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Descolonizar Portugal

As portuguesas e os portugueses negros continuam a ter escolas, empregos e casas piores. Fazem maioritariamente parte dos trabalhadores mais pobres e é preciso assumir e atacar esse problema. Artigo de Bruno Góis, publicado na revista Esquerda.
Foto Lucas Gouvea - Unsplash

Descolonizar é uma das palavras que ressurgiu no debate político. A ideia, que não é nova e chegou mais tarde a Portugal, está em força pelo menos entre os setores mais avançados dos movimentos sociais e em alguns debates académicos. Um debate que se fortalece com as recentes mobilizações do movimento negro e antirracista como as que pediram Justiça para Giovani (11 janeiro de 2020) e Justiça para Cláudia Simões (1 de fevereiro de 2020).

Estes debates têm muitas dimensões. Uma delas é a presente no manifesto «Porque é que um museu dedicado à ‘Expansão’ portuguesa e aos processos que desencadeou não pode nem deve chamar-se ‘Museu das Descobertas’?». Assinado em abril de 2018 por mais de cem académicos, este manifesto vem problematizar a visão eurocêntrica e eufemística da narrativa dos “Descobrimentos”. Outra vertente ganhou atualidade quando, em novembro de 2018, veio a público o relatório que o presidente francês Emmanuel Macron encomendou sobre o património de origem africana nas coleções públicas francesas. O objetivo do relatório é servir de base à devolução.

Esta questão da devolução de património, que deve ser objeto de cooperação cultural e científica entre as antigas potências coloniais e os países outrora colonizados, não é uma criação de Macron, é uma reivindicação anterior de vários povos e movimentos. O abraçar da causa pela diplomacia cultural de Macron deve ser entendido num quadro mais vasto, que inclui a continuidade da presença neocolonial de França em África. Ainda assim, a iniciativa de Macron ajudou a impulsionar este debate e, em dezembro de 2018, a então ministra da Cultura de Angola, Carolina Cerqueira anunciou a criação de uma equipa de investigação para proceder à identificação de objetos culturais angolanos presentes nos museus portugueses. O debate está aí e traz à tona alguns mitos e feridas não saradas da sociedade portuguesa.

A relação de Portugal com o colonialismo é ainda apresentada na narrativa dominante como sendo muito diferente dos outros colonialismos. A história da colonização e da descolonização diz outra coisa. Com o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) iniciou-se uma vaga intensa de independências de países colonizados situados em África e na Ásia. A maioria dessas independências ocorreu entre 1945 e 1960. E, além de significarem a vitória das aspirações emancipatórias dos povos das colónias, representaram também o recuo do poder das potências coloniais europeias face à ascensão do poder internacional dos EUA e da URSS. O caso da descolonização portuguesa, contudo, é mais tardio. As independências das ex-colónias portuguesas apenas ocorreram em 1974/75.

Nos últimos anos do colonialismo português, a “presença multissecular” em África era apresentada como um argumento para o excecionalismo, supostamente as colónias portuguesas escapariam à vaga independentista. A propaganda punha fé na narrativa dos “Descobrimentos”. A diplomacia confiava mais na pertença de Portugal à NATO, a bênção dos EUA seria suficiente.

Contra a narrativa da presença multissecular estão os factos. Efetivamente, no que se refere ao continente africano, a ocupação territorial portuguesa limitou-se, durante séculos, a algumas faixas do litoral e à construção de cidades como Luanda (1576), Benguela (1617), Moçâmedes (1645) e Maputo (fundada em 1782 enquanto feitoria sob o nome de Lourenço Marques) e à ocupação de algumas ilhas atlânticas. A dominação direta e indireta de vários povos africanos, incluindo o infame tráfico de milhões de pessoas escravizadas, era exercida com uma escassa presença de portugueses. A presença de portugueses em África era, assim, muito limitada quando ocorreu a Conferência de Berlim (1884/1885), que estabeleceu o princípio da ocupação efetiva como orientador da repartição do continente africano entre as potências colonizadoras. Se teve alguma coisa de excecional foi ser uma potência colonial secundária (o que até contribuiu para agravar a opressão, onde o capitalismo tem menos capital, tende a ser mais brutal na exploração). Um episódio dessa história de potência secundária foi o Ultimato Britânico (1890) contra o Mapa Côr-de-Rosa português (o ambicioso plano português de colonização de uma faixa que ligava Angola a Moçambique). Eis a origem do hino nacional A Portuguesa – que então cantava «Contra os bretões, marchar, marchar».

A “presença” portuguesa em África não foi menos colonialista do que as outras. E os cânticos da mestiçagem cultural e racial, «encontros de culturas» como alguns dizem agora, são histórias que têm muita violência. Guerras são guerras mesmo que se chamem de Campanhas de Pacificação e Ocupação (como as guerras coloniais de finais do século XIX e início de do século XX). E a escravatura, embora oficialmente banida no final do século XIX, teve como substituto o trabalho forçado, que durou até 1961, ano do fim do Estatuto do Indígena.

O colonialismo resulta sempre no domínio de uma potência sobre outros povos, com muita exploração e opressão, nomeadamente racial, à mistura. E, tal como aconteceu noutros impérios, a oposição africana ao colonialismo português foi-se organizando. O surgimento do Movimento Anti-colonialista em 1957 é disso exemplo. Portanto, o caminho para as guerras em Angola (1961-1975), na Guiné-Bissau (1963-1975) e em Moçambique (1964-1975) foi aberto pelo Governo Português, então liderado pelo ditador Oliveira Salazar, quando se recusou a iniciar a descolonização e não deu outra hipótese aos movimentos anticoloniais.

Como não ver a criação do Movimento das Forças Armadas português, que pôs fim ao poder da ditadura em 25 de Abril de 1974, como resultado indireto do esforço dos povos das colónias pela sua própria libertação? Evidentemente que o combate de tantos antifascistas durante décadas em Portugal foi fundamental no caminho para o fim da ditadura. Mas, por muito que as páginas da independência das ex-colónias apareçam depois das páginas do 25 de Abril nos livros da escola, a independência destes povos foi por eles conquistada e a própria libertação de Portugal face a ditadura a eles muito deve.

Mesmo com as independências da Guiné-Bissau (1973, reconhecida em 74), de Moçambique, Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe e de Angola (1975), os mitos que ganharam força nos últimos anos do colonialismo persistem. Há duas obras de Cláudia Castelo que são cruciais para entender como se instalou o mito lusotropicalista (“O modo português de estar no mundo”: luso-tropicalismo e ideologia colonial portuguesa (1933-1961), Afrontamento, 1998) e para esclarecer a falsidade, ou exagero discursivo, da presença multissecular dos portugueses (Passagens para África, O Povoamento de Angola e Moçambique com Naturais da Metrópole (1920-1974), Afrontamento, 2007). Na segunda obra demonstra como as migrações coloniais portuguesas para África são um fenómeno que, tendo origem no final do século XIX, são mais efetivas e de maior dimensão a partir de 1945 e principalmente durante as guerras de libertação dos povos das colónias.

São essas últimas vagas, incentivadas já no decorrer das guerras de 1961-1975, as principais responsáveis por uma maior presença portuguesa em África numa fase tão tardia. Resultado disso, entre 1975 e 1979, na sequência das independências e da mudança da ordem social (incluindo guerras civis e crises), chegou mais de meio milhão de cidadãos portugueses das ex-colónias, a maioria dos quais (63%) tinha nascido em Portugal Continental e nas ilhas adjacentes – como demonstrou a investigação de Rui Pena Pires (Os Retornados: um estudo sociográfico, Instituto de Estudos para o Desenvolvimento, 1984) com base nos Censos de 1981. Os demais pertenciam principalmente a uma primeira geração já nascida nos territórios colonizados. E só uma minoria eram descendentes da colonização mais antiga. Alguns dos vários trabalhos de natureza académica e artística sobre esta população estão reunidos na coletânea Retornar, traços de memória do fim do Império (coord. Elsa Peralta, Bruno Góis, Joana Oliveira, Edições 70, 2017).

Importa sempre lembrar que o Governo português implementou, entre 1975 e 1979, políticas públicas para reintegrar estes cidadãos nacionais vindos das ex-colónias, com apoios sociais pecuniários e de habitação e alimentação (através do Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais) e com apoio ao emprego, dando apoio financeiro à criação do próprio negócio (através da Comissão Interministerial de Financiamento a Retornados) e garantindo a reintegração dos funcionários públicos (através do Quadro de Adidos).

Os vários migrantes da descolonização são um elemento problemático da narrativa histórica portuguesa. Os mitos do «bom colonialismo» esbarram com a necessidade de acolhimento de centenas de milhares de portugueses retornados das ex-colónias que, afinal, não viviam em África há 500 anos e eram cidadãos da potência colonial. Esses mitos ficam ainda mais arrasados por a cidadania portuguesa ter sido negada à esmagadora maioria da população negra que fugia também das guerras civis e das crises económicas dos países recém independentes (o Decreto-Lei n.° 308-A/75, de 24 de junho só garantia cidadania aos descendentes de cidadãos nascidos em Portugal continental, Açores e Madeira). Esta população negra chegou primeiro como refugiada e depois como imigrante e muitos dos seus filhos, portugueses afrodescendentes, continuam a ter a cidadania portuguesa negada. Ainda em 2017 houve uma campanha em nome da justa causa «Quem nasce em território português é português ponto final».

Portugal em 2020 é um país que ainda não se descolonizou. A narrativa das descobertas está bem entranhada porque ela sim é multissecular, embora apócrifa – como se pode ler em 1498: Mais do que a viagem à Índia da historiadora Ângela Barreto Xavier e do historiador de arte Nuno Senos (Tinta-da-China, 2019). E sempre que a socióloga Cristina Roldão (co-autora de Caminhos escolares de jovens africanos (PALOP) que acedem ao ensino superior, Alto-Comissariado para as Migrações, I.P, 2016) faz o exercício conjunto com alunos do ensino básico de ir à procura de uma história não-branca nos livros de história, em geral não há referências a portugueses ciganos e a história dos negros está ausente, são sempre “descobertos” e traficados como objetos. Para descolonizar é importante mudar os livros da escola, mudar os discursos sobre o país e dar mais voz ao povo negro e outras camadas excluídas. Mas esse combate não termina com a melhoria do discurso e da representação. As portuguesas e os portugueses negros continuam a ter escolas, empregos e casas piores. Fazem maioritariamente parte dos trabalhadores mais pobres e é preciso assumir e atacar esse problema.

Como disse Martin Luther King em 1967: «Iludimo-nos em acreditar no mito de que o capitalismo cresceu e prosperou com a ética protestante do trabalho duro e do sacrifício. O facto é que o capitalismo foi construído sobre a exploração e o sofrimento dos escravos negros e continua a prosperar na exploração dos pobres – negros e brancos, aqui e no estrangeiro.» Descolonizar é uma tarefa social, política, cultural e económica. O sistema em que vivemos não é uma abstração: é o capitalismo imperialista, racista e machista. Descolonizar Portugal é preciso – pela nossa libertação coletiva.


Artigo de Bruno Góis, publicado na revista Esquerda em março de 2020.

 

Sobre o/a autor(a)

Investigador. Mestre em Relações Internacionais. Doutorando em Antropologia. Ativista do coletivo feminista Por Todas Nós. Dirigente do Bloco de Esquerda.
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