Do Zé e do Zeca, com a Galiza ao fundo

O Zé Mário Branco fica para sempre no melhor deste povo da Galiza, consciente da sua dependência colonial, dos seus direitos negados e da pilhagem económica, linguística e cultural, com o qual foi tão solidário. Por Antón Mascato.

22 de novembro 2019 - 0:05
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A cantar "Grândola", em Vigo, 1985. Foto Xan Carballa/Fundación A Nosa Terra.

Foi a Zélia que, em abril de 1985, nos redirecionou para o Zé Mário quando fomos a Azeitão para concretizar a grande homenagem que seria o Galiza a José Afonso. "Antes de falarem com o Zeca, é melhor irem ter com o Zé Mário para não terem problemas com o Zeca". E lá fomos, eu e o Xico de Carinho, em nome da Federação das Associações Culturais da Galiza, falar com o Branco. Foi apenas no final da conversa que percebemos que a estratégia tinha que ser diferente. As condições para que o Zeca aceitasse tinham de ser diferentes: nada de tentar arrecadar dinheiro para a sua doença, em vez disso, pedir a sua autorização para utilizarmos o seu nome como cabeça-de-cartaz numa grande homenagem à língua galega; nada de fazer alguma coisa por ele, não, pedir a sua autorização para usá-lo como arma política de reivindicação nacional da Galiza; e, além disso, garantir os melhores meios técnicos de luz e som para os músicos; um tratamento digno, íntimo e emotivo para as comitivas dos músicos, políticos e poetas participantes, especialmente a delegação timorense. Toda a gente tinha de cobrar o estipulado. Agora sim, bem orientados pelo JMB, já podíamos ir conversar com o Zeca, cientes das condições que ele aceitaria; Só a Zélia ia ser parceira das nossas intenções solidárias com o de Coimbra, naquele tempo já com a sua doença muito avançada.

Se não fosse o Zé Mário e o seu conhecimento do fundo do coração do Zeca, nunca seria possível o grande tributo que a Galiza prestou ao Zeca, no último dia de agosto de 1985, no Parque Castrelos, em Vigo. Doze horas sem descanso, das quatro da tarde às quatro da manhã, com vinte mil pessoas sentadas sob o calor do verão, vinte intervenções de poetas e políticos (Margarita Ledo, Ana Romaní, Pepe Cáccamo, Xosé Manuel Beiras...) dezenas de comunicados de solidariedade e outras vinte apresentações musicais (Amélia Muge, José Mário Branco, Vitorino, Doa, Fuxan os Ventos, Suso Vaamonde, Benedito...) e a extensa delegação de timorenses da Fretilin, na altura invadidos pela Indonésia. Apoios paralelos como os de Henrique e Samuel Marques, Fernanda, Alain... simplificaram a movimentação de cento e cinquenta pessoas. Sem bilheteira, nada a pagar, quem quisesse podia colocar dinheiro numa bolsa e levar um cravo vermelho... a bolsa rebentou com dois milhões de pesetas que enviámos para Azeitão, para ajudar no que fosse necessário...

Comprometida a presença do próprio Zé Mário na sua primeira apresentação na Galiza, onde já era muito conhecido, que ficou quase para o final do concerto, pensámos que a sua entrada em palco em Castrelos seria já com grande parte do público ausente... mas não, ninguém descolou do banco de pedra em anfiteatro; as duas canções regulamentares impostas por nós, organizadores, foram respeitadas por todos os participantes e, em geral, pelas pessoas, que se levantaram massivamente no final do JMB e pediram "outra!!, outra!!, outra!!". Eu já estava pronto para permitir que o Zé cantasse outra canção, e foi ele que me disse: "Oh, Toni, não te preocupes... eu trato disto", foi direto ao microfone, pegou nele e olhou para os bancos exultantes por alguns segundos e, com a sua magnífica capacidade de seduzir, disse com o punho erguido: "oh camaradas, disciplina pá, são duas, então... são duas" e voltou com uma salva de palmas para os bastidores onde aguardava o Beiras para fazer um discurso magnífico, que era ao mesmo tempo o seu regresso à vida política...

Às quatro da manhã, com aquelas vinte mil pessoas de pé nos bancos e com o palco cheio de participantes, cantámos a Grândola mais emocionante e massiva da qual participei. O Zeca, doente, só pôde participar via telefone, com uma intervenção transmitida ao vivo na tarde da homenagem a favor dos direitos políticos e culturais da Galiza e da sua própria língua e música popular. Seguido por quase seis minutos de palmas de gente enternecida…

Na hora de fazer contas, as atitudes dos participantes foram diferentes, um cantor alentejano (não me lembro o nome dele) disse-nos que não cobrava, mas a sua banda sim, e levou quase oitenta mil escudos, muito dinheiro para a altura. O Zé Mário definiu a conta da seguinte forma: "cinco pessoas numa carruagem, Lisboa-Vigo, Vigo-Lisboa, totalizam mil e quatrocentos escudos, para dividir entre cinco, total para pagar 280 escudos", que pagámos com cara de quem não entendeu nada, e ele imediatamente respondeu com o argumento "assim já posso dizer ao Zeca que, sim senhor, vocês foram certinhos e eu cobrei o acordado".

Foi tal o impacto que recebemos daquele cantor de intervenção política que a direção do Bloque Nacionalista Galego, que poucas semanas depois se apresentou às eleições para o Parlamento Galego, decidiu perguntar se ele aceitava ser a atração musical de cada um dos atos políticos nas sete grandes cidades da Galiza, e qual o valor que cobraria. Acordámos a quantia de quatrocentas mil pesetas, dormidas, transporte e alimentação incluídos. Uma quantia importante para essa força política precária, mas assumível. Dos sete acordados após o primeiro, na cidade de Pontevedra, na qual o Bloque ainda governa, ele ofereceu dois de borla onde quiséssemos. Foram quinze dias intensos em que vivi com ele dia e noite, viagens, preparação dos concertos, arranjos musicais e sonoros, jantares e dormidas.

Conversámos muito e conhecemo-nos bem, fiz mestrado em política revolucionária e passámos a dar-nos como irmãos. Ele deu pistas para aproveitar uma entrevista que fiz ao Álvaro Cunhal, publicada no semanário A Nosa Terra, o que fez com que o líder do PCP ficasse interessado em saber como é que um galego sabia tanto sobre o seu partido… Lembro-me do jantar eleitoral em Vigo, em 1985, no qual também tivemos a presença de Vasco Gonçalves e Rosa Coutinho, com quem o Zé não se dava bem. Por pura cortesia, pedi que nos sentássemos na mesma mesa presidencial em que eles e as suas companhias ​​simpáticas se encontravam, e ele foi obrigado a ser educado e até charmoso. No final do jantar disse-me: “Oh Toni, eu vou ter de me ir embora agora, nunca pensei que teria de dar um aperto de mão a estes gajos! Vocês os galegos fazem meigarias, ou és só tu que fazes com que eu diga venham mais cinco aos camaradas Vasco e Rosa Coutinho”, e então riu perdidamente, brincando com a anedota. Ele conversou mais com as mulheres do que com os senhores, mas tivemos "esquerdalhos e comunas".

No final da campanha eleitoral em que o Beiras liderou o regresso do BNG, depois de expulso o nacionalismo galego de esquerdas do Parlamento galego por não jurar ou prometer cumprir a Constituição espanhola, o responsável por pagar-lhe o que tinha sido acordado ficou chocado com a sua atitude. Depois de contar todas as notas, recomeçou a contagem e parou a meio, entregou ao pagador metade do acordado, dizendo-lhe "vocês foram impecáveis ​​no que acordámos, pagaram-me tudo, mas esta é a minha contribuição para a campanha eleitoral do Bloque. O Carlos Méixome, responsável político do BNG de Vigo na altura, ainda não se recuperou do choque que tanto o abalou com tal atitude solidária.

O Zé Mário ficou preso no coração da malta de esquerda do Bloque, só ele foi capaz de encher os pavilhões desportivos ao lado do Beiras, só ele terminou com milhares e milhares de companheiras e companheiros esquerdistas e nacionalistas a fervilhar com as suas intervenções musicais, concertos acústicos só com o acompanhamento da viola e a voz poderosa desse cantor de intervenção que nem sempre tinha as melhores condições logísticas para o seu canto poderoso.

Nos anos seguintes, encontrámo-nos várias vezes em Lisboa, no Porto, em Braga, Aveiro, Pontevedra e Santiago de Compostela, onde ele queria atuar sempre que possível. Eu entrevistei-o para o A Nosa Terra na sua casa em Lisboa, jantámos e bebemos copos até o pequeno-almoço em bares da baixa, com o irmão, o sobrinho Tó, e ele até arranjou uma namorada lisboeta "assim vens mais vezes de visita". Lancei um CD duplo com a homenagem Galiza a José Afonso, do qual só ele é que não consta, porque tinha acabado de vender os direitos da sua música à Valentim de Carvalho, que não deu permissão para incluir aquelas duas peças pelas quais se apaixonaram as vinte mil pessoas que foram ao Parque de Castrelos, a 31 de agosto de 1985.

Com o José Mário Branco, aprendi que a censura não é aceitável de forma alguma. E mais, muito mais. Serei leal a essa aprendizagem. Fica para sempre no melhor deste povo da Galiza, consciente da sua dependência colonial, dos seus direitos negados e da pilhagem económica, linguística e cultural, com o qual foi tão solidário.


* Antón Mascato – Editor.

Testemunho enviado em galego a 22.11.2019
Tradução de Mariana Carneiro para o esquerda.net

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