Cem. Era esta a percentagem do continente português em situação de seca meteorológica no final de janeiro. No mês seguinte, foi pior. Segundo o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), a 28 de fevereiro, 66 por cento do território estava já em seca extrema – o nível mais gravoso do índice de seca –, muito acima dos 12 por cento registados em janeiro. Este foi o terceiro fevereiro mais seco desde 1931. E o pior do século em área de território em seca extrema.
Onde havia espelhos de água a perder de vista, há hoje pequenos charcos rodeados por solo seco e arenoso, em paisagens despojadas de vida
Como já não chove como antes, o volume das albufeiras das barragens não é reposto. Onde havia espelhos de água a perder de vista, há hoje pequenos charcos rodeados por solo seco e arenoso, em paisagens despojadas de vida. O uso de barragens para rega agrícola e para produção hidroelétrica foi restringido de norte a sul do país para que não falte água nas nossas casas. Na barragem do Alto Lindoso, situada na fronteira entre Portugal e a Galiza, a aldeia de Aceredo ficou a descoberto 30 anos após ter ficado submersa. Onde falta água sobra memória.
Há quem tente relativizar a seca jurando que ela é cíclica. É verdade, mas os ciclos encurtam a cada ano que passa. A crise climática provocada pelo capitalismo fóssil acelerou a frequência e a intensidade da escassez hídrica no país. Nas duas últimas décadas, a disponibilidade de água reduziu-se 20 por cento. E prevê-se que a precipitação diminua entre 10 e 25 por cento até ao final do século. Os períodos de seca são cada vez mais comuns, prolongados e severos, agravando a desertificação do país. A falta de água veio para ficar.
Existem hoje 260 grandes barragens no país. Sem água suficiente para armazenar em várias regiões, faz sentido construir mais barragens em Portugal?
A política do Governo
Perante o apelo do agronegócio à construção de novos reservatórios de grandes dimensões, a Agência Portuguesa do Ambiente avisa com sensatez que “deve ser encarado com particular cuidado para não instalar este tipo de equipamentos onde não há água; por isso é que hoje temos barragens vazias”. A solução, aponta, passa por melhorar as condições de armazenamento das infraestruturas que já existem e não por criar outras.
A APA avisa que “deve ser encarado com particular cuidado para não instalar este tipo de equipamentos onde não há água”
Mas esse não é o entendimento do Governo. No Crato, em Portalegre, António Costa quer gastar 171 milhões de euros na construção da barragem do Pisão, idealizada pelo Estado Novo, mas nunca executada por falta de viabilidade. Impulsionada pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), a ideia é criar condições, de curto prazo, para abastecer de água a agricultura intensiva, sobretudo culturas permanentes como o olival e o amendoal. Tudo à custa do erário público, dos ecossistemas e dos parcos recursos hídricos da região. Caso se concretize, a obra obrigará à relocalização da aldeia do Pisão.
O objetivo é avançar com o chamado “Projeto Tejo”, um Alqueva de 4500 milhões de euros para o Vale do Tejo e Oeste
Há planos de maior monta para o Tejo. A ministra da Agricultura, Mária do Céu Antunes, vê no regadio uma prioridade e para lhe dar corpo criou uma equipa para estudar “o que é necessário fazer no Tejo”. O objetivo é avançar com o chamado “Projeto Tejo”, um Alqueva de 4500 milhões de euros para o Vale do Tejo e Oeste, assente na construção de barragens, açudes e outras barreiras ao longo do curso do rio e afluentes. Segundo o deputado do PSD, Duarte Marques, é o “interesse nacional que está em causa”, sendo impensável “deixar correr tudo para o mar”. O centrão posiciona-se.
Já Matos Fernandes, ministro do Ambiente e da Ação Climática, “só quer mais uma nova barragem”. O Governo idealiza-a para o rio Ocreza, um afluente do rio Tejo situado em Castelo Branco, onde há décadas o agronegócio clama pela construção da barragem do Alvito. Segundo o governante, a infraestrutura “terá objetivos exclusivamente ambientais, de lançar água no Tejo em caso de estiagem, para proteger ecossistemas”. Mas de seguida avisa que “há-de poder ter outros usos secundários”.
Como o Governo não divulgou qualquer estudo, pouco se sabe. Mas Pedro Serra, ex-presidente do Instituto da Água e do grupo Águas de Portugal, é mais esclarecido e lembra que “a bacia do Tejo é o filet mignon da agricultura portuguesa” e “uma das áreas de regadio mais importantes que temos”. Questionado sobre o que deve ser feito para promover o regadio, atira sem rodeios: “pelo menos construir a barragem do Alvito”. O “Projeto Tejo” está lançado.
há uma aposta clara do Ministério da Agricultura no apoio à agropecuária intensiva e a culturas permanentes desadequadas, mas o interesse público exige o contrário
A agricultura utiliza hoje 75 por cento do volume de água captado em Portugal. A crescente escassez hídrica aumenta a disputa e a apropriação deste recurso vital. Ainda mais quando há uma aposta clara do Ministério da Agricultura no apoio à agropecuária intensiva e a culturas permanentes desadequadas das nossas condições edafoclimáticas, que secam tudo à sua volta. Mas o interesse público exige o contrário: adequar a área e tipologia de agricultura aos recursos hídricos disponíveis, à proteção dos solos e à conservação da biodiversidade, enquadrando-se nas projeções climáticas de cada região.
Ao contrário do que se possa pensar, o agronegócio não nega a crise climática. Mas assume que havendo mais períodos de seca e também mais fenómenos extremos de precipitação, a solução passa por aumentar a capacidade de regularização e de armazenamento de água para manter (e aumentar) consumos de rega. É intuitivo, mas errado. Mesmo com o aumento da variabilidade da disponibilidade de água – menos chuva, mas mais concentrada no tempo –, estudos recentes mostram que, à exceção do Minho, há escassez hídrica em todas as bacias hidrográficas, com tendência a agravar-se com as alterações climáticas, tornando inviável a manutenção de consumos presentes e projetados para muitos pontos do país.
Impactes ambientais
As barragens desempenham funções diversas, dependendo do seu tamanho e tipologia. Produzem energia; abastecem a agricultura e o consumo humano; atenuam caudais em locais suscetíveis a cheias; e ligam as margens de cursos de água, possibilitando a sua travessia. Mas a fatura social e ambiental é enorme. E existem alternativas viáveis a cada um dos benefícios.
Face aos impactes negativos, a construção de uma nova barragem deve ser rigorosamente ponderada
Face aos impactes negativos, a construção de uma nova barragem deve ser rigorosamente ponderada, com base em informação científica rigorosa sobre disponibilidades hídricas e projeções climáticas. Acima de tudo, a decisão deve ser transparente e defender sempre o interesse público.
A fragmentação de rios por barragens, açudes e outros obstáculos contribuiu para que os ecossistemas fluviais estejam hoje entre os mais ameaçados do mundo. Entre 1970 e 2014, as populações de espécies de água doce do planeta diminuíram 83 por cento – uma perda superior à registada nas populações marinhas e terrestres. A ameaça avança também em Portugal, com mais de 60 por cento das espécies nativas em risco de extinção.
A interrupção do livre curso dos rios altera o seu regime hidrológico e restringe a mobilidade de espécies aquáticas. Peixes migradores como a lampreia-marinha, o salmão, o sável ou a truta-marisca estão a desaparecer dos nossos rios porque não conseguem deslocar-se para montante e aceder a locais de desova. Os últimos exemplares de esturjão foram avistados na década de 80. Hoje não habita as águas do nosso país. Está extinto.
A produção hidroelétrica produz emissões de gases com efeito de estufa. A decomposição por microrganismos de matéria orgânica presente nos sedimentos das albufeiras liberta metano para a atmosfera, um gás 34 vezes mais potente que o dióxido de carbono na sua capacidade de aquecimento. Um estudo recente publicado na revista científica BioScience estimou que as barragens são responsáveis por 1,3 por cento das emissões anuais de origem antrópica. É um valor equivalente às emissões do Canadá.
As paredes de betão das barragens impedem o transporte de sedimentos até ao mar, agravando a erosão costeira. Este é um dos fatores responsável pelo recuo acentuado da linha de costa portuguesa nas últimas décadas. Com a subida inexorável do nível médio do mar fruto das alterações climáticas, as povoações costeiras estão cada vez mais ameaçadas. No norte e centro do país, a relocalização de comunidades será inevitável.
Apesar da evidência, é comum ouvir lobistas do agronegócio dizer que a água dos rios não se pode “perder” para o mar. A ânsia pela apropriação da água é imensa, num país onde ela escasseia. Exigem mais barragens, mais transvases e mais captações para alimentar a agricultura intensiva que destrói solos, biodiversidade, paisagens e modos agrícolas adaptados às condições edafoclimáticas do nosso país. A voragem extrativista não tem limites.
Futuro: remover barragens
um estudo publicado na Nature estima a existência de mais de 16 mil barreiras artificiais nos nossos rios e ribeiras
Segundo inventários oficiais, os cursos de água em Portugal estão fragmentados por 1197 barragens, açudes e outros obstáculos. No entanto, este número andará longe da realidade. Um estudo publicado no final de 2020 na revista Nature estima a existência de mais de 16 mil barreiras artificiais nos nossos rios e ribeiras. Muitas destas barreiras estarão obsoletas, continuando a provocar danos nos ecossistemas fluviais apesar de não terem qualquer utilidade.
A transição climática requer mais produção de energia renovável. Mas isso não implica aumentar a produção hidroelétrica das barragens
A transição climática requer mais produção de energia renovável. Mas isso não implica aumentar a produção hidroelétrica das barragens. Um dos modos mais democráticos e com menos impactes nos ecossistemas é a produção solar descentralizada. Não descurando o papel da produção eólica, em terra e no mar, e a energia das ondas, a descarbonização deve passar por aumentar o aproveitamento do elevado número de dias de sol anuais. O controlo democrático da energia requer empresas públicas e cooperativas que acelerem a transição energética, sem que isso signifique custos incomportáveis para as pessoas. Pagamos hoje mais do que devíamos por energia desde que a EDP foi privatizada e lhe foram atribuídas rendas excessivas. As portas giratórias saem caras.
não nos iludamos: a grande mudança terá de acontecer no setor agrícola porque é ele o responsável pelo consumo da maioria do volume de água captado no país
Perante o agravamento da seca, a resposta também não pode centrar-se na construção de mais barragens. Não choverá o suficiente para enchê-las, sobretudo a sul do Tejo. É preciso reduzir desperdícios, aumentando substancialmente a reutilização de águas residuais e melhorando as redes urbanas que registam perdas importantes. Mas não nos iludamos: a grande mudança terá de acontecer no setor agrícola porque é ele o responsável pelo consumo da maioria do volume de água captado no país – 75 por cento. O atual modelo agrícola assente na monocultura intensiva e no elevado consumo de água deve adaptar-se às condições edafoclimáticas do país e aos processos ecológicos, respeitando sempre os direitos de quem trabalha. Assim, poupamos os recursos hídricos, salvaguardamos a biodiversidade, melhoramos a qualidade da nossa alimentação e avançamos rumo a um país mais justo. Precisamos de uma transição ecológica na agricultura.
Não precisamos de mais barragens, mas de rios livres
A nova Estratégia da Biodiversidade da União Europeia para 2030 tem num dos seus objetivos recuperar 25 mil quilómetros de rios europeus através da remoção de barreiras artificiais. O governo português comprometeu-se com este objetivo e por isso deve fazer a sua parte. E já vai atrasado: Suécia, França, Estado espanhol, Reino Unido e Estados Unidos da América já removeram mais de 5 mil barreiras obsoletas dos seus rios. Não precisamos de mais barragens, mas de rios livres.
Artigo de João Garcia Rodrigues