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Momentos galegos do Zé Mário Branco

Dou conta de três situações que vivi e deixam, na minha opinião, bem palpável a enorme personalidade de um músico, criador de múltipla expressão e imenso homem de palco, assim como o permanente compromisso de um lutador sem concessões. Por Carlos Méixome.
Foto de Xan Carballa/Fundación A Nosa Terra.

Começo a escrever esta nota no mesmo dia (2 de junho de 2016) que se vai estrear, numa sala comercial lisboeta, o documentário Mudar de Vida. José Mário Branco vida e obra realizado e produzido por Nelson Guerreiro e Pedro Fidalgo. O filme que segue o itinerário da vida e obra do músico do Porto oferece um percorrido pela história política e social do Portugal contemporâneo.

Não pretendo nem criticar a obra musical nem a ação cultural, política e humana do Zé Mário. Imensa. Só dar conta de três situações que vivi e deixam, na minha opinião, bem palpável a enorme personalidade de um músico, criador de múltipla expressão e imenso homem de palco assim como o permanente compromisso de um lutador sem concessões. Ora bem, aproveito para presentar-lho tal e como ele mesmo fez nesse intenso alegado vital que é FMI; dizia: “Sou português, pequeno-burguês, filho de professores primários, artista de variedades, compositor popular, aprendiz de feiticeiro, faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com isto de mim e para o resto”. E recomendar a que não o fez ainda que coloquem a orelha e os olhos de vez em quando no Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades (1971), Margem de certa maneira (1973), Ser solidário (1982), o já referido FMI (1982), e o seu último trabalho em CD Resistir é vencer (2004). Com a primeira achega ao Zé Mário Branco procuraram saber do resto da sua obra.

Tratei-o fugazmente. Primeiro com motivo do festival que teve lugar no auditório vigués do Parque de Castrelos, com o objetivo de recolher fundos para ajudar na aquisição dos caros medicamentos que precisava o Zeca Afonso quando a sua doença estava já muito avançada. Um grupo de pessoas, Xico de Cariño, Manuel Álvarez, Xosé Manuel Estévez, Antón Mascato e eu mesmo, com a ajuda da Federación de Asociacións Culturais de Galicia, a Asociación Cultural de Vigo e as Xuventudes Musicais e a colaboração de muitas outras pessoas de uma e outra beira da raia organizamos aquele espécie de macrofestival que começou à volta das cinco da tarde do último dia de agosto e acabou avançada a noite do primeiro dia de setembro de 1985. Doze horas de música e poesia e mais de 20.000 pessoas no público. Os detalhes estão registados no livro que elaborou Antón Mascato para acompanhar o duplo CD que editou Edicións do Cumio no ano 2000. Com muita pena não se conseguiram incluir as duas peças que interpretou o Zé Mário. As fotografias que ilustram estas notas são de Xan Carballa, outro dos “fazedores” daquela jornada.

Uma das condições que colocamos para acolher tantas pessoas que generosamente se brindaram a participar foi que os grupos musicais só poderiam interpretar duas composições, enquanto que os oradores teriam uns escassos minutos. O ambiente do festival estava já animado quando subiu ao palco o José Mário Branco. Uma parte do público conhecia os seus CDs dos primeiros anos setenta e oitenta e sabiam do seu trabalho nos arranjos das gravações do Zeca (Cantigas do Maio (1971), Venham mais cinco (1973), Fura, fura (1979)...). A este trabalho colaborativo dedicou-se com permanente constância fazendo arranjos e/ou a produções de discos de Carlos do Carmo, Amélia Muge (outra das surpresas do festival de Castrelos), Sérgio Godinho, Fausto e, nos últimos anos, de forma quase permanente, de Camané. O que não conhecia o público era a força dele como homem de palco. A plateia entusiasmou. Ele só com uma guitarra elevou um ambiente que se manteve “no topo” até o encerramento com a interpretação do Grândola, vila morena, com todas as pessoas participantes em cima do palco. Quando acabou o Zé Mário, entre fervorosos aplausos, começou a ouvir-se o de “outra, outra, outra....” que aos poucos converteu-se num clamor; o Zé Mário voltou até ao micro e disse com a sua força declamatória: “Disciplina camaradas” e abandonou o palco.

O Zeca colocara algumas condições para que se celebrasse o festival que retirei do livro citado de Antón Mascato “... tinha que participar uma delegação de Timor Leste (naquele momento a antiga colónia portuguesa foi invadida pela Indonésia e estava submersa numa segunda luta pela independência, acabariam expulsando os indonésios -1999 e seria o primeiro estado soberano constituído no século XXI; à luta deste povo está dedicado o CD do Zé Mário Resistir é vencer), as pessoas tinham que cobrar, e havia que fazer do ato uma enorme reivindicação do galego. A representação do Timor foi de sessenta pessoas –crianças, adultos e velhos- , envoltos em vestidos coloridos, a dançarem e cantarem, mesmo com a leitura de um comunicado de denúncia da FRETILIN. Todos os participantes cobraram, cada um o que quis; algum, como o impecável José Mário Branco, fez-nos a conta partilhando a gasolina consumida por um carro de ida e volta de Lisboa a Vigo entre as cinco pessoas que viajaram, o que deu um total de oitocentos escudos. Cobrado isso, já podiam contar-lhe ao Zeca que “sim, senhor, que ele também tinha cobrado”.

Poucos meses depois, novembro 1985, aconteciam as eleições galegas. Como aconteceu em 1981, a esquerda nacionalista apresentava-se dividida. O BNG tinha nascido três anos antes e Xosé Manuel Beiras (que tinha falado no festival de Castrelos em representação da organização) era o candidato pelo círculo eleitoral da Corunha. Naquele tempo os comícios políticos ainda congregavam pessoas que desejavam ouvir o que se dizia, conhecer os candidatos, ir deitar uma olhadela e sobretudo compareciam animados e animadas. Para o BNG eram muito importantes estas eleições depois de que os três deputados do BN-PG-PSG foram expulsos do Parlamento por negarem-se a obedecer um regulamento aprovado com posterioridade a ser eleitos deputados. A outra candidatura, a do PSG-EG, estava encabeçada pelo Camilo Nogueira.

O BNG entrou em contacto com o José Mário Branco para que com as suas músicas animasse os eleitorais, creio que nas sete maiores cidades. Se não me engano, e também não é uma coisa da maior importância, acredito que o último, o “encerramento da campanha”, como se dizia, foi em Vigo. Não lembro do lugar. O Zé Mário passou aqueles dias percorrendo as nossas cidades, conhecendo ativistas e entusiasmando o público que participava nos atos de uma força política que era unha duvidosa incógnita.

 A campanha eleitoral acabou. Alguém me entregou um envelope fechado para fazer-lhe chegar ao nosso músico. Era a compensação económica que se tinha combinado. Combinei com ele num local, bem sinistro que se diga, da rua Loriga, em Vigo. Num pequeno escritóriozinho, cheio de vassouras e baldes cheios de cola, paus para pancartas, propaganda impressa, papéis, envelopes e outras coisas de utilidade semelhante, entreguei-lhe o envelope. Pensei que a coisa já estava. Para a minha surpresa pegou numa cadeira e sentou; fiz o mesmo, ao outro lado da mesa. Abriu o envelope e começou a contar as notas. Surpreendi-me perante uma atitude que tomei como desconfiança. Esta foi aumentando quando, acabada a inicial contagem, voltou a contar pela segunda vez. O Zé Mário é homem sério e de abastado bigode. Mas desta vez a contagem das notas não chegou ao fim; parou mesmo na metade. Apanhou os dois molhos de papéis assinados pelo Banco de Espanha, entregou-me um deles e disse-me: “Isto é o meu contributo à campanha do Bloque”. O Mascato, que estava presente e passou aqueles dias levando-o de um local para o outro, lembra-me da cara de surpresa com que ficou. Sabíamos que não lhe sobrava o dinheiro.

Fiquei com vontade de descer até Lisboa. Espero poder olhar, algum dia, o documentário sobre este homem que me impressionou faz tantos anos. Sei que a Margarita Ledo, que também esteve aquele dia em Castrelo, anda a fazer contactos para projetá-lo na sala Numax de Santiago de Compostela. Enquanto espero, ouço a sua música e a sua voz que me diz com Camões, “Mudam-se os tempos mudam-se as vontades”.


* Carlos Méixome - historiador e escritor galego.

Texto publicado a 2 de junho de 2016 no blogue Pé do Galiñeiro.
Tradução de Diego Garcia para o esquerda.net

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Neste dossier:

José Mário Branco 1942-2019

José Mário Branco, a voz da inquietação

Este dossier é a singela homenagem do esquerda.net ao artista, cantor, compositor e lutador contra as opressões. É um dossier com textos publicados após o falecimento, mas também com documentos publicados anteriormente no esquerda.net

Eu não cantei com o Zé Mário…

Confessei ao Zé Mário o meu arrependimento [por não ter cantado com ele em Lisboa] e ele disse-me: "tranquilo pá… existirão outras oportunidades!!". Mas nunca mais existiram… ou talvez sim! Ainda ontem cantei que “A cantiga é uma arma” (contra a burguesia) no Val do Límia. E continuarei a cantar!! Por Xose Constenla.

José Mário Branco fotografado em casa para a revista BLITZ. Foto de Rita Carmo

José Mário Branco: “A cantiga só é arma quando a luta acompanhar”

“Se decidirem mudar de vida, contem comigo. Eu não esqueci que A Cantiga é uma Arma. Mas a cantiga só é arma quando a luta acompanhar”. Ouça o áudio e leia aqui a transcrição da mensagem enviada por José Mário Branco aquando da projeção, no Desobedoc, em abril de 2014, do filme “Mudar de Vida, José Mário Branco, Vida e Obra”, de Pedro Fidalgo e Nelson Guerreiro.

José Mário Branco (1942-2019)

De longe, para muito longe

Sim, foi um músico genial, exigentíssimo, inventor da maravilha em meia dúzia de acordes e em arranjos dissonantes. Sim, foi um poeta da música raro, militante da palavra ardente, às vezes mordaz outras vezes emocionante, sempre desinstalador. Por José Manuel Pureza

Jose Mário Branco 1942-2019

O representante de todos os ouvintes futuros

Lisboa vai ser homenageada com o nome José Mário Branco numa das suas ruas, praças ou avenidas. Numa conferência em 2018, organizada pelo Bloco de Esquerda, falou sobre o processo de criação. Retirei umas notas que vale a pena deixar aqui. Por Tiago Ivo Cruz

José Mário Branco (1942-2019)

José Mário Branco saíu de cena, mas não morreu...

O maior criador de música portuguesa de todos os tempos, a par de José Afonso, saíu de cena, mas não morreu... Porque os génios vivem para sempre! Por Carlos Vieira

José Mário Branco (1942-2019)

Inquietação, inquietação, é só inquietação…

O Zé Mário não é só um músico, eu vejo-o como um construtor de canções, um “influenciador” dando sempre de si a outros artistas que por sua vez nos deram a nós grandes momentos de Cultura. Por Helena Pinto

José Mário Branco, um compositor e arranjador que vai sempre à frente

Abril, mês de todos os sonhos, todos os projectos, todos os delírios. E lá andava o Zé Mário em todas as frentes e, sobretudo, na frente da música. Por José Fanha.

Momentos galegos do Zé Mário Branco

Dou conta de três situações que vivi e deixam, na minha opinião, bem palpável a enorme personalidade de um músico, criador de múltipla expressão e imenso homem de palco, assim como o permanente compromisso de um lutador sem concessões. Por Carlos Méixome.

Do Zé e do Zeca, com a Galiza ao fundo

O Zé Mário Branco fica para sempre no melhor deste povo da Galiza, consciente da sua dependência colonial, dos seus direitos negados e da pilhagem económica, linguística e cultural, com o qual foi tão solidário. Por Antón Mascato.

Criatividade e musicalidade postas ao serviço de uma cidadania inteira e vertical

Escorado nessa amizade, fui acompanhando o seu percurso no Teatro do Mundo, na UPAV e noutros palcos, admirando-lhe a criatividade, a musicalidade e a oratória, postas ao serviço de uma cidadania inteira e vertical. Por Manuel Pedro Ferreira.

Muito mais vivo que morto

Foi através da permanente inquietação por saber que a fome e a sede existem, a do estômago e a de viver, que José Mário Branco se apaixonou pela música e com ela fez caminho até há pouco. Por Pedro Fidalgo.

José Mário Branco e Luís Cília. Regresso a Portugal, em abril de 74. Reprodução de imagem da RTP Arquivo.

O Zé Mário é, sobretudo, um excelente músico

Em declarações ao esquerda.net, o compositor e intérprete musical Luís Cília refere que Zé Mário era "um excelente compositor de canções": "Isso é o principal. Mas, a vários níveis, o Zé Mário Branco teve um trabalho muito importante", frisa.

Foto de Arlindo Camacho.

“Só guardamos o que demos”

A resposta do meu pai foi uma das maiores lições de humanidade que recebi na vida. Partilho agora com vocês uma parte desta mensagem. Façam bom uso dela! Por João Branco.

José Mário Branco (1942-2019)

A Cantiga é uma Arma

O trabalho, a vida do Zé Mário, são demasiado importantes, demasiado essenciais para nos limitarmos a admirá-lo ou, mesmo, a venerá-lo, do que ele não gostaria mesmo nada… Por Mário Tomé

O Zé Mário nunca deixou que pensassem pela sua cabeça

Em declarações ao esquerda.net, Afonso Dias, que foi um dos fundadores do Grupo de Acção Cultural (GAC), afirmou que José Mário Branco, a par de ser um músico, arranjador e criativo brilhante, era um “cidadão livre e independente”.

O Zé Mário conhecia tão bem o Zeca que se permitiu fazer o que fez no Cantigas do Maio

Quero recordar o que me disse uma vez o Zé Mário acerca da música do Zeca: “é uma questão de higiene ouvir toda a discografia do Zeca, e eu faço-o pelo menos uma vez por ano”. Foda-se que tenha de ser tão duro passarmos a ter mais uma discografia para ouvir todos os anos, por questão de higiene. Por Carlos Guerreiro.

José Mário Branco, operário das artes do espectáculo

José Mário Branco, operário das artes do espectáculo; nem mais, um operário. Um mestre como os mestres que admiravas, sapateiro, padeiro, pescador, mestres da vida na arte da presença. Por Rui Júnior.

Há sempre qualquer coisa que está para acontecer... ZMB maior que a música

José Mário Branco foi muito mais do que cantor de intervenção. É inquestionavelmente um homem com uma cultura musical abrangente, o melhor arranjador de Música Popular, compositor de novos fados singular, como provam os trabalhos discográficos com a sua mão, ouvidos e sensibilidade para Camané. Por Soraia Simões de Andrade.

Vídeos de José Mário Branco

O Esquerda.net juntou uma entrevista exclusiva, a intervenção no Fórum Socialismo 2018 e várias canções de José Mário Branco.

Francisco Louçã sobre José Mário Branco

"Ouvi-o, então exilado em França, nos discos que aqui se distribuíam, era a força genial da música popular portuguesa contra a ditadura." Por Francisco Louçã.

José Mário Branco (1942-2019) - Foto do Fórum Socialismo 2018

Nota de pesar do Bloco sobre a morte de José Mário Branco

O Bloco de Esquerda divulgou uma nota de pesar onde “presta homenagem ao destacado artista, cantor e compositor” e apresenta condolências a Manuela de Freitas, à família e aos amigos.

José Mário Branco (1942-2019)

Morreu esta terça-feira José Mário Branco, músico que ao longo de meio século de carreira deixou a sua marca na cultura portuguesa e em várias gerações de artistas. O velório realiza-se esta quarta-feira a partir das 17h no salão nobre da Voz do Operário. O funeral sai deste local às 17h30 de quinta-feira para o cemitério do Alto de São João.

A ocupação da fábrica LIP em Besançon durou anos - Imagem lesutopiques.org

O outro aspeto do Maio de 68: a greve geral com ocupação dos locais de trabalho

“No princípio de junho [de 68], havia sete milhões de trabalhadores em greve, na França toda. Não havia gasolina, não havia restaurantes abertos” destaca José Mário Branco ao esquerda.net, no seu testemunho sobre o Maio de 68. Entrevista de Carlos Santos

"No canto não há neutralidade", por José Mário Branco

Transmissão na íntegra da sessão "No canto não há neutralidade", no Fórum Socialismo 2018.

José Mário Branco (1942-2019) - Fotos do arquivo de José Mário Branco http://arquivojosemariobranco

A oficina da canção

Texto de José Mário Branco, sobre o processo de produção das canções, desde a sua invenção até que chegam aos ouvidos e às mãos das pessoas. Foi publicado originalmente em passapalavra.info, em quatro partes (disponível também no dossier Fórum Socialismo 2018 do esquerda.net)

Maio de 68 por José Mário Branco

José Mário Branco viveu de perto o Maio de 68 e fala sobre esses tempos em conversa com Carlos Santos.

Entrevista a José Mário Branco

Entrevista de Carlos Santos a José Mário Branco em julho de 2018 sobre a disponibilização online do arquivo da sua obra, a publicação do álbum 'Inéditos 1967-1999' e a perseguição aos imigrantes nos EUA e na Europa.

“Não vejo grandes hipóteses de uma força política proteger os desgraçados que querem fugir do inferno se não tiver uma visão de classe no seu sítio”, afirma José Mário Branco

“Uma saída positiva para as grandes massas, nunca está na moderação, está na radicalidade”

Ao esquerda.net, José Mário Branco fala da disponibilização pública do seu arquivo, do seu último álbum, dá-nos um importante testemunho sobre o Maio de 68 e afirma que “é terrível” a perseguição aos imigrantes. Entrevista de Carlos Santos.

José Mário Branco - Foto publicada no site da FCSH

Inéditos 1967-1999, de José Mário Branco

Uma viagem a três décadas de trabalhos essenciais e uma oportunidade para registar estilos diferentes, canções em diversos tons e línguas, documentando uma história do pensamento, das intervenções e da música de José Mário Branco. Por Francisco Louçã

Arquivo de José Mário Branco disponível na internet a partir desta terça-feira

A apresentação do arquivo digital, que resulta de um trabalho de investigação do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical da Universidade Nova de Lisboa, está agendada para esta terça-feira, às 17h, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. A iniciativa conta com a presença de José Mário Branco.