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Alexandre Soares dos Santos: ideologia, fuga aos impostos e salários baixos

Na sequência do falecimento de Alexandre Soares dos Santos na passada sexta-feira, o esquerda.net publica um excerto de um capítulo do livro “Os Burgueses”, publicado em 2014 e da autoria de Francisco Louçã, João Teixeira Lopes e Jorge Costa, em que este último analisava os negócios do grupo Jerónimo Martins.
Alexandre Soares do Santos.
Alexandre Soares do Santos. Foto de José Sena Goulão. Lusa.

Desde a altura em que este texto de Jorge Costa foi escrito, em 2014, o Grupo Jerónimo Martins manteve-se consistentemente no topo da lista das empresas portuguesas com maior disparidade salarial. Em 2018, a empresa foi campeã das desigualdades salariais. Pedro Soares dos Santos, o seu gestor, ganhou 1,9 milhões de euros, 140 vezes mais do que a média dos seus trabalhadores.

E também Alexandre Soares dos Santos se mantinha no topo das maiores fortunas do país. Em julho do ano passado a Forbes considerava-o o segundo homem mais rico do país.

O empresário não deixou entretanto de produzir declarações polémicas. Em 2016, no programa “Negócios da Semana”, pronunciou-se sobre a devolução de direitos pós-troika nestes termos: “quando se reduzem horas extraordinárias, o número de horas de trabalho ou o custo de uma consulta no hospital, o que é que se está a fazer? A comprar o eleitorado”.

Alexandre Soares dos Santos era avesso a geringonças. Mas em 2011 atrevia-se a sugerir até um "governo de salvação nacional" com a condição do Bloco ficar  “completamente excluído” uma  vez que  se limita “a criar a confusão, a injectar ódio na sociedade portuguesa e nunca apresenta completamente nada”.

Recorde-se que, em 2014, se tinha lançado, no programa “Terça à Noite” da Rádio Renascença, contra o direito à greve: “a nossa lei da greve é uma lei antiquada, imposta por um Conselho da Revolução” afirmou, acrescentando que “as pessoas devem ter direito à greve, mas não é por dá cá aquela palha”. Declarações produzidas apenas dois meses depois de ter sido revelado que a empresa ocupara, dois anos antes, um outro lugar de top, sendo a segunda empresa com mais benefícios fiscais, na ordem dos 79,9 milhões de euros.

E a empresa não deixou de ter práticas polémicas. Ainda em junho de 2017, o Pingo Doce promoveu um programa de falsos estágios em que os jovens trabalhadores tinham um horário de 40 horas semanais e recebiam abaixo do salário mínimo: 500 euros.

Jerónimo Martins: paletes de ideologia

O núcleo inicial da fortuna da família Soares dos Santos resulta da concentração por via de matrimónio. Os pais de Alexandre Soares dos Santos são filha e sobrinho do empresário Francisco Manuel dos Santos, que nos anos 20 comprou as mercearias Jerónimo Martins. Já casado com a prima, o pai de Soares dos Santos assume as rédeas da empresa familiar a partir de 1938. Abre a fábrica de margarinas e óleos FIMA e consolida uma parceria com a multinacional Unilever, expandindo a produção para o mercado colonial.

É nessa empresa que Alexandre Soares dos Santos inicia a sua carreira. Não termina o curso de Direito e é contratado pela Unilever para funções em diversos países entre 1957 e 1968. Atravessa a revolução já à frente da empresa e participa nas atividades da Confederação Industrial Portuguesa (CIP) durante o PREC. No início de 1975, conta Soares dos Santos, recebe dos operários da sua empresa “um ultimato de 24 horas” para decidir um aumento salarial de dois mil escudos. Para sublinhar o essencial, Soares dos Santos recorda a cedência: “Esta operação era muito mais que uma reivindicação salarial. Naquele momento não me interessavam os lucros. Lucros eu podia sempre recuperar; a empresa é que não. Afinal, nunca perdemos dinheiro. Em 1975, não ganhámos mas também não tivemos prejuízos. Cortámos na publicidade e aguentámo-nos” (Loureiro, 1991).

Loja Jerónimo Martins

A família Soares dos Santos tem lugar de destaque na disputa ideológica em Portugal. Tanto na disputa profunda, através da criação da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), como à sua superfície, pela constante presença e testemunho do seu chefe nos grandes media, onde é tratado como um sábio.

A família detém a mais valiosa carteira acionista do país. Além de Alexandre Soares dos Santos em primeiro lugar, há na lista dos dez mais ricos em 2013 outros dois membros da família, os primos Fernando dos Santos e Maria Isabel Santos, a mulher mais rica do país, com 540 milhões de euros, como já vimos no capítulo anterior.

A Jerónimo Martins investe milhões em propaganda de responsabilidade social, mas não tem conseguido evitar a constante conotação com más práticas laborais, comerciais e fiscais, como vamos ver de seguida.

Fuga aos impostos em Portugal

Da riqueza gerada no negócio da Jerónimo Martins em Portugal, pouco mais do que a parte paga em salários é taxada. Os dividendos volumosos são repartidos pelos acionistas na Holanda, para onde foi deslocalizada a sede social do grupo. Quando a polémica surgiu, o grupo respondeu que a fuga para a Holanda é apenas um ato de boa gestão. Acumular o máximo e contribuir o mínimo é a obrigação de qualquer administrador competente a servir os "seus" acionistas. Há mais quem assim pense. A demonstrá-lo, está o peso do investimento direto português na Holanda, que em 2011 chegava a 70% do total (E, 7.1.2012), bem acima de tradicionais parceiros comerciais como Espanha (10,5%), Brasil (4,8%) ou Angola (2%). Entre 1999 e 2009, a Holanda foi sempre o maior ou o segundo maior destino do investimento direto português no estrangeiro, ou seja, da transferência de capitais, ou não tivessem quase todas as empresas do PSI-20 a sua sede fiscal naquele país.

Mas a Jerónimo Martins tem um registo pesado também noutros domínios. Alexandre Soares dos Santos é um patrão agressivo com pretensões paternalistas. Em Abril de 2012, fazia o seguinte retrato dos seus empregados: “tenho mais de mil pessoas com os salários penhorados pelo Tribunal. Tenho pessoas com o ordenado penhorado até 2020, pessoas que têm fome, que vão para casa com um salário muitíssimo reduzido e que às vezes têm o marido ou a mulher desempregados”. Sob o peso da sua “responsabilidade social”, a administração brinda a mão-de-obra com um “plano de emergência”, mesmo assumindo que o problema não está nos salários de quinhentos euros, mas sim no “elevado desconhecimento dos mais elementares princípios da gestão de um orçamento doméstico” (i, 4.8.2011). Em suma, isto está mau para todos: “eu tenho 18 netos, quatro dos quais estão a chegar ao mercado de trabalho, e sei que eles vão para o estrangeiro à procura de emprego. Se eu não tenho emprego para outras pessoas entrarem, também não tenho para os da família. Eles têm de ir procurar a vida noutros sítios e como eles vai acontecer a muitos outros” (DN, 27.8.2012).

Maior investimento foi o de Soares dos Santos noutra nobre causa, o assalto ideológico ao 1º de Maio em 2012. O dia do trabalhador é para trabalhar e, para o impor, Soares dos Santos não hesitou em pagar o dia em triplo e ainda atribuir uma folga a quem fosse trabalhar no feriado. Escreveu um panfleto para dar aos clientes nas caixas, mostrando que o Pingo Doce pode comprar o dia do trabalhador. No mesmo dia, lançou de surpresa uma promoção especial que esvaziou prateleiras e lhe valeu uma pequena multa por abuso sobre as regras de preços nas grandes superfícies. As perdas desse dia terão atingido os dez milhões de euros, segundo a Jerónimo Martins (TVI, 25.7.2012), mas foi uma gigantesca operação de publicidade que atraiu multidões ansiosas. No fim, Soares dos Santos acabou a tentar contornar a polémica alegando que ele próprio não saberia da iniciativa promocional concebida pelos seus filhos na administração (DN, 4.5.2012).

Loja Pingo Doce

Abuso sobre empregados e produtores

Os lucros da Jerónimo Martins aumentam de forma sustentada há vários anos, atingindo nos primeiros nove meses de 2013 os 400 milhões de euros, 68% acima do mesmo período do ano anterior. Essa riqueza acumula-se no lugar do costume: dividendos crescentes aos proprietários (10 cêntimos por ação em 2008; 14 em 2010; 28 em 2012) e remuneração extravagante da administração e dirigentes (um administrador ganha o equivalente à remuneração média de 104 trabalhadores do grupo). Registe-se que, recentemente, Soares dos Santos ordenou “que se acabe com esta mania nacional dos salários dos ricos” (DE, 7.3.2012).

Apesar das constantes proclamações de “diálogo” e “entendimento”, a administração da Jerónimo Martins é acusada de praticar pouco o que tanto recomenda: nos últimos anos reuniu-se uma única vez com a estrutura sindical. E as queixas desta não são poucas: apesar de os horários dos trabalhadores estarem organizados a seis meses e afixados, acabam por sofrer grandes e súbitas alterações.

O abuso é a regra, mas sendo o poder da empresa o abusador, pode estar para vir o pior. Na Polónia, onde o sucessor de Alexandre Soares dos Santos, o seu filho Pedro, assumiu responsabilidade durante vários anos, o grupo mantém 2100 lojas, onde tem sido acusado de abusos laborais que depois inspiram as suas práticas na rede Pingo Doce. Na Polónia, Soares dos Santos foi condenado pelo Supremo Tribunal, depois de se queixar de atentado ao bom nome por parte de antigos fornecedores da rede de supermercados Biedronka, propriedade do seu grupo. Em causa estavam acusações de não pagamento de horas extraordinárias, represálias contra trabalhadores e dumping, entre outras. A Fundação de Helsínquia para os Direitos Humanos definia a Jerónimo Martins como "o símbolo do abuso dos direitos dos trabalhadores na Polónia". O tribunal concluiu em Dezembro de 2009 que “não é proibido formular acusações verdadeiras”.

Loja do grupo Jerónimo Martins na Polónia.

Nas conclusões dos tribunais polacos, segundo o jornal Rzeczpospolita, ficou também provado que a rede polaca de Alexandre Soares dos Santos mantinha práticas ilegais em prejuízo dos fornecedores, factos que já tinham determinado duas sentenças do Supremo Tribunal contra a empresa. Esse tipo de práticas são, aliás, bem conhecidas dos fornecedores portugueses de produtos agrícolas. Um representante destes explicava como estas grandes superfícies obrigam os pequenos fornecedores a emprestar à força: “o distribuidor encomenda num dia e paga mais de setenta dias depois, média indicada pelo Banco de Portugal. O consumidor compra e paga logo, pelo que, entretanto, o distribuidor fica com esse dinheiro. Na Jerónimo Martins este período é capaz de representar 700 milhões de euros de liquidez permanente, a custo zero. Na Sonae são mil milhões” (Sol, 18.11.2011).

Estes abusos assentam na chantagem permitida pela posição dominante nas redes distribuidoras. Em Novembro de 2011, foram conhecidos vários exemplos em diferentes redes de hipermercados: a Sonae convidou os fornecedores a pagar 25% de uma promoção de queijos; a Jerónimo Martins exigiu um desconto de Natal de 10% nos produtos vendidos em Outubro, Novembro e Dezembro, impondo assim uma alteração aos contratos existentes. Em suma, a grande distribuição beneficia do controlo de mercado para reduzir os seus riscos, convertendo o seu negócio em verdadeira renda garantida. A compressão dos preços pagos aos fornecedores e a política de prazos de pagamento transforma os produtores em financiadores a custo zero. Essa dependência e debilidade financeira do sector produtivo, tomado como refém dos monopólios da distribuição, é um fator relevante de atrofia da capacidade agrícola e industrial e, assim, da soberania alimentar do país.

Construindo a hegemonia do capital

Contra a tradição dominante na elite económica, Alexandre Soares dos Santos empenha-se numa forte visibilidade e numa intervenção direta no debate político e até na luta ideológica em Portugal. Com a sua Fundação Francisco Manuel dos Santos, cria protagonistas para o debate, lança eventos, torna-se fonte de dados e autoridade de análises. E coroa António Barreto como porta voz da fundação, um ativo promotor das agendas liberais: lança um manifesto por uma “maioria inequívoca” de apoio à troika e defende uma nova Constituição aprovada em referendo, para acabar com a “carga ideológica” que “obriga a políticas concretas, contrárias à vontade do soberano” (P, 3.9.2011). Apoia um governo de “unidade nacional” com todos os partidos, mas, corrige Soares dos Santos, deve exceptuar-se o Bloco de Esquerda, que “deve ficar completamente excluído” (E, 23.3.2011). Tudo em nome de “uma bênção”: a vinda da troika (i, 19.2.2011).

Logotipo da Fundação Francisco Manuel dos Santos

Tal como no caso de Belmiro de Azevedo, o refrão de Soares dos Santos inclui sempre a crítica à “mediocridade” dos governantes e até das elites económicas, viciadas na proximidade com os políticos. Mas, tal como o dono da Sonae, Soares dos Santos tem a virtude do pragmatismo. No seu círculo íntimo acotovelam-se figuras de governante-empresário. Fundador do PSD e do BPI, o ex-secretário de Estado Artur Santos Silva é administrador não-executivo da Jerónimo Martins desde 2004. Nogueira de Brito, secretário de Estado da ditadura com Marcello Caetano e depois dirigente do CDS, esteve à frente do grupo por mais de quinze anos, até 2004. O seu sucessor como presidente executivo da Jerónimo Martins foi Luís Palha da Silva, antigo secretário de Estado do Comércio de Cavaco Silva e diretor da sua última campanha presidencial, depois vice-presidente da Galp.

O próprio Cavaco Silva foi, em 2008, ilustre visitante da Jerónimo Martins na Polónia, romagem já feita no ano anterior por Jorge Coelho e Dias Loureiro. Mas este último é mais que uma visita: ao mesmo tempo que beneficiava da Sociedade Lusa de Negócios, Dias Loureiro exercia a presidência da Assembleia Geral da Jerónimo Martins, entre 2004 e 2007. Deste plantel de luxo fez ainda parte António Borges, administrador não-executivo até transitar para a hierarquia do FMI, de onde regressou à Jerónimo Martins e às funções no programa de privatizações do governo. 

E Angola?

O grupo Jerónimo Martins é, entre os grandes grupos, aquele que terá um menor peso do negócio angolano. Soares dos Santos tem arriscado considerações críticas, que parecem indicar passadas rupturas com o sistema de instalação vigente em Angola. Ainda recentemente, dizia em Moçambique que o seu grupo “está a estudar o país porque temos necessidade de crescer. A única coisa que me perturba é o que aconteceu em Angola, a corrupção. Moçambique não tem corrupção, ou a que existe é a normal, mínima, mas com a chegada do gás e do petróleo esta vem junta. Espero que não aconteça” (Ex, 1.11.2012).

A Jerónimo Martins tem a sua linha de internacionalização bem definida e ela vai para outras longitudes. Os investimentos na Colômbia - 400 milhões de euros anunciados entre 2011 e 2014 - pretendem fazer deste país “a nova Polónia” do grupo Jerónimo Martins. O processo foi conduzido no tempo do CEO Luís Palha da Silva, ex-diretor de campanha de Cavaco Silva. Nessa altura, a expansão internacional do grupo era dirigida por Pedro David, responsável pela área de juventude daquela campanha. Tal como Palha da Silva (hoje na Cimpor), Pedro David já não está no grupo Jerónimo Martins. Mudou-se para a Colômbia, onde preside à sucursal da Prébuild, grupo de capitais angolanos que conheceremos no capítulo 5. O seu pai, Mário David, é um dirigente importante do PSD, deputado europeu e foi um dos convidados portugueses a tomar a palavra no último congresso do MPLA, em 2009.

Se é verdade que, em todo o caso, Soares dos Santos não parece ter portas abertas em Luanda, o mesmo não se passa com outro dos acionistas da Jerónimo Martins. Em 2007, nas vésperas da falência do Banco Privado Português, o grupo holandês Heerema, que concebe e instala plataformas petrolíferas no mar, compra 10 dos 18,4% que o banco de João Rendeiro detinha na Jerónimo Martins. Ora, no ano seguinte, a Heerema conseguiu em Angola o maior contrato da sua história, mil milhões de dólares, no desenvolvimento da exploração do Bloco 19. Em 2013, ao venderem metade daquela quota da Jerónimo Martins, os holandeses realizaram uma mais-valia de trezentos milhões de euros (P, 15.5.2013). Apesar de tudo, aliados do grupo Jerónimo Martins têm canais de negócio com o capital angolano.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda. Jornalista.
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