ativos desde o final dos anos 80 e início dos anos 90 [do qual fiz parte]. Perguntávamo-nos - por quanto tempo seremos governados a partir de cima ou de fora?  Por quanto tempo é que os planos e políticas continuarão a vir do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial? E quando é que os bolivianos se vão governar a si próprios?

A Bolívia sempre teve formas de poder social, poder sindical, poder comunal a partir de baixo. Mas quando perguntámos como poderíamos nacionalizar os nossos recursos naturais e serviços básicos, com base neste poder comunal ou social, não o pudemos fazer.

Por isso, era importante promover um instrumento político, sim, com base no movimento camponês dos trópicos, mas sobretudo de Quechuas, Aymaras, as mais de trinta nacionalidades indígenas. Propusemos um instrumento político de libertação, do povo, para o povo, e com um programa do povo.

Neste momento, tivemos de romper com o sistema capitalista. Neste sistema, os movimentos sociais são chamados de "terroristas", e os sindicatos não estão destinados a envolver-se na política. Mas dissemos que temos direitos políticos e que não podemos ser apenas sindicalistas preocupados apenas com as exigências laborais. Se queremos transformações profundas, é importante também produzir transformações profundas nas estruturas estatais. Em certa medida, tivemos dificuldades com os trabalhadores, que insistiram na sua "independência sindical" e na sua postura não política.

Depois, vieram os governos de Hugo Banzer [1997-2001] e Tuto Quiroga [2001-2002]. Privatizaram as redes elétricas e de telecomunicações da Bolívia, enquanto os nossos recursos naturais, como o gás, foram entregues a empresas transnacionais. Por diversas vezes, fui negociar com os líderes nacionais do COB [Centro dos Trabalhadores Bolivianos, a principal federação sindical], bem como com as confederações camponesas, e nas diferentes negociações com os governos neoliberais colocámos sempre o tema da nacionalização em cima da mesa. O nosso argumento era que quando o gás era subterrâneo, pertencia aos bolivianos, mas quando veio acima do solo, já não era boliviano. Os contratos inconstitucionais que foram assinados diziam - literalmente - que o proprietário adquire o direito de propriedade na cabeça do poço. E quem é o proprietário? A empresa transnacional.

DR - Nas eleições presidenciais de 2002, foi derrotado por Gonzalo "Goni" Sánchez de Lozada, após uma campanha de falsidades, medo e intimidação contra si e contra o MAS. Hoje estamos a assistir a algo semelhante. Que lições para o presente retira desta experiência?

Em 1997, foi-me proposto que eu deveria ser o candidato à presidência, e fui sujeito a muita difamação por parte do governo Sánchez de Lozada. Disseram de mim: "Como pode um traficante de droga, um assassino, ser presidente"? Então, recusei a candidatura. Mas em 2002, havia um consenso para eu me candidatar.

Duvidei que pudesse obter uma boa votação: um jornal internacional disse que o MAS poderia obter 8%, e todas as sondagens disseram 3% ou 4%. Sánchez de Lozada aliou-se ao Movimento Bolivia Libre (Bolívia Livre), que antes, em 1989, tinha agrupado setores da esquerda, os social-democratas; este partido baseava-se em ONG e costumava receber dinheiro da Europa em especial.

O embaixador dos EUA, José Manuel Roche, disse: "Evo Morales é um Bin Laden andino e os cultivadores de coca são os Talibãs - por isso não votem nele". O povo anti-imperialista da Bolívia reagiu contra isto - "Porque é que o embaixador dos EUA acusa Evo Morales de ser o Bin Laden andino?" O Presidente Tuto Quiroga teve de ficar calado; embora hoje diga que há interferência na Bolívia por parte da Argentina e de outros países. Eu disse que o embaixador Roche foi o meu melhor diretor de campanha por ter feito esses comentários. E o resultado para o MAS foi de 20 por cento.

Quero ser sincero: até esse momento, não tinha tanta certeza de que alguma vez poderia ser presidente, mas a partir desse momento, pensei que poderia ser - e agora tínhamos realmente de nos preparar. Com um grupo de profissionais, começámos a desenvolver um programa muito sério e responsável para o Estado, para o povo boliviano.

BSC - As Guerras do Gás - uma revolta popular contra a privatização dos hidrocarbonetos em 2003-2005 - foram um verdadeiro ponto de viragem, tanto para a Bolívia como para si. Foi então que vimos o poder das organizações sociais, principalmente na cidade de El Alto. Como compara esse momento histórico com o atual - e que papel pensa que tais movimentos irão desempenhar no processo de restauração da soberania popular?

Com estas lutas, poderíamos ganhar algumas exigências, mas sem mudanças estruturais. Quando cheguei ao Chapare, nos trópicos de Cochabamba, [a frente camponesa indígena] propôs grandes mudanças nas negociações [sobre hidrocarboneto]. Os representantes dos governos neoliberais responderam, dizendo: "Não, estás a fazer política", "A política para ti é um crime, um pecado", e "A política do camponês nos trópicos é machado e machete" - ou, na região do Altiplano, a picareta e a pá.

Depois veio a Guerra do Gás, uma luta concentrada na cidade de El Alto. Qual era o problema subjacente? Para além da questão da nacionalização, não conseguíamos compreender porque é que os nossos governos queriam instalar uma fábrica de GNL [gás natural liquefeito] em território chileno - não instalações estatais, mas privadas - e a partir daí enviar gás para a Califórnia. Tínhamos falta de gás, e eles enviavam-no para os Estados Unidos - mas porque não fornecer primeiro os bolivianos?

A luta pela nacionalização estava a aprofundar-se, e aí o povo de El Alto estava mais do que nunca unido, num único conselho de bairro. Agora dizem-me que tem dois, ou mesmo três conselhos de bairro, o que na minha opinião é uma fraqueza. Mas os mais combativos e os mais fortes são os conselhos de bairro não apenas patrióticos mas também anti-imperialistas, baseados na irmandade Aymara.

Estamos convencidos de que vamos ultrapassar todos estes problemas com a luta do povo, com a luta do povo de El Alto.

DR - Conseguiu nacionalizar os recursos naturais do país e criar uma economia estável e em constante crescimento. Quais são as políticas-chave que recomenda para resolver a atual crise económica na Bolívia criada pelo governo golpista?

Em primeiro lugar, um facto importante, do qual as pessoas devem ser informadas. No momento em que o nacionalizámos em 2005, o rendimento [anual] do petróleo era de apenas 3 mil milhões de bolivianos [360 milhões de euros à cotação atual]. Depois de nacionalizarmos, até 22 de Janeiro de 2019, no dia do aniversário do Estado Plurinacional, ficámos com 38 mil milhões de bolivianos [4.560 milhões de euros] de aluguer de petróleo. [Em 2005], deixaram-nos um PIB de 9,5 mil milhões de dólares [8,7 mil milhões de euros]. Em Janeiro do ano passado, deixámo-lo a 42 mil milhões de dólares [38.7 mil milhões de euros]- imaginem a importância desta mudança.

A Bolívia era o país na cauda da América do Sul em crescimento económico, mas nos catorze anos em que fui presidente, em seis a Bolívia foi a primeira classificada. Quando ia a fóruns internacionais, cimeiras, ou a alguma inauguração, estes presidentes perguntavam-me: "Evo, este ano, quanto crescimento económico haverá? Eu disse-lhes 4 ou 5 por cento, e eles perguntaram-me o que eu tinha feito para o conseguir. E eu respondi: "Devemos nacionalizar os nossos recursos naturais e os serviços básicos devem ser um direito humano".

Infelizmente, a Bolívia tem atualmente duas pandemias: a pandemia que nos mata com o vírus - e paralisa a produção através da quarentena - mas também um governo que paralisa todas as obras públicas e as submete a políticas capitalistas.

Agora as privatizações estão de volta. O Decreto Supremo 4272 [imposto pelo regime de Jeanine Áñez] de 24 de Junho deste ano, propôs um regresso ao passado, reduzindo o Estado à dimensão de "anão", como quer o Fundo Monetário Internacional. O Estado não vai investir em empresas públicas, e vai contribuir menos para a expansão do aparelho produtivo em benefício do povo boliviano. A ideia deste decreto é regressar ao Estado que funciona apenas como um regulador e não como um investidor em projetos nacionais.

As receitas do FMI estão lá todas neste Decreto Supremo: privatização da eletricidade, telecomunicações, saúde e educação. A privatização da educação já começou, porque este ano não reservaram um orçamento para a criação de novas escolas. A 14 de Setembro começaram a privatizar a energia em Cochabamba; o Procurador nomeado por Áñez demitiu-se, porque esse decreto de privatização era inconstitucional. Os serviços básicos são um direito humano e não podem ser um negócio privado, a saúde não pode ser uma mercadoria, e a educação é tão importante para a emancipação do povo. Por isso, o povo insurge-se contra isto.

Infelizmente, a Bolívia tem atualmente duas pandemias: a pandemia que nos mata com o vírus - e paralisa a produção através da quarentena - mas também um governo que paralisa todas as obras públicas e as submete a políticas capitalistas.

A nossa tarefa é defender as nacionalizações e aprofundar a industrialização. Este é o objetivo que devemos alcançar, para que possamos continuar com o crescimento económico. Mas primeiro temos de recuperar a democracia e reconquistar o nosso país.

BSC - Agora vemos novamente os nossos irmãos indígenas serem perseguidos por este regime racista, liderado por Áñez e os seus paramilitares. O que pensa que o próximo governo do MAS deveria fazer para ajudar a erradicar o racismo na Bolívia de uma vez por todas?

Parece que na Bolívia estamos a regressar aos tempos da Inquisição. A direita racista tem usado a Bíblia para fazer os outros odiar. Usam a Bíblia para roubar, matar, e cometer genocídio. Usam a Bíblia para discriminar, para queimar Wiphalas [símbolo dos povos nativos que Morales promoveu a bandeira nacional em conjunto com a anterior bandeira oficial], para espancar os oprimidos e as mulheres indígenas. Foram os grupos racistas com dinheiro que introduziram essa mentalidade.

O golpe foi dirigido contra nós e para o controlo dos nossos recursos naturais, para o lítio. Tínhamos decidido industrializar o lítio, e começámos a explorar as nossas reservas internacionais. Mas eu disse: os Estados Unidos não entram aqui - e foi esse o nosso crime.

Em Dezembro, o senador republicano Richard Black reconheceu que o golpe tinha sido planeado nos Estados Unidos, aproveitando esta oportunidade [aberta pela direita racista na Bolívia]. Fiquei surpreendido com o que o proprietário de Tesla [Elon Musk] disse a 24 de Julho: ele confessou ter participado no golpe.

Portanto, o golpe foi dirigido contra nós e para [o controlo] dos nossos recursos naturais, para o lítio. Tínhamos decidido industrializar o lítio, e começámos a explorar as nossas reservas internacionais. Tinham sido assinados acordos [de comercialização] com a Europa, com a China. Como parte da agenda patriótica que marcava o bicentenário da nossa independência, tínhamos planeado construir quarenta e uma fábricas, mais de quinze para cloreto de potássio, carbonato de lítio, hidróxido de lítio, três para baterias de lítio, e outras fábricas para insumos, mas também para produtos derivados. Mas eu disse: os Estados Unidos não entram aqui - e foi esse o nosso crime.

O golpe foi também dirigido contra o nosso modelo económico. Demos provas de um modelo económico que passava sem o FMI, mas que tinha crescimento e reduzia a pobreza e as desigualdades. E então veio o golpe de Estado.

Quando começámos a mostrar que quando nos governamos a nós próprios há muita esperança para a Bolívia, apareceu o golpe. Esta é a nossa realidade, e por isso devemos procurar pôr fim a este racismo. Devemos estar unidos, respeitando as nossas diferenças de natureza ideológica e programática. Mas isso exige política sem violência.

Por isso, penso que vamos ter de procurar mecanismos para aproximar os bolivianos, porque não podemos ter este tipo de enfrentamento. É muito lamentável que existam paramilitares, grupos armados.

O nosso Movimento para o Socialismo é um instrumento político para a soberania dos povos, e este movimento político de libertação não é apenas histórico, sem precedentes, mas único em todo o mundo. Pois nos tempos coloniais os nossos povos indígenas eram ameaçados de extermínio - não apenas racismo e discriminação, mas extermínio. Em alguns países da América Latina, já não existe um movimento indígena, mas os nossos antepassados, como na Bolívia, Peru, Equador, Guatemala, e México, lutaram arduamente. Depois de quinhentos anos de resistência indígena popular, em 1992, dissemos: "Desde a resistência até à tomada do poder". E na Bolívia, mantivemos essa promessa.

Quando começámos a mostrar que quando nos governamos a nós próprios há muita esperança para a Bolívia, apareceu o golpe. Esta é a nossa realidade, e por isso devemos procurar pôr fim a este racismo. Devemos estar unidos, respeitando as nossas diferenças de natureza ideológica e programática. Mas isso exige política sem violência.

DR - Quando foi presidente, levou a Bolívia para a cena internacional e juntou-se à luta por um mundo multipolar. Infelizmente, vemos que muitos destes avanços foram revertidos pelas ações do regime golpista. Na sua opinião, qual seria a melhor forma de restaurar no futuro o lugar da Bolívia na cena internacional?

Quando era líder sindical, participei em algumas reuniões de chefes de Estado, por exemplo em Viena, sobre a luta contra o tráfico de droga. Com a ajuda de ONG que tinham estatuto consultivo, pude participar e ouvir atentamente o que o meu governo disse nesses fóruns internacionais.

"Associo-me às propostas dos Estados Unidos", "Apoio as propostas dos Estados Unidos", era precisamente isso. A Bolívia nunca teve uma política patriótica, uma proposta boliviana. Quando chegámos [ao poder], as nossas propostas centravam-se na defesa da Mãe Terra e dos serviços básicos. Levámos uma proposta às Nações Unidas de que a água deveria ser um direito fundamental para todos os seres humanos e não um negócio privado: todos apoiaram esta proposta, e apenas os Estados Unidos e Israel se abstiveram.

Poderia comentar boa parte da política internacional nesta mesma linha. Ri-me da intervenção da presidente de facto da Bolívia nas Nações Unidas atacando a Argentina, acusando o presidente argentino de interferência. Que direito tem ela de falar de ingerência estrangeira! Mas pensando sobretudo na América Latina, nos tempos de Chávez, Lula, e Kirchner - tempos diferentes dos atuais - promovemos importantes processos de integração continental como a UNASUR e a CELAC. Barack Obama iniciou o processo de destruição da UNASUR, CELAC, utilizando a Aliança do Pacífico [aliança de governos de direita].

O atual presidente dos EUA organizou o Grupo de Lima para confrontar a Venezuela. Face a isso, precisamos de maior unidade e pensamento profundo no Grupo Puebla e noutros setores da ALBA-TCP [Aliança Bolivariana para as Américas]. Mas não estamos sós. Tenho grande esperança de que os nossos povos, os nossos movimentos sociais, vão reconquistar a democracia.

Os Estados Unidos e o capitalismo pensam que são enviados por Deus para dominar o mundo, que a única soberania é para os Estados Unidos. Assim, quando um povo se liberta, então vêm bases militares, intervenção militar, e golpes de Estado.

Gostaríamos de uma América plurinacional, porque somos tão diversos. Como seria bom para a Europa, para outros continentes, reconhecer essa diversidade, que essa diversidade fosse reconhecida pelas constituições, pelas organizações internacionais. Nós na Bolívia somos tão diversos - a diversidade cultural é a riqueza da nossa identidade, da nossa dignidade. E com base na nossa diversidade, lutamos pela liberdade, pela igualdade - essa é a luta profunda que estamos a travar.

Contudo, neste momento, regressámos mesmo ao passado. O que os governos neoliberais de direita fazem é apenas dizer o que quer que os Estados Unidos estejam a dizer. Essa política do século XIX que afirma "América para os Americanos" - a Doutrina Monroe - tem de acabar.

Os Estados Unidos e o capitalismo pensam que são enviados por Deus para dominar o mundo, que a única soberania é para os Estados Unidos. Assim, quando um povo se liberta, então vêm bases militares, intervenção militar, e golpes de Estado.

BSC - Como tem sido o exílio para si? Quais são os seus sentimentos sobre os militares que o traíram e o que fará o MAS quando regressar ao poder para garantir que o exército é leal à Bolívia?

Eu não queria deixar a Bolívia. Encarei isto como uma questão de "pátria ou morte". Mas um grupo de membros da assembleia, líderes nacionais, alguns ministros, disseram-me que primeiro, "para salvar o processo de mudança, temos de salvar a vida de Evo". Fiquei surpreendido com isso e não tão convencido de que seja verdade.

Se eu não me tivesse demitido, no dia seguinte, com uma tensão tão elevada, aconteceria um massacre. Para evitar o massacre, optei por me demitir, porque somos defensores da vida.

Em segundo lugar, a 10 de Novembro, antes da minha demissão, após o motim policial dos dois dias anteriores, os movimentos sociais pediam aos bolivianos que retomassem a Plaza Murillo [em La Paz], e ouvi dizer pela imprensa que as Forças Armadas exigiam a minha demissão. Depois disso, um líder do sindicato COB estava também a pedir a minha demissão. O que é que eu pensava nesse momento? Que se eu não me tivesse demitido, no dia seguinte, com uma tensão tão elevada, aconteceria um massacre. Para evitar o massacre, optei por me demitir, porque somos defensores da vida.

Até àquele momento, tinham existido tantos conflitos, como as greves da oposição em Potosí e Santa Cruz em finais de Agosto e Setembro. Evitámos mortes. Alguns pediram-me para militarizar as coisas e declarar o estado de sítio, mas eu recusei. Tive tantas reuniões com os comandantes militares e policiais, e disse-lhes que as balas devem ser utilizadas para defender o território boliviano, e não contra o povo.

Imaginem só: Evo presidente, massacres, mortes. No que é que isso ia resultar?

Mesmo quando cheguei a Chimoré na tarde de domingo, 10 de Novembro, disse: "Agora vou para a selva". Naquele momento pensei que se não me demitisse, haveria um massacre em La Paz no dia seguinte. A polícia e os militares iriam disparar sobre os meus irmãos e irmãs que queriam recuperar o Palácio Quemado, a Praça Bolívia e a praça principal da cidade.

Eles iam culpar-me. Demiti-me para que não houvesse mortes ou massacres sob a minha administração - pois somos defensores da vida, da paz, mas com justiça social. Como parênteses, direi que a luta pela paz é uma luta contra o capitalismo - se houvesse paz com justiça social, não haveria capitalismo, seria derrotado. Assim, a 11 de Novembro, deixei a Bolívia.

Durante a minha luta sindical e política, fui preso, processado, e confinado na Bolívia. Mas eu nunca tinha pedido asilo antes. Por isso, agora que sou refugiado, completei o currículo completo de um anti-imperialista, de um esquerdista que não desiste.

Nesse dia, o território sul-americano estava sob o controlo dos EUA. Eles não deixaram o avião que veio do México para me ir buscar entrar no espaço aéreo boliviano. Havia três, quatro presidentes, a comunicar durante todo o dia sobre como me tirar de lá. Mas, para o regime [pós-golpe], havia dois resultados aceitáveis: Evo morto, ou Evo nos Estados Unidos. Quando eu ainda estava em El Alto, os próprios militares comentaram que tinham de me enviar para os Estados Unidos; outros compararam isto com o golpe de Estado [de 1973] no Chile.

Durante a minha luta sindical e política, fui preso, processado, e confinado na Bolívia. Mas eu nunca tinha pedido asilo antes. Por isso, agora que sou refugiado, completei o currículo completo de um anti-imperialista, de um esquerdista que não desiste. Estas são as consequências [do que faz uma pessoa destas].

A herança do movimento indígena é o seu anti-colonialismo e anti-imperialismo. Nos tempos coloniais, desmantelaram Túpac Katari, e agora, nos tempos da República, querem "desmantelar-nos", abater o nosso movimento político, banir o MAS, banir Evo. É isso que os Estados Unidos planeiam. Os Estados Unidos disseram: "O MAS não deve regressar ao governo, nem o Evo à Bolívia". Mas estou certo de que um dia regressaremos, aos milhões, e devolveremos a liberdade ao povo boliviano.

DR - Se pudesse voltar atrás no tempo, o que melhoraria na sua governação da Bolívia? E, olhando para o futuro, o que espera do MAS agora - e que papel gostaria de assumir?

Em primeiro lugar, formar novos líderes requer muita liderança - por isso, devo partilhar a minha experiência de luta sindical, mas também de luta eleitoral e de governação. A política é uma ciência de serviço, de esforço, de compromisso, de sacrifício para a maioria, para os humildes. Obviamente, a política é uma luta entre vários interesses. E o que nos distingue é que lutamos por interesses comuns, interesses coletivos, a favor das pessoas pobres. A nossa luta não é para concentrar capital em poucas mãos, mas para redistribuir riqueza, para assegurar uma certa igualdade, justiça social, paz com igualdade, com dignidade, com justiça social. Quando regressarmos - e devemos regressar, mais cedo ou mais tarde - quero realmente partilhar essa experiência, partilhar uma pequena parte de toda esta luta.

Quando cheguei pela primeira vez ao Chapare para viver - de facto, para sobreviver, após a morte do meu pai - de repente, pediram-me para ser um líder sindical. Eu não queria fazer isto, mas havia confiança em mim, e por isso deixei o meu trabalho agrícola. Entrei na direção sindical e fui torturado, processado, confinado, ameaçado tantas vezes. Desde 1989, já fui julgado por tantas acusações e difamações que não têm qualquer fundamento ou base factual.

Não vim para o Chapare para ser um líder e muito menos para me tornar presidente. Mas a minha escola foi a luta sindical, a luta social, a luta comunal e não como aqueles que dizem: "Eu venho da juventude comunista, ou socialista". Ao viver a minha vida, perguntei-me como é que o Evo chegou à presidência sem uma formação académica. Respondi que o podia fazer por causa da nossa verdade e honestidade. Este governo tentou incriminar-me por corrupção - mas não o conseguiu fazer. Depois de tantas difamações contra mim . . . qual é o objetivo desta?

Temos a certeza de que iremos ganhar a presidência muitas mais vezes no futuro.


Denis Rogatyuk é jornalista no El Ciudadano, escritor, colaborador e investigador com vários artigos publicados, incluindo na Jacobin, Tribune, Le Vent Se Leve, Senso Comune, the GrayZone, e outras.

Bruno Sommer Catalan é um jornalista chileno e o fundador de El Ciudadano.

Entrevista publicada na Jacobin. Traduzida por Luís Branco para o esquerda.net.

 

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