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Eu não cantei com o Zé Mário…

Confessei ao Zé Mário o meu arrependimento [por não ter cantado com ele em Lisboa] e ele disse-me: "tranquilo pá… existirão outras oportunidades!!". Mas nunca mais existiram… ou talvez sim! Ainda ontem cantei que “A cantiga é uma arma” (contra a burguesia) no Val do Límia. E continuarei a cantar!! Por Xose Constenla.
José Mário Branco e Xose Constenla.

Creio que por volta de 2001, fui convidado para cantar nos atos do Dia da Pátria organizada pela NOS-Unidade Popular em Compostela. Naquele 25 de julho, na praça de Mazarelos, estavam entre o público algumas pessoas e delegações convidadas pela organização, entre as quais suponho que figurassem a Ana Barradas e o Francisco "Chico" Martins (representando a Política Operária portuguesa).

Nessa ocasião - volto a supor - aconteceu o convite que recebi para ir atuar a Lisboa no mês de dezembro daquele mesmo ano, no âmbito da celebração do XVI Aniversário da Política Operária. Penso que foi o Carlos Morais quem me transmitiu o convite e, sobretudo, que me alertou: "olha...vais partilhar o palco com o José Mário Branco!!".

Aceitei com muito gosto. Era a primeira vez que saía do País para cantar. Eu, naquela altura, era um moço de 21 anos que tocava em bares, festas e assembleias universitárias. Tinha algumas músicas, ainda assim utilizava muito versões dos maiores autores mas… nunca, nunca tinha cantado nem ouvido falar de José Mário Branco… já podem imaginar!

Deram-me uma "cassete" para conhecer o seu trabalho mas foi pouco o tempo que tive. E também é certo que o nível de excitação era imenso à medida que ouvia os detalhes: anfiteatro da Faculdade de Belas Artes (no Chiado), cartaz com Tino Flores e Manuela de Freitas....

Lembro-me que viajei de comboio. Três etapas: Vigo-Porto-Lisboa. Já lá estavam o Carlos e outras pessoas que iam participar no ato político. Aproveitámos algumas horas para visitar a cidade e, na tarde do dia 8 de dezembro de 2001, fui fazer a prova de som. Não me lembro muito bem de como foi o primeiro contacto com o José Mário, mas recordo-me que, durante toda a prova, ele estava muito atento. Fez-me algum comentário sobre deixar os nervos fora do palco e ouviu com atenção a minha prova de som, ofereceu-me a sua guitarra para cantar, se o desejasse!

A seguir fez ele a prova. Surpreendeu-me muito. Entoação, presença… o palco todo ficava pequeno com o Zé Mário a bordo. E, simplesmente, fiquei sentado a observar, ouvir e aprender. Entraram umas pessoas no teatro e, quando o José Mário reparou que ali estavam, disse na brincadeira: "assistir à prova de som tem outro preço!". A prova de som é um momento íntimo do artista.

Depois, levaram-nos a jantar. Sentei-me à sua frente. Ao seu lado, a Manuela, ao meu, o Tino. Uma mesa comprida com todas as pessoas convidadas para o aniversário. Lembro-me que jantámos caldo verde e bacalhau e vinho verde. Muito típico e muito português. Foi quando o Zé Mário falou da Galiza. Das suas lembranças com Miro Casabella em Paris e com Beiras na campanha do BNG em 1985. Descobri que era um anti-imperialista convicto, que estava muito preocupado com o direito à autodeterminação dos povos (coisa que combinava com a sua luta anticolonial) e que sentia um profundo respeito pela luta independentista galega.

E dali ao teatro. Cheio. Eu nervoso. Cheio. Público militante. Sobrelotado.

Começou Tino Flores. As pessoas cantavam as suas músicas. Eu histérico. Mas o momento chegou e chamaram por mim ao palco. Acabei com "Foram Anos" (que já existia naquela altura)....mas no meio… ai! no meio! (sinto um pouco de vergonha ao lembrá-lo). Tinha uma música preparada que tinha escrito com o título "Cara o sul". Lembro-me que, para a apresentar, falei sobre o naufrágio de um barco de pesca português que ocorreu naquelas semanas. Os corpos sem vida apareceram na costa galega e eu não me lembrei de dizer mais nada senão que os corpos não foram dar ao estrangeiro; que apareceram "na Terra", "em casa". Caras de estranheza no público, eu 21 anos, nervoso… enfim!

Cara o sul esténdese a terra
libre que me veu nacer,
cara o sul os homes enxergan
a bandeira dun novo mencer.

Cara o sul as nosas esperanzas
toman un novo sentir,
vístense de gala branca
cara o sul semellan revivir.

E o REFRÃO....

Cando a terra se xunte
Galiza e Portugal,
un novo futuro
habemos de loitar.
Máis alá do Miño,
habemos retornar,
os bos e xénerosos
En Grândola imos ficar!

(uma pessoa depois do concerto perguntou-me se os galegos tinham pensado conquistar Portugal...e ficar em Grândola!)

e a PARTE final....

Santiago de pedra non arde,
Lisboa insurxente non cae,
a única loita perdida,
é a que morre esquecida no mar.

Non hai revolta sen cravos
nen frente que venza sen mans,
mulleres e homes unidos
até a vitoria que está por chegar!

E pronto, já estava! Fiquei muito tranquilo!!

As pessoas batiam palmas, eu bati palmas...e mesmo as generosas crónicas do dia seguinte diziam: "Xosé Constenla brindou-nos com diversas composições, ora sentimentais, ora celebrando a aspiração do povo galego à independência".

E no final, saiu o Zé Mário. Lembro-me que disse antes de começar: "parabéns Política Operária" e o teatro rompeu num estrondoso aplauso. Eu no camarim um pouco (muito) envergonhado. E foi cantando músicas, cada uma mais cantada e aplaudida. Até que chegou o momento do encerramento. Então chamou pelo Tino e logo pelo Manuela. Saíram. E, no final, chamou-me a mim. Disse que não. Insistiu. E não saí!!

Cantaram "A cantiga é uma arma". Arrependimento absoluto e profundo até o dia de hoje. Não saí porque não sabia a música, porque já tinha passado pelo ridículo. Porque era muito novo para saber que nem cantar tinha que fazer, só acompanhar, só estar. Arrependimento, agora que já não está cá mais Zé Mário.

Exato… eu não cantei com José Mário Branco… e agora sempre que se proporciona, canto-o, brindo-o e emociono-me!!

Anos mais tarde tive outro encontro com ele na Corunha. Num concerto dele no Teatro Rosalía organizado pela AC Alexandre Bóveda. Estivemos juntos e com o Beiras. Confessei-lhe o meu arrependimento daquela vez em Lisboa e ele disse-me: "tranquilo pá… existirão outras oportunidades!!". Mas nunca mais existiram… ou tal vez sim! Ainda ontem cantei que “A cantiga é uma arma” (contra a burguesia) no Val do Límia. E continuarei a cantar!!

Muito obrigado Zé Mário!! Boa viajem… nunca sozinho!!


Tradução do galego por Diego Garcia para o esquerda.net.

(...)

Neste dossier:

José Mário Branco 1942-2019

José Mário Branco, a voz da inquietação

Este dossier é a singela homenagem do esquerda.net ao artista, cantor, compositor e lutador contra as opressões. É um dossier com textos publicados após o falecimento, mas também com documentos publicados anteriormente no esquerda.net

Eu não cantei com o Zé Mário…

Confessei ao Zé Mário o meu arrependimento [por não ter cantado com ele em Lisboa] e ele disse-me: "tranquilo pá… existirão outras oportunidades!!". Mas nunca mais existiram… ou talvez sim! Ainda ontem cantei que “A cantiga é uma arma” (contra a burguesia) no Val do Límia. E continuarei a cantar!! Por Xose Constenla.

José Mário Branco fotografado em casa para a revista BLITZ. Foto de Rita Carmo

José Mário Branco: “A cantiga só é arma quando a luta acompanhar”

“Se decidirem mudar de vida, contem comigo. Eu não esqueci que A Cantiga é uma Arma. Mas a cantiga só é arma quando a luta acompanhar”. Ouça o áudio e leia aqui a transcrição da mensagem enviada por José Mário Branco aquando da projeção, no Desobedoc, em abril de 2014, do filme “Mudar de Vida, José Mário Branco, Vida e Obra”, de Pedro Fidalgo e Nelson Guerreiro.

José Mário Branco (1942-2019)

De longe, para muito longe

Sim, foi um músico genial, exigentíssimo, inventor da maravilha em meia dúzia de acordes e em arranjos dissonantes. Sim, foi um poeta da música raro, militante da palavra ardente, às vezes mordaz outras vezes emocionante, sempre desinstalador. Por José Manuel Pureza

Jose Mário Branco 1942-2019

O representante de todos os ouvintes futuros

Lisboa vai ser homenageada com o nome José Mário Branco numa das suas ruas, praças ou avenidas. Numa conferência em 2018, organizada pelo Bloco de Esquerda, falou sobre o processo de criação. Retirei umas notas que vale a pena deixar aqui. Por Tiago Ivo Cruz

José Mário Branco (1942-2019)

José Mário Branco saíu de cena, mas não morreu...

O maior criador de música portuguesa de todos os tempos, a par de José Afonso, saíu de cena, mas não morreu... Porque os génios vivem para sempre! Por Carlos Vieira

José Mário Branco (1942-2019)

Inquietação, inquietação, é só inquietação…

O Zé Mário não é só um músico, eu vejo-o como um construtor de canções, um “influenciador” dando sempre de si a outros artistas que por sua vez nos deram a nós grandes momentos de Cultura. Por Helena Pinto

José Mário Branco, um compositor e arranjador que vai sempre à frente

Abril, mês de todos os sonhos, todos os projectos, todos os delírios. E lá andava o Zé Mário em todas as frentes e, sobretudo, na frente da música. Por José Fanha.

Momentos galegos do Zé Mário Branco

Dou conta de três situações que vivi e deixam, na minha opinião, bem palpável a enorme personalidade de um músico, criador de múltipla expressão e imenso homem de palco, assim como o permanente compromisso de um lutador sem concessões. Por Carlos Méixome.

Do Zé e do Zeca, com a Galiza ao fundo

O Zé Mário Branco fica para sempre no melhor deste povo da Galiza, consciente da sua dependência colonial, dos seus direitos negados e da pilhagem económica, linguística e cultural, com o qual foi tão solidário. Por Antón Mascato.

Criatividade e musicalidade postas ao serviço de uma cidadania inteira e vertical

Escorado nessa amizade, fui acompanhando o seu percurso no Teatro do Mundo, na UPAV e noutros palcos, admirando-lhe a criatividade, a musicalidade e a oratória, postas ao serviço de uma cidadania inteira e vertical. Por Manuel Pedro Ferreira.

Muito mais vivo que morto

Foi através da permanente inquietação por saber que a fome e a sede existem, a do estômago e a de viver, que José Mário Branco se apaixonou pela música e com ela fez caminho até há pouco. Por Pedro Fidalgo.

José Mário Branco e Luís Cília. Regresso a Portugal, em abril de 74. Reprodução de imagem da RTP Arquivo.

O Zé Mário é, sobretudo, um excelente músico

Em declarações ao esquerda.net, o compositor e intérprete musical Luís Cília refere que Zé Mário era "um excelente compositor de canções": "Isso é o principal. Mas, a vários níveis, o Zé Mário Branco teve um trabalho muito importante", frisa.

Foto de Arlindo Camacho.

“Só guardamos o que demos”

A resposta do meu pai foi uma das maiores lições de humanidade que recebi na vida. Partilho agora com vocês uma parte desta mensagem. Façam bom uso dela! Por João Branco.

José Mário Branco (1942-2019)

A Cantiga é uma Arma

O trabalho, a vida do Zé Mário, são demasiado importantes, demasiado essenciais para nos limitarmos a admirá-lo ou, mesmo, a venerá-lo, do que ele não gostaria mesmo nada… Por Mário Tomé

O Zé Mário nunca deixou que pensassem pela sua cabeça

Em declarações ao esquerda.net, Afonso Dias, que foi um dos fundadores do Grupo de Acção Cultural (GAC), afirmou que José Mário Branco, a par de ser um músico, arranjador e criativo brilhante, era um “cidadão livre e independente”.

O Zé Mário conhecia tão bem o Zeca que se permitiu fazer o que fez no Cantigas do Maio

Quero recordar o que me disse uma vez o Zé Mário acerca da música do Zeca: “é uma questão de higiene ouvir toda a discografia do Zeca, e eu faço-o pelo menos uma vez por ano”. Foda-se que tenha de ser tão duro passarmos a ter mais uma discografia para ouvir todos os anos, por questão de higiene. Por Carlos Guerreiro.

José Mário Branco, operário das artes do espectáculo

José Mário Branco, operário das artes do espectáculo; nem mais, um operário. Um mestre como os mestres que admiravas, sapateiro, padeiro, pescador, mestres da vida na arte da presença. Por Rui Júnior.

Há sempre qualquer coisa que está para acontecer... ZMB maior que a música

José Mário Branco foi muito mais do que cantor de intervenção. É inquestionavelmente um homem com uma cultura musical abrangente, o melhor arranjador de Música Popular, compositor de novos fados singular, como provam os trabalhos discográficos com a sua mão, ouvidos e sensibilidade para Camané. Por Soraia Simões de Andrade.

Vídeos de José Mário Branco

O Esquerda.net juntou uma entrevista exclusiva, a intervenção no Fórum Socialismo 2018 e várias canções de José Mário Branco.

Francisco Louçã sobre José Mário Branco

"Ouvi-o, então exilado em França, nos discos que aqui se distribuíam, era a força genial da música popular portuguesa contra a ditadura." Por Francisco Louçã.

José Mário Branco (1942-2019) - Foto do Fórum Socialismo 2018

Nota de pesar do Bloco sobre a morte de José Mário Branco

O Bloco de Esquerda divulgou uma nota de pesar onde “presta homenagem ao destacado artista, cantor e compositor” e apresenta condolências a Manuela de Freitas, à família e aos amigos.

José Mário Branco (1942-2019)

Morreu esta terça-feira José Mário Branco, músico que ao longo de meio século de carreira deixou a sua marca na cultura portuguesa e em várias gerações de artistas. O velório realiza-se esta quarta-feira a partir das 17h no salão nobre da Voz do Operário. O funeral sai deste local às 17h30 de quinta-feira para o cemitério do Alto de São João.

A ocupação da fábrica LIP em Besançon durou anos - Imagem lesutopiques.org

O outro aspeto do Maio de 68: a greve geral com ocupação dos locais de trabalho

“No princípio de junho [de 68], havia sete milhões de trabalhadores em greve, na França toda. Não havia gasolina, não havia restaurantes abertos” destaca José Mário Branco ao esquerda.net, no seu testemunho sobre o Maio de 68. Entrevista de Carlos Santos

"No canto não há neutralidade", por José Mário Branco

Transmissão na íntegra da sessão "No canto não há neutralidade", no Fórum Socialismo 2018.

José Mário Branco (1942-2019) - Fotos do arquivo de José Mário Branco http://arquivojosemariobranco

A oficina da canção

Texto de José Mário Branco, sobre o processo de produção das canções, desde a sua invenção até que chegam aos ouvidos e às mãos das pessoas. Foi publicado originalmente em passapalavra.info, em quatro partes (disponível também no dossier Fórum Socialismo 2018 do esquerda.net)

Maio de 68 por José Mário Branco

José Mário Branco viveu de perto o Maio de 68 e fala sobre esses tempos em conversa com Carlos Santos.

Entrevista a José Mário Branco

Entrevista de Carlos Santos a José Mário Branco em julho de 2018 sobre a disponibilização online do arquivo da sua obra, a publicação do álbum 'Inéditos 1967-1999' e a perseguição aos imigrantes nos EUA e na Europa.

“Não vejo grandes hipóteses de uma força política proteger os desgraçados que querem fugir do inferno se não tiver uma visão de classe no seu sítio”, afirma José Mário Branco

“Uma saída positiva para as grandes massas, nunca está na moderação, está na radicalidade”

Ao esquerda.net, José Mário Branco fala da disponibilização pública do seu arquivo, do seu último álbum, dá-nos um importante testemunho sobre o Maio de 68 e afirma que “é terrível” a perseguição aos imigrantes. Entrevista de Carlos Santos.

José Mário Branco - Foto publicada no site da FCSH

Inéditos 1967-1999, de José Mário Branco

Uma viagem a três décadas de trabalhos essenciais e uma oportunidade para registar estilos diferentes, canções em diversos tons e línguas, documentando uma história do pensamento, das intervenções e da música de José Mário Branco. Por Francisco Louçã

Arquivo de José Mário Branco disponível na internet a partir desta terça-feira

A apresentação do arquivo digital, que resulta de um trabalho de investigação do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical da Universidade Nova de Lisboa, está agendada para esta terça-feira, às 17h, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. A iniciativa conta com a presença de José Mário Branco.