Água: aprender com o passado para termos futuro

A gestão de um bem do qual depende a vida, os ecossistemas e o bem-estar social não pode ser entregue e mantida na esfera de um estado mínimo e na influência de uso e sustentabilidade do setor privado. A realidade está aí para nos mostrar que está na hora de reverter estas medidas. Artigo de Maria Manuel Rola.

15 de março 2022 - 15:36
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Água - Foto de Paulete Matos

Portugal é conhecido por ter uma Lei Quadro da Água bastante condizente com a respetiva Diretiva Quadro que refere que “a água não é um produto comercial como outro qualquer, mas um património que deve ser protegido, defendido e tratado como tal”. Também é conhecido por ter desenvolvido um bom sistema de proteção e pelo alargamento bem sucedido dos recursos hídricos a nível territorial e social. Portugal conseguiu muito rapidamente responder à cobertura de saneamento e ao aumento da qualidade da água potável em linha com as metas europeias.

O modelo que tínhamos de alargamento do acesso à água e de fiscalização dos recursos hídricos foi desmontado, penalizando a boa gestão da água e o acesso à “água vida” como direito universal

Não obstante esse reconhecido sucesso, a avaliação das políticas tomadas na última década, desde a concessão de sistemas municipais de água a privados à agregação do Instituto Nacional da Água na Agência Portuguesa do Ambiente - ambas da lavra do PSD/CDS e mantidas pelo Partido Socialista - não têm sido feitas. Portugal tem vindo a perder no caminho que havia sido feito até 2010. O modelo que tínhamos de alargamento do acesso à água e de fiscalização dos recursos hídricos foi desmontado, penalizando a boa gestão da água e o acesso à “água vida” como direito universal. O resultado é uma gestão que “deixa fazer”, onera os contribuintes, onera os consumidores e ainda permite a poluição de rios e ribeiras e a ideia de que se podem construir planos nacionais de barragens sem que exista uma Avaliação Ambiental Estratégica, por exemplo. Existe uma pilhagem em curso à água e ao direito constitucional a um ambiente saudável e ao seu usufruto e “o direito à água potável e ao saneamento como um direito fundamental para o pleno desfrute da vida e de todos os direitos humanos” está em risco no mundo, mas também no país que ainda vive à sombra de um “sucesso” que ficou no passado e já não corresponde às políticas públicas e governação dos dias de hoje.

Existe uma pilhagem em curso à água e ao direito constitucional a um ambiente saudável e ao seu usufruto

Estamos perante uma crise ecológica dos ecossistemas aquáticos com o exaurir dos aquíferos subterrâneos, da degradação do sistema natural de infiltração de água nos solos, da manutenção e aprofundamento da artificialização dos cursos de água, da excessiva utilização de fitoquímicos - agricultura intensiva no Alentejo e costa alentejana, mas também vinha no rio Douro - na agricultura, das descargas da produção animal - como ocorre em Leiria com a suinicultura - entre outras. A degradação da qualidade das águas é uma evidência e a Agência Portuguesa do Ambiente, com a sua estrutura vertical, pouco ancorada no terreno e sem atribuição de autonomia de gestão e financeira às regiões hidrográficas, foi arquitetada para não conseguir dar resposta à identificação destes problemas que as populações denunciam cada vez mais.

Esta ideia de que a água e os rios podem ser privatizados, podem ser artificializados ou vedados, que não é necessária uma gestão de proximidade e capacidade instalada no terreno levou a enormes ineficiências e irracionalidade na gestão das águas, desenvolveu problemas de governabilidade e participação e até de confiança na atuação das instituições públicas. A Agência Portuguesa do Ambiente tem sido constantemente imputada pelos cidadãos pela sua inoperância na proteção do ambiente e recursos hídricos.

está claramente na hora de recuperar a gestão que se mostrou funcional, não só a nível de proteção ambiental, mas também a nível social e económico

Com a aprendizagem feita, de modelos que resultam e que não resultam, está claramente na hora de recuperar a gestão que se mostrou funcional, não só a nível de proteção ambiental, mas também a nível social e económico. Esta é uma necessidade tanto mais urgente quanto percebemos o problema da gestão privada das barragens no nosso país, com a contenda na albufeira de Santa Clara, entre a autarquia e pequenos produtores com a Associação de Beneficiários do Mira, a ilustrar a irracionalidade ambiental e social que é manter entidades privadas tomadas por interesses próprios a gerir um bem comum e escasso. É ainda mais urgente, porque o efeito das alterações climáticas tende a intensificar-se e a aprofundar o impacto da ação humana na disponibilidade e qualidade da água.

Seja para a agricultura, para a indústria, ou para consumo humano, temos de ter a certeza que as entidades que gerem a utilização da água defendem o interesse da sua qualidade e disponibilidade

Seja para a agricultura, para a indústria, ou para consumo humano, temos de ter a certeza que as entidades que gerem a utilização da água defendem o interesse da sua qualidade e disponibilidade, permitindo a criação de ecossistemas florestais favoráveis à recarga dos aquíferos, que privilegiam a retenção descentralizada e não enveredam por projetos megalómanos concentracionários de albufeiras que tendem a agravar o problema de utilização insustentável da água. Estas entidades devem ter, como já tiveram no passado, autonomia financeira e territorial, articulada por uma instituição nacional.

Recuperar o modelo descentralizado das regiões hidrográficas tuteladas por um instituto nacional da água é uma urgência

Recuperar o modelo descentralizado das regiões hidrográficas tuteladas por um instituto nacional da água é uma urgência, num pus que será profundamente penalizado pelas alterações climáticas e que cada vez mais se verá a braços com falta de disponibilidade hídrica. O papel vital da água na vida, na biosfera marinha e terrestre, não se coaduna com a retirada de intervenção pública pela qual o liberalismo pugna e que viu o seu expoente neste campo com a ministra Assunção Cristas em 2012. A gestão de um bem do qual depende a vida, os ecossistemas e o bem-estar social não pode ser entregue e mantida na esfera de um estado mínimo e na influência de uso e sustentabilidade do setor privado. A realidade está aí para nos mostrar que está na hora de reverter estas medidas.

Artigo de Maria Manuel Rola

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