De longe, para muito longe

porJosé Manuel Pureza

Sim, foi um músico genial, exigentíssimo, inventor da maravilha em meia dúzia de acordes e em arranjos dissonantes. Sim, foi um poeta da música raro, militante da palavra ardente, às vezes mordaz outras vezes emocionante, sempre desinstalador. Por José Manuel Pureza

24 de novembro 2019 - 12:05
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José Mário Branco (1942-2019)
José Mário Branco (1942-2019)

Mas a sua marca na nossa vida é a de uma partitura muito maior e a de uma letra que não cabe em nenhuma canção. Coerência, essa foi a linha da sua vida. Essa é a ética forte que faz de José Mário Branco um referencial do lado esquerdo da nossa vida coletiva. Foi um dissidente a tempo inteiro porque esse sentido ético da política o fez detestar todos os tacticismos. Dissidência de exigência e nunca de cinismo (“pois só se aprende a sorrir com a verdade na boca”). Dissidência interpeladora. Em nome da coerência que se exigiu a si e com que nos incomodou a todos.

Em tempo em que a existência light tem o mais alto dos ratings (“a vida sem viver é mais segura”), José Mário Branco combateu sem piedade a alienação (palavra esquecida, não é?). Fê-lo com a sabedoria das continuidades fundas da História da libertação e com o destemor que lhe vinha de uma certeza: “em tudo que já fomos há um sonho antigo, conversa universal de cada um consigo”. Esse sonho antigo – sonho de fraternidade, de respeito pelo trabalho, de solidariedade sem fronteiras com os de baixo – foi para José Mário Branco um guia e a sua vida foi um exercício de coerência com ele. Por isso, quando todos o sabiam gigante, ele impunha a si mesmo que “quando eu for grande quero ser / mais pequeno que uma noz / p´ra tudo o que eu sou caber / na mão de qualquer de vós”.

Não falsa modéstia, mas coerência, sempre. Talvez pela vaga de fundo se tenha sumido o futuro histórico da sua classe, mas José Mário Branco não ficou a olhar para trás nem se deixou aprisionar por nenhuma nostalgia. Ele sabia que “há sempre qualquer coisa que está pra acontecer, qualquer coisa que [ele] devia perceber”. O novo não muda por ser novo, antes convoca a coerência sábia com o caminho antigo para a emancipação. E então sim, será novo.

O seu peito foi um campo de batalha. O nosso, agora ferido, é-o também. E a vida de José Mário Branco ensina cada um de nós, nessa batalha, a escolher a beleza, a solidariedade e a luta. A escolher a coerência, sempre. Quer dizer, a “fazer de cada perda uma raiz. E [a], improvavelmente, ser feliz”.

Artigo de José Manuel Pureza, publicado no diário “As Beiras” a 23 de novembro de 2019

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