A agricultura portuguesa consome atualmente cerca de 75% da água anualmente utilizada no país, ultrapassando largamente a média da União Europeia (24%). Este diferencial justifica-se essencialmente com as especificidades do clima mediterrânico, onde a água é um recurso naturalmente escasso, com disponibilidades crescentemente heterogéneas ao longo do ano. Assim, em Portugal e em todo o sul da Europa, a agricultura tem necessidades de rega muito maiores. Em Espanha e na Grécia o consumo de água de rega pela agricultura representa 79% e 81% do total, respetivamente. Sendo necessário que a política pública estabeleça tetos máximos para os usos agrícolas, protegendo os ecossistemas e as restantes atividades socioeconómicas, em Portugal, como em todo o mediterrâneo, é especialmente importante que a mesma dirija também, em função do interesse público, os destinos da água no interior do sector agroflorestal e pecuário.
é essencial que a política de regadio seja integrada numa estratégia mais vasta de adaptação e mitigação das alterações climáticas
Actualmente apenas 16% da Superfície Agrícola Utilizada está equipada com sistemas de rega. Além de salvaguardar a equidade social e territorial, questão que desenvolvi noutro artigo deste dossier, é essencial que a política de regadio seja integrada numa estratégia mais vasta de adaptação e mitigação das alterações climáticas e dê o seu modesto contributo para a transição ecológica das explorações agrícolas.
Modesto porque o território agrícola continuará a ser essencialmente de sequeiro (sem rega) e, portanto, a política pública deve priorizar as medidas que otimizem os sistemas de produção agrícola, florestal e pecuária que não recorrem ao regadio ou que o fazem de forma complementar, preparando-os para cenários de seca mais frequentes e intensos. Acresce que esta perspetiva tem a vantagem de assegurar o uso mais produtivo da água (regadio como complemento ao sequeiro e culturas de outono-inverno) e de garantir uma maior distribuição social e territorial dos seus benefícios, reduzindo os riscos de abandono em vastas áreas do território. Este não tem sido o caminho seguido pelos sucessivos Governos.
a política pública deve priorizar as medidas que otimizem os sistemas de produção agrícola, florestal e pecuária que não recorrem ao regadio
Os impactos das alterações climáticas sobre os sistemas agrários são muito diversificados e variam muito em função das especificidades locais, da seca ao aumento da incidência de pragas e doenças, da erosão dos solos à perda de biodiversidade. Sendo o território português muito heterogéneo de norte a sul, do ponto de vista biofísico e socioeconómico, são necessárias estratégias regionais para construir as melhores respostas. Há a vantagem de algumas das mais urgentes medidas terem efeitos benéficos em várias frentes. É exemplo a diversificação de culturas, com a prática de rotações e consociações, que aumentam a resiliência do sistema produtivo como um todo: mais resistência a pragas e doenças, menos dependência de adubos e pesticidas, mais resistência aos eventos extremos (ex: secas e inundações), maior preservação de biodiversidade, entre outras vantagens.
Apesar da palavra resiliência ter ocupado o discurso político entre a generalidade dos governantes, a política agrícola continua a ignorar a necessidade de aumentar a resiliência dos ecossistemas agrários nas suas várias dimensões. A política dominante tem privilegiado os resultados económicos rápidos dos sistemas de produção intensivos em monocultura e com gestão extrativista. Este privilégio é garantido pelo elevado nível de financiamento público, direto e indireto, pelas insuficiências da política de ordenamento e fiscalização e pela ausência de serviços de extensão rural.
Ignorar a necessidade de intervenção através de processos ecológicos é um erro tremendo que se agrava em contextos de escassez de água e seca
O caminho para a transição ecológica dos ecossistemas agrários em resposta ao interesse público faz-se pela aplicação de políticas públicas que, reconhecendo a diversidade do território e garantindo mecanismos de equidade social e territorial, dirigem esforços através da combinação de duas vias ao nível da exploração agrícola: 1) aumento da eficiência do uso de fatores de produção; 2) substituição de inputs industriais por processos ecológicos. Com muitas limitações, a política pública tem se focado essencialmente na primeira, ignorando a necessidade de intervir sobre os processos ecológicos através das lógicas da agroecologia (ver aqui). Ignorar a necessidade de intervenção através de processos ecológicos é um erro tremendo que se agrava em contextos de escassez de água e seca. Sem políticas públicas que reconheçam verdadeiramente esta necessidade e que obriguem a uma mudança profunda nos usos da água e do solo, ao nível da exploração agrícola e da paisagem, dificilmente se conseguirão sustentar vastas áreas agrícolas do território nacional, assim como a biodiversidade que delas depende, o património cultural e paisagístico, mas também as atividades socioeconómicas conexas a estas esferas.
Talvez o mais evidente bom exemplo que existe no país a este respeito seja o caso do montado quando gerido em agricultura de conservação
Talvez o mais evidente bom exemplo que existe no país a este respeito seja o caso do montado quando gerido em agricultura de conservação, um modelo agrosilvopastoril com capacidade de regenerar os solos e de fechar o ciclo de produção quando recorre ao regadio para culturas de outono-inverno. Trata-se de um exemplo onde a intervenção por via de processos ecológicos combinada com tecnologias de precisão possibilitou otimizar o uso da água, obter ganhos de produtividade, diversificar as fontes de rendimento e reduzir substancialmente a dependência de inputs (fertilizantes, energia e rações). Importa agora criar condições políticas para expandir este modelo. Outros caminhos podem ser feitos e há aprendizagens relevantes em Portugal obtidas com a aplicação dos conhecimentos científicos da Produção Integrada e da Agricultura Biológica.
Como é possível a existência de monoculturas superintensivas de olival com dimensão paisagística, beneficiárias de apoios públicos como se praticassem Produção Integrada?
Infelizmente, ao longo dos anos temos assistido à deturpação destes modos de produção por via da aplicação de muitos apoios públicos em forma de rendas fundiárias que lesam o interesse público. É frequente o surgimento de explorações agrícolas que são certificadas e beneficiárias de apoios públicos conexos a estes modos de produção mas que mantêm lógicas de funcionamento semelhantes às agriculturas convencionais, ignorando as necessidades de avaliação de risco e os métodos de ponderação das intervenções a fazer que deviam priorizar as formas menos agressivas para os ecossistemas e com menores riscos para a saúde humana. Como é possível a existência de monoculturas superintensivas de olival com dimensão paisagística, beneficiárias de apoios públicos como se praticassem Produção Integrada? Não praticam rotações nem consociações, não garantem corredores ecológicos nem diversidade de infraestruturas ecológicas com gestão adequada que promovam a limitação natural de pragas e doenças e a preservação de biodiversidade. Instalam culturas segundo o maior declive e geram grandes níveis de erosão do solo destruindo a sua fertilidade.
Para o imediato, na resposta à seca como aos restantes impactos das alterações climáticas, precisamos de políticas públicas que promovam agriculturas mais centradas nos processos ecológicos, mas é preciso também deixar de financiar sistemas de produção de lógica extrativista e rendas fundiárias injustificadas
De que forma é que estes empresários agrícolas estão a priorizar os mecanismos naturais face à aplicação de fatores poluentes? Não estão. O que justifica então, nestes casos, a entrega dos apoios da Produção Integrada (PRODI)? Menos vulgar, mas também no caso da Agricultura Biológica (AB) encontramos áreas de produção a funcionar em monocultura que acabam por seguir lógicas de funcionamento semelhantes aos modos de produção convencionais, embora com menos opções disponíveis. Para agravar a situação, há uma parte substancial destes apoios (PRODI e AB) que são entregues em forma de renda fundiária e aplicada em terras não cultivadas de proprietários oportunistas (ver aqui).
Para o imediato, na resposta à seca como aos restantes impactos das alterações climáticas, precisamos de políticas públicas que promovam agriculturas mais centradas nos processos ecológicos, mas é preciso também deixar de financiar sistemas de produção de lógica extrativista e rendas fundiárias injustificadas. Não menos importante, é necessária a construção de políticas de ordenamento que promovam paisagens agroalimentares e florestais heterogéneas e a construção de serviços de extensão rural que permitam incorporar conhecimento e monitorizar atividades agrícolas e florestais.
Artigo de Ricardo Vicente