O outro aspeto do Maio de 68: a greve geral com ocupação dos locais de trabalho

“No princípio de junho [de 68], havia sete milhões de trabalhadores em greve, na França toda. Não havia gasolina, não havia restaurantes abertos” destaca José Mário Branco ao esquerda.net, no seu testemunho sobre o Maio de 68. Entrevista de Carlos Santos

16 de dezembro 2018 - 11:52
PARTILHAR
A ocupação da fábrica LIP em Besançon durou anos - Imagem lesutopiques.org

Um processo com uma força social espantosa”

José Mário Branco viveu o Maio de 68 em Paris, em França e nele participou ativamente. Começa por destacar que o Maio de 68 não foi só uma “festa libertária”, foi também “um processo com uma força social espantosa”.

“O Maio de 68, se a gente olhar bem, não foi só essa festa libertária mais espetacular”, sublinha, lembrando os cartazes, as palavras de ordem, as fotografias, “espantosas... com a malta a rir-se para a polícia de choque”, as barricadas, “que em Paris tinham memórias históricas 1871 da Comuna de Paris e de 1840”.

O artista salienta então “um outro aspeto do Maio”, que conheceu bem: “foi haver sete ou oito milhões de operários, trabalhadores em greve com ocupação dos locais de trabalho”.

“Ou seja, tudo aquilo foi um bocado despoletado pelo movimento estudantil. Mas a partir do momento em que esse movimento teve a inteligência de ir para a porta da Renault convidar os operários a juntarem-se ao movimento”, então tornou-se “um processo com uma força social espantosa”, realça.

A partir do momento em que esse movimento [estudantil] teve a inteligência de ir para a porta da Renault convidar os operários a juntarem-se ao movimento”, então tornou-se “um processo com uma força social espantosa”, realça José Mário Branco
A partir do momento em que esse movimento [estudantil] teve a inteligência de ir para a porta da Renault convidar os operários a juntarem-se ao movimento”, então tornou-se “um processo com uma força social espantosa”, realça José Mário Branco

“As pessoas hoje não têm bem a noção do que isso possa ser, pensam que fazer greve é uma coisa fácil. Muita gente pensa que é fácil. Mas eu lembro e repito, eram greves com ocupação dos locais de trabalho. Sete milhões de trabalhadores. A França parou”, frisa.

O músico conta então que conheceu bem esse movimento, porque se integrou “em grupos de artistas que iam às empresas ocupadas ou aos bairros ocupados, às escolas ocupadas, aos sítios mais variados que possas imaginar”.

“Desde estações de caminho de ferro até pracetas de bairros, todo o género de situações onde estava sempre uma bandeira preta e uma bandeira vermelha, sem quaisquer símbolos, e as pessoas estavam ali a ocupar, dia e noite, e isto durou muito tempo. O nosso papel era ir lá com atores, músicos, declamadores, fazer pequenos espetáculos. Era por um lado para os distrair e, por outro lado, dar-lhes ânimo para continuarem a luta”, lembra.

A França parou

José Mário Branco recorda então que no início um pequeno movimento surgiu na faculdade de Nanterre, com um “líder natural”, Daniel Cohn-Bendit, e que esse pequeno movimento começou depois a alastrar.

“Os grandes acontecimentos começam nos primeiros dias de maio, a 6 de maio. No princípio de junho, havia sete milhões de trabalhadores em greve, na França toda. Não havia gasolina, não havia restaurantes abertos”, frisa José Mário Branco.

Lembra depois os acordos de Grenelle, assinados pelos sindicatos com o primeiro-ministro, Pompidou.

“E, então, vem da CGT a ordem: está tudo resolvido. Temos um acordo de 10% de aumento de salários indiscriminado na França toda e para todas as categorias profissionais. Portanto, está tudo resolvido, fazem favor parem a greve, voltem para casa e depois voltem para o trabalho. A situação está normalizada”, conta o músico, salientando que “não foi fácil”.

Recorda que o filho mais novo “andou na barriga da mãe nas barricadas”, pois “faz anos a 1 de julho”, e, por isso, tem bem presente que “em meados de julho ainda havia 3 milhões de operários e outros trabalhadores”, que estava em greve com ocupação.

A radicalidade é uma força motora da história”

“Houve ocupações que duraram anos. Algumas deram origem a filmes, como por exemplo a fábrica de relógios Lip em Besançon, em que era tudo mulheres. Há um filme lindíssimo sobre a experiência delas. Entraram em autogestão, não quiseram saber e continuaram a fabricar os relógios por sua conta. Foi um processo espantoso e houve vários casos destes”, sublinha ainda.

Em setembro, o custo de vida já tinha subido 12%, o aumento de salários de 10% já tinha sido perdido na carestia. “A situação estava calma para a classe dominante. Estava completamente recuperada. O que não foi recuperado foi essa ideia: se a malta se mexe as coisas complicam-se, salienta.

“O que é normal é perceber-se que a radicalidade é uma força motora da história. É isto que é preciso perceber, acho eu. Foi o que eu aprendi”, conclui José Mário Branco

Recordando um editorial do jornal Le Monde1, José Mário Branco salienta: “a pasmaceira que a gente vive não é a normalidade, não é normal. O editorial do Le Monde estava a falar de uma coisa que seria uma normalidade. Não, o que é normal é a malta não gostar disso”, sublinha.

E conclui: “O que é normal é perceber-se que a radicalidade é uma força motora da história. É isto que é preciso perceber, acho eu. Foi o que eu aprendi”.

Entrevista de Carlos Santos e Miguel Bordalo (vídeo)


1 Artigo de Pierre Viansson-Ponté, publicado em 15 de março de 1968, com o título “Quand la France s'ennuie…” https://www.lemonde.fr/le-monde-2/article/2008/04/30/quand-la-france-s-ennuie_1036662_1004868.html

 

Termos relacionados: 1968 – 50 anos depois