“Há princípios e valores
Há sonhos e há amores
Que sempre irão abrir caminho
E quem viver abraçado
À vida que há ao lado
Não vai morrer sozinho”
(última estrofe de “Do que um homem é capaz”, José Mário Branco)
Liguei o rádio e ouvi cantar José Mário Branco. Estranhei de tão inusitado. Ainda assim precipitei-me: “Novo disco!?...” Logo a seguir, ele a falar numa entrevista que já tinha ouvido há muito. E um negro pressentimento arrepiou-me a alma. O locutor confirmou: “Morreu um dos nomes maiores da música de intervenção”. Eh, pá! Esse era o rótulo que ele mais repudiava, por ser redutor e mentiroso. “Então e os outros não intervêm?... Esse labéu, uma etiqueta inventada no PREC para a esquerda dizer “estes são os nossos!” e para a direita dizer “estes são os deles! (…). “Então, eu sou de intervenção e o Tony Carreira não é?...Eu alguma vez levei 12 mil mulheres para o Pavilhão Atlântico?… Não, ele intervém muito mais do que eu!” (…) “O Zeca Afonso publicou em disco 157 canções da sua autoria; fala de política, claro, mas fala de amor, fala da morte, da infância, das memórias, fala de tudo. Chamar cantor de intervenção ao Zeca Afonso seria extremamente redutor” (...) “Há sempre um compromisso, nem que seja o de não assumir o compromisso, que é um compromisso também”, disse no debate “No canto não há neutralidade”, no Fórum Socialismo, do Bloco de Esquerda, em 2018.
Sim, foi um cantor militante, porque, como ele disse numa entrevista a Viriato Teles (Se7e, 14.04.82): “cada vez tenho mais consciência do meu compromisso com a vida, com o povo, com a arte (...)” E, noutra entrevista a Armando Carvalheda, na Antena 1, em 31.05.2018: “Ser de esquerda é como ser um arco tenso apontado ao futuro. A seta ainda não partiu mas já estás preparado. Não sou eu que disparo, mas as massas. O erro foi pensar que eram as pessoas esclarecidas que fazem as revoluções. São as grandes massas do povo. Por isso é que o Capitalismo fez essa coisa inteligente que é controlar essas grandes massas sem pôr grilhões, mas por dentro da cabeça.”
JMB começou por ser da Acção Católica até perceber que a hierarquia da Igreja era cúmplice da ditadura. Ainda jovem aderiu ao PCP (foi preso pela PIDE durante cinco meses), mas por discordar da orientação do partido de enviar os militantes para a guerra colonial fazer trabalho político junto dos soldados, acabou por se exilar em Paris (só em França existiam 80 mil desertores e refratários da guerra colonial). Já depois do 25 de Abril, foi fundador da UDP e do PCP(R). Também colaborou com o PSR. E ajudou a fundar o Bloco de Esquerda. A sua exigência, na vida como na arte, levaram-no a sucessivas dissidências. Com ele aprendi a não tergiversar nos princípios, mais do que na coerência, muitas vezes pretexto para o imobilismo. Fundou no 1º de Maio de 1974, o Colectivo de Acção Cultural, mais tarde designado GAC – Grupo de Acção Cultural “Vozes na Luta”, o mais marcante grupo de música de raíz tradicional, mas com letras alusivas à vida e à luta dos trabalhadores das fábricas e dos campos, com quem se solidarizou activamente. Dos magníficos quatro álbuns gravados, realça-se o “Pois Canté!” uma jóia única da música popular portuguesa.
Quase toda a minha vida foi iluminada pela arte de JMB. Na adolescência, ao ouvir na rádio, enquanto “estudava” noite fora (quando os pides e os censores dormiam), as canções dele, do Zeca e do Sérgio, que acalentavam a resistência à ditadura; no 25 de Abril, pelo espírito revolucionário das suas canções, a solo e no anonimato colectivo do GAC; mais tarde, “quando o mês de Novembro se vingou” foi novamente a sua música que ajudou a confortar e estimular a resistência, até soltar esse grito catártico do “FMI”, contra a violência do capitalismo na sua faceta neoliberal, destruidora de vidas e de sonhos; enquanto pai, quando adormecia os meus filhos a cantarolar a “Ronda do Soldadinho”, a “Cantiga do Leite”, “Quando eu for grande...”, “Os Meninos de Amanhã”, entre outras do Vitorino, do Zeca, do Sérgio e do Jorge Constante Pereira; em momentos de extrema emoção, como no 1º de Maio de 2004, dia do meu aniversário, ao assistir, no Coliseu do Porto, ao memorável concerto de apresentação do álbum “Resistir é Vencer”, com Fausto e Sérgio Godinho como convidados especiais. Igualmente inesquecível foi o espectáculo “Três Cantos”, com estes três cúmplices musicais, em 2009, também no Coliseu do Porto. Com eles, o espírito de Abril, apesar dos retrocessos políticos, continuava a fazer bater de emoção os nossos corações. E o Zeca revivia neles e no público!
Tal como Zeca Afonso, também José Mário Branco foi um grande poeta. Não gosto de superlativar, mas ombreio o Zé Mário Branco com o Zeca Afonso (de quem ele disse ser “um filhote”, juntamente com o Sérgio e o Fausto), um pouco mais acima, no meu pódium musical, do Sérgio Godinho, do Fausto, do Carlos Paredes, do Vitorino, do Janita, do GAC, dos Gaiteiros de Lisboa (formados por três membros do GAC, que contou com a participação de JMB no CD “Invasões Bárbaras), do Fernando Lopes Graça, da Amélia Muge, do Júlio Pereira, do João Loio, do Pedro Caldeira Cabral, do Jorge Palma, seguidos do Eurico Carrapatoso, do Zeca Medeiros, do J.P. Simões, do Rui Veloso e talvez mais um ou dois de que me esteja a esquecer...). E quase todos eles foram influenciados por aqueles dois génios que tão prematuramente deixaram de poder criar mais obras-primas.
A erudição musical e a genialidade das composições e dos arranjos ou orquestrações de JMB ficam bem patentes na suíte “A Noite” ou em “Nem Deus nem Senhor”; nos arranjos jazzísticos de “Não te prendas a uma onda qualquer” ou “Sopram ventos adversos/”Maiden Voyage”, sobre tema de Herbie Hancock; no Funky de “Vá, vá...” e “Linda Olinda”; no recurso aos ritmos tradicionais, como na chulinha “Eu vim de longe, eu vou p'ra longe”, ou “Eu vi este povo a lutar (Confederação)”; nas marchas populares “Qual é a tua, ó meu!”, “Capote preto, capote branco”; na criatividade e modernidade de “Inquietação”, um fado castiço com roupagens de jazz. E, por falar em fado, como foi notável a conversão de JMB que, talvez influenciado pelo preconceito de Lopes Graça, escreveu em “A cantiga é uma arma”: “O faduncho choradinho/ de tabernas e salões/semeia só desalento/ misticismo e ilusões”, mas acabou por reconhecer a autenticidade da canção de Lisboa, pela mão e pela escrita da sua companheira Manuela de Freitas, e a compor fados tão belos como “Raiz”, para Carlos do Carmo, “Fado da Tristeza” e “Fado Penélope” e a produzir para os novos fadistas, como Camané ou Kátia Guerreiro, reabilitando o fado tradicional, extirpando-o das contrafacções alienantes do Estado Novo (“Fado, Futebol e Fátima”) e dos clichés para “turista ver”.
O legado do JMB às novas gerações de músicos, contido na sua obra, é a exigência de autenticidade, de não abdicar nunca de nenhum dos três pilares da arte: técnica (conhecimento, estudo), estética (gosto e criatividade) e ética (relação/compromisso com a comunidade). A sua luta como compositor, arranjador e produtor foi sempre pela qualidade e exigência artística, contra a mediocridade e a ignorância que considerava mais perigosas do que as bombas atómicas (e não é que Trump, Bolsonaro e quejandos lhe estão a dar razão!) E também não descurava a prosódia, a música das palavras, já que, ao contrário do que arengavam os pós-modernistas, pretensamente inovadores, a forma interessa porque “é a materialização do conteúdo”.
José Mário Branco, cantautor e ator, mete o acórdeão na mala (como fez a sua personagem de músico ambulante, no concerto “Ser Solidário”, a obra-prima cuja gravação foi recusada por sete editoras) e sai de cena, pela Esquerda Alta!
BRAVO! Obrigado, José Mário Branco!
Texto de Carlos Vieira e Castro