A produção agrícola no Alentejo tem sofrido transformações profundas nos últimos anos. Dos 360 mil hectares de olival do país, quase metade está situada no Alentejo. Só na área de regadio do empreendimento de fins múltiplos do Alqueva foram inscritos mais de 68 mil hectares em 2020, uma área sete vezes superior aos 9 mil hectares de 2011. O olival de regadio ocupa hoje 61% da área beneficiada do Alqueva, de longe a mais importante deste empreendimento. Sabemos que uma grande parte corresponde a monocultura intensiva e superintensiva em extensas propriedades agrícolas adquiridas ou arrendadas por grandes grupos económicos a preços que inviabilizam a sua rentabilização com base na agricultura convencional. Esta transformação não só tem alterado a paisagem e o uso de recursos naturais, como tem afastado agricultores que praticam modos sustentáveis de produção.
O olival de regadio ocupa hoje 61% da área beneficiada do Alqueva, de longe a mais importante deste empreendimento. Uma grande parte corresponde a monocultura intensiva e superintensiva em extensas propriedades agrícolas adquiridas ou arrendadas por grandes grupos económicos
Em muitas das novas explorações agrícolas no Alentejo é comum ver tanto oliveiras como amendoeiras plantadas em sebes com densidade superior a 1.500 pés por hectare, quando no método tradicional este valor é inferior a 300, o que permitiu a mecanização contínua, noite e dia. Estamos a falar de exploração sem limite e sem regras. As associações ambientalistas portuguesas apontam já para mais de 200 mil hectares em regime de exploração intensiva e demonstram grande preocupação com esta alteração e a falta de consideração dos efeitos já presentes das alterações climáticas. Cenários futuros apontam para mudanças climáticas profundas no sudoeste da Península Ibérica, com subida da temperatura média e descida dos níveis de precipitação. Daqui resultará a redução da disponibilidade hídrica e de caudais e menor recarga dos aquíferos subterrâneos.
Ora, se os sistemas intensivos e superintensivos apresentam grande produtividade, também degradam rapidamente os recursos naturais, com destruição de biodiversidade, muitas vezes acompanhada de elevados níveis de erosão e contaminação do solo e dos recursos hídricos. O risco de danos ambientais significativos é muito elevado em consequência do enorme consumo de fatores de produção, nomeadamente adubos e pesticidas, da exposição de elementos mais suscetíveis como aves, insetos e recursos hídricos, mas também da extensão territorial que estes sistemas podem atingir e do impacto na paisagem.
se os sistemas intensivos e superintensivos apresentam grande produtividade, também degradam rapidamente os recursos naturais, com destruição de biodiversidade, muitas vezes acompanhada de elevados níveis de erosão e contaminação do solo e dos recursos hídricos
Mas isto não assusta o Governo que tem, desde 2018, um Programa Nacional de Regadios com mais de 560 milhões de euros nacionais e europeus para gastar em infraestruturas de rega. Do total do investimento, 233 milhões, ou 42%, serão destinados a novo regadio apenas para o Alqueva. São 51.420 hectares de nova área regada até 2023, o que contrasta com os escassos 132 hectares para o Algarve e Sudoeste Alentejano, 180 para o Litoral Norte e Centro e 3.600 para o Interior Norte e Centro. Todo este projeto não foi sujeito a Avaliação Ambiental Estratégica, tal como se não fosse a mobilização social a Estratégia Nacional do Lítio não teria sido.
Como se não bastasse, existem ainda planos extraprograma já inscritos no Programa de Recuperação e Resiliência para retomar um projeto de 1957 para construir uma grande barragem em Portalegre, a barragem do Pisão, e criar 12 mil hectares de novo regadio na região. Mais 120M, e ascendemos com isto a um total de 680M. Mas, e se atentarmos ainda ao Programa Nacional de Investimentos (PNI 2030), com 750M em que 400M se destinam a novo regadio entre 2021 e 2030, estamos a falar já de um total de 1.430M apenas para Regadio até 2030.
É caso para relembrar o que diz o Conselho das Obras Públicas em parecer sobre este programa: “A construção ou reparação de obras e equipamentos hidráulicos, não garante, por si só, que não se repitam erros de natureza tecnológica, económica e ambiental, de um passado recente, sobretudo no Sul do país, e agora possivelmente replicados em outras regiões, associados a uma agricultura de regadio, de grande escala, lesiva dos recursos solo e água, da paisagem e dos ecossistemas.”
Nos últimos anos tem vindo a existir pressão para a construção de outra barragem que está a ser pensada para o rio Ocreza (a antiga barragem do Alvito) e que tudo indicia poderá servir para alimentar o “Projeto Tejo” – um projeto megalómano para aumentar a área de rega no Ribatejo. Segundo os promotores, este projeto abrangeria 300 mil hectares e necessitaria de 4.500 milhões de euros para criar “um Alqueva no Ribatejo”. No programa eleitoral do Partido Socialista no distrito de Santarém às últimas eleições legislativas estava, em primeiro lugar, o compromisso de “concluir e apresentar o estudo de viabilidade do Projeto Tejo e estabelecer um programa de defesa dos recursos hídricos da região”, uma óbvia contradição nos termos.
Estas apostas do Governo, algumas já consumadas e outras em implementação, denotam que, no que toca à produção agrícola intensiva e superintensiva, o que temos vindo a assistir no Alentejo, nomeadamente em Beja e em Serpa, mas também no área de influência do Mira e no Algarve, é apenas o início de um ciclo de aposta em regadio intensivo para a instalação e rentabilização de monoculturas que provocam sérios danos ambientais, culturais e paisagísticos, já para não falar na escravatura e ataque aos direitos humanos a que temos vindo a assistir sobre quem vem para Portugal trabalhar neste setor.
ao invés de se colocar limites aos consumos e à expansão dos sistemas de regadio intensivo, e de se promover a boa gestão e a reutilização da água, o que o Governo quer para os próximos anos é a expansão área regada para culturas permanentes que se aproxima dos 400 mil hectares
Ora, ao invés de se colocar limites aos consumos e à expansão dos sistemas de regadio intensivo, e de se promover a boa gestão e a reutilização da água, o que o Governo quer para os próximos anos é a expansão área regada para culturas permanentes que se aproxima dos 400 mil hectares.
Não se pode dizer que é por desconhecimento dos impactes negativos que o Governo decide apostar no regadio intensivo. Projetos de investigação sobre desertificação e conservação da natureza desenvolvidos em Portugal, como o Lucinda – Land Care in Desertification Affected Areas alertam num dos seus fascículos que a “a água é um recurso crítico nas regiões Mediterrâneas semiáridas, um fator que (em termos de quantidade e qualidade) limita a atividade agrícola. A disponibilidade de água é uma enorme preocupação, fundamental para todos os países, especialmente para aqueles que sofrem condições áridas, semiáridas ou subhúmidas, secas e são ameaçadas pela desertificação. Nestas áreas as questões hídricas causam preocupação, discussão e conflitos entre os utilizadores. A agricultura é o uso que mais procura de água exige no Mundo inteiro (70% de uso deste recurso), sendo uma percentagem ainda maior nos países em desenvolvimento (95%). Nos países Mediterrâneos usa‐se 75‐80% dos recursos hídricos. Existe uma forte distribuição regional da procura de água para rega. As 41 regiões europeias (de um total de 332) que apresentam o maior consumo de água para fins agrícolas (mais de 500 milhões m³/ano) estão localizadas no Sul da Europa. A água é essencial para assegurar segurança alimentar em muitos países.”
É, portanto, responsabilidade do Governo garantir que estes conflitos não se agravam e que a gestão da água em tempos de alterações climáticas é feita tendo em conta o bem-comum, contendo o extrativismo e a degradação dos recursos e da disponibilidade hídrica, combatendo a desertificação e a degradação dos solos. No mesmo documento pode ler-se que “de um ponto de vista qualitativo, a agricultura intensiva forçou um forte processo seletivo de ecótipos vegetais (subespécies, variedades, etc.) na procura daqueles que são mais produtivos. Tal conduziu a uma perda de biodiversidade que afeta todo o ecossistema, favorecendo os processos de degradação. A FAO afirma que, no séc. XX, cerca de 75% da biodiversidade genética do mundo foi perdida.” Acrescenta que “à agricultura de regadio encontram‐se associados importantes processos de degradação como a salinização, sobre exploração dos aquíferos, contaminação do solo por pesticidas e fertilizantes, erosão do solo e alterações da paisagem.”
Está o Governo português do lado dos negacionistas?
Também em 2017, especialistas das Nações Unidas sinalizavam o facto de práticas agrícolas com altos índices de “inputs” poderem atentar contra os direitos humanos. À data, uma nota de imprensa emitida pelos relatores especiais da ONU para a Alimentação e para o Uso de Tóxicos dizia que “certos pesticidas podem persistir no meio ambiente por décadas e representam uma ameaça para todo o sistema ecológico do qual a produção de alimentos depende. O uso excessivo de pesticidas contamina o solo e as fontes de água, causando perda de biodiversidade, destruindo os inimigos naturais das pragas e reduzindo o valor nutricional dos alimentos. O impacto desse uso excessivo também impõe custos surpreendentes às economias nacionais em todo o mundo.”
No mesmo sentido, a reportagem do jornal Público “A outra face do sucesso do Alqueva é um Alentejo envenenado por químicos” alerta para os problemas que a população local tem vindo a apontar, às quais se juntam autarcas e ambientalistas. Todos pedem que sejam tomadas medidas que controlem a “chuva de químicos”, os cheiros intensos e a falta de informação sobre licenciamentos e que se atue para parar a alteração radical da paisagem, a desertificação, os danos ambientais e os impactes negativos na saúde das populações.
Ora, se até agora falamos em menos de 200 mil hectares com todos estes impactes, basta pensar o que acontecerá com a duplicação da área passível de agricultura permanente de regadio, que fomentará o uso de agrotóxicos, o maior uso da água já escassa nesta zona do país e levará aos anunciados conflitos sociais e à disputa por recursos. Neste contexto e com o que temos visto e sentido neste inverno de seca impõe-se a pergunta: está o Governo português do lado dos negacionistas?