Foi-se assim, de chofre, sem dizer «alma vai»! Conheci-lhe primeiro, à volta de uma fogueira na Gardunha, as canções-estandarte do período francês; irrompeu de seguida como imagem forte e dura, em fotos de revista ou fugaz presença televisiva; até que chegou, qual cometa inesperado e luminoso, Pois Canté, o álbum do GAC. Pouco depois, já lá vão quarenta anos, por via de cumplicidades teatrais que desaguavam noutras vidas, apareceu-me ele, em carne e osso, na casa da Manuela de Freitas e do José Gabriel Trindade Santos, então colega e mentor na revista Música & Som e meu professor de Filosofia. Escorado nessa amizade, fui acompanhando o seu percurso no Teatro do Mundo, na UPAV e noutros palcos, admirando-lhe a criatividade, a musicalidade e a oratória, postas ao serviço de uma cidadania inteira e vertical. Descendo um dia a escada do Angel Studio do José Fortes, juntei-me por seu convite ao coro de "Qual é a tua, ó meu?" — a minha primeira gravação discográfica.
Muita água passou sob as pontes até que em 2002, sendo eu coordenador do Departamento de Ciências Musicais na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, pude convidá-lo a falar aos nosso alunos. Daí resultou uma palestra brilhante, que, para meu desespero, o gravador DAT especialmente trazido para a ocasião se recusou terminantemente a registar. Dado que eu me dedicava profissionalmente à música antiga, esperei seguidamente que a sua obra chamasse a atenção dos colegas mais atentos à contemporaneidade ou à música popular; debalde. José Mário Branco era demasiado artesão e poeta para uns, demasiado literato e artista para os outros. Dei-me tardiamente conta de que eu próprio, ao estudar a canção trovadoresca, tinha aprofundado a sintonia com a moderna canção de autor e desenvolvido os moldes analíticos que permitem entendê-la e valorizá-la, abrangendo música, texto e contexto.
Tendo entretanto passado a coordenar um centro de investigação universitário (o CESEM - Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical), e vendo o Zé Mário chegar aos setenta anos sem que a sua obra estivesse publicada em partitura e tivesse o merecido eco académico, decidi usar os recursos à minha disposição para colmatar esse vazio. O ponto de partida foi naturalmente o arquivo musical do autor, precariamente instalado na marquise da sua casa, onde tinha havido uma inundação. Depois de paulatina digitalização, tratamento documental e devolução dos originais, propus a criação de uma base de dados de acesso livre, onde todos os documentos digitalizados ficassem à disposição do público (arquivojosemariobranco.fcsh.). A ideia foi acolhida com entusiasmo e a base de dados lançada em Junho de 2018, com sucesso tão retumbante que obrigou à reformulação do software de acesso para acomodar a enorme procura. A edição do primeiro volume das composições originais de José Mário Branco está ainda em preparação, prevendo-se o seu lançamento no decurso do próximo ano.
* Manuel Pedro Ferreira - Professor catedrático, NOVA FCSH. Presidente do CESEM.