A pressão turística e a especulação imobiliária alimentada por políticas públicas como as dos vistos gold e dos benefícios a não-residentes transformaram Lisboa nos últimos anos e tornaram a habitação na cidade um bem ao alcance de poucos. Indiferente à realidade, a direita que governa a autarquia fala numa “Lisboa com mais acesso à habitação”, enquanto Moedas regularmente se gaba de ser o autarca que mais chaves de casas entrega. Mas apesar de já ter entrado no último ano do mandato e de dispor dos milhões do PRR para fazer obra, a grande maioria dessas chaves são de casas cujo projeto, construção e reabilitação vêm do mandato anterior. E no que diz respeito às das casas do programa de renda acessível, as chaves são todas das habitações construídas pelo pilar público desse programa, que o Bloco impôs no acordo com o Partido Socialista em 2017.
As chaves das casas não são caso único na apropriação dos louros do mandato anterior. No caso da obra do plano de drenagem, Moedas não perde a oportunidade de anunciar que foi ele que fez a consignação, um ato puramente formal após todo o contrato, adjudicação e plano de execução estarem prontos antes de ter chegado à Câmara. Outras iniciativas que o autarca reclama como suas já existiam, mas com outro nome. É o caso da Fábrica dos Unicórnios, um “rebranding” do Hub Criativo do Beato, ou da Um Teatro em Cada Bairro, que são espaços culturais que já existiam. Além, claro está, da a iniciativa que aponta como o grande feito do seu mandato: as Jornadas Mundiais da Juventude, cujas obras foram lançadas no mandato anterior.
Dir-se-á - e quase sempre com razão - que todos os executivos, sejam nacionais ou municipais, de esquerda e de direita, não resistem a colher os louros do trabalho dos adversários que os antecederam para apresentar obra feita. Carlos Moedas não escapa a essa tendência, mas por vezes vai mais longe, tendo chegado a chumbar propostas da oposição para em seguida as apresentar como suas, como foi o caso da gratuitidade das bicicletas GIRA para os utentes do passe Navegante proposta pelo Bloco. E consegue ir mais longe ainda, publicando nas redes sociais um exemplo do seu trabalho diário para aumentar a oferta de habitação: a presença na inauguração de uma residência privada para estudantes com quartos arrendados por mais de mil euros mensais.
Lisboa
Moedas protegeu alojamento local e diz agora que foi “o único” autarca a travá-lo
O caso mais gritante de apropriação - até por se tratar de uma falsidade - é o da limitação ao Alojamento Local, com Carlos Moedas a autoproclamar-se “o único presidente da Câmara, até agora, que travou o alojamento local”. Uma declaração feita em julho deste ano pelo autarca que passou todo o mandato a opor-se sistematicamente a todas as propostas nesse sentido. Moedas chegou a atacar um estudo de economistas sobre o impacto da limitação do alojamento local nos preços da habitação, propôs um regulamento que previa conceder licenças em áreas de contenção e rever os rácios dessas zonas, opôs-se às limitações previstas no programa Mais Habitação do anterior governo e apareceu ao lado dos empresários do sector numa manifestação contra as limitações. Carlos Moedas também desobedeceu abertamente à lei que previa a caducidade dos mais de oito mil registos inativos de alojamento local na cidade, alegando não ter funcionários para cumprir a tarefa de notificar esses proprietários. Quando o governo mudou e Montenegro quis revogar as limitações em vigor, a coligação de Moedas opôs-se à proposta que o mandatava para negociar com o Governo a não revogação dessas medidas.
Lixo em Lisboa: da “reforma estrutural” ao caos nas ruas
Da mesma forma que colhe os louros do trabalho anterior quando as coisas ficam prontas no seu mandato, Moedas não hesita em passar as culpas quando não é capaz de resolver os problemas que herdou ou que complicou ainda mais. O caso mais emblemático é o do lixo espalhado nas ruas da capital. A promessa de levar a cabo uma “reforma estrutural” na recolha do lixo, feita no início do mandato, traduziu-se no caos sentido pelos munícipes cada vez que saem à rua. Mas no início deste ano, Moedas garantia que “a situação melhorou, mas ainda não está perfeita”, preocupando-se com a eventual animosidade contra os turistas dos alojamentos locais que deixam os sacos de lixo na rua. “Não queremos ver as pessoas irritadas. É importante que não entrem em fricção com os turistas”, pedia o autarca em janeiro, exortando os munícipes a seguirem o exemplo dos participantes das Jornadas da Juventude que ajudaram a limpar o Parque Eduardo VII no final das cerimónias. “Vamos fazer aquilo que fizemos na JMJ todos os dias”, apelou.
Sob pressão dos munícipes e das juntas de freguesia, mais recentemente Moedas veio defender que o problema da recolha do lixo se resolveria com a recolha ao domingo, assunto que estaria em discussão com os sindicatos, que vieram prontamente desmenti-lo sobre a existência dessa negociação, acrescentando que a quase totalidade dos trabalhadores da higiene urbana já trabalha de segunda a sábado e que a recolha ao domingo se faz cada vez mais, seja através de escalas ou em regime de voluntariado. Já quanto à afirmação de Moedas de que tinha sido o primeiro autarca a pagar-lhes o suplemento de insalubridade e penosidade, recordam-lhe que já recebem este suplemento há mais de três décadas. E fazem outro desmentido sobre o anunciado reforço de cantoneiros com quase 300 contratações desde o início mandato, referindo que não se traduzem num reforço efetivo, pois há que subtrair as 50 aposentações anuais, a transferência de muitos cantoneiros para outras funções na CML e o elevado índice de acidentes de trabalho, “sem paralelo no município” por causa das condições “muitas vezes ofensivas aos seus direitos no campo da saúde e segurança no trabalho” a que estão sujeitos. Em resumo, conclui o sindicato, as declarações de Moedas sobre o lixo em Lisboa “não explicam, antes confundem a opinião pública, não resolvem, antes protelam os problemas conhecidos, não são rigorosos, antes alimentam ilusões assentes em inverdades”. E para que o problema seja resolvido são precisos mais cantoneiros, condutores, mecânicos e viaturas que estejam operacionais, mais formação profissional e investimento nas condições de trabalho, mais sensibilidade na definição dos circuitos de remoção e mais campanhas de sensibilização e fiscalização junto da população e dos grandes produtores de resíduos, como os hotéis, supermercados, restaurantes, cafés e bares. Isto, claro está, além do respeito pelos direitos dos trabalhadores e das normas de saúde e segurança no trabalho que diminuam o elevado número de acidentes.
Vitimização, mentira e birra: o caso dos painéis publicitários
A estratégia de passa-culpas e vitimização atingiu o seu auge no escândalo do contrato com a JC Decaux para a substituição das paragens de autocarro e a instalação de painéis publicitários. No primeiro caso, descobriu-se que as novas paragens não iriam ter iluminação para além da que ilumina o cartaz publicitário e que nalguns casos a altura dos bancos era demasiado elevada. No segundo, a empresa começou a instalar painéis eletrónicos de grandes dimensões junto a pontos de grande tráfego rodoviário, com risco evidente para a segurança na estrada.
Lançada a polémica, a primeira reação de Moedas foi a habitual: lançar culpas para o antecessor que tinha adjudicado o contrato. No caso da iluminação das paragens, argumentou também que a referência à iluminação LED no caderno de encargos se refere aos cartazes publicitários e não ao resto da paragem, deixando assim às escuras quer a informação sobre horários e trajetos dos autocarros quer o resto da paragem, o que viola o manual do espaço público da própria Câmara. A proposta do Bloco para a instalação da iluminação das paragens acabou por ser aprovada com os votos contra da coligação de direita.
No caso dos painéis publicitários instalados pela JC Decaux, depois de Moedas remeter responsabilidades para o acordo assinado pelo anterior executivo, soube-se que não só o contrato previa a negociação das localizações dos painéis , com a Câmara, já no atual mandato, como a própria Câmara já tinha feito essa negociação, inclusivamente recusando uma das localizações, acabando por aprovar as localizações no final de 2023. Quando os painéis gigantes começaram a ser instalados e a polémica rebentou, inclusive com uma providência cautelar entretanto aceite pelo tribunal para travar a instalação, Moedas afirmou-se “chocado” e que dissera à empresa para “parar imediatamente com estes grandes formatos”. Quatro dias depois, a empresa estava a ligar o painel em causa à corrente elétrica.
Na sessão da Assembleia Municipal, quando confrontado pela deputada bloquista Maria Escaja com as suas mentiras e contradições sobre a autorização para a colocação dos painéis gigantes, Moedas passou à também habitual estratégia de vitimização e abandonou a sala queixando-se de ataques à sua honra.
A receita tantas vezes usada ao longo do mandato foi repetida esta semana na reunião de Câmara onde se discutia a Carta Municipal de Habitação, o instrumento que define as grandes políticas para a próxima década. Depois de um processo de discussão pública em que boa parte dos contributos dos munícipes pedia mais restrições a hotéis e alojamentos locais, ao contrário do que o documento do executivo propunha, Moedas decidiu retirar a proposta a votação e assim impedir que fossem aprovadas propostas da oposição que fossem ao encontro das opiniões recolhidas.