No seu discurso do 5 de Outubro, durante a cerimónia realizada pelo segundo ano consecutivo com baias de segurança para impedir o acesso aos cidadãos sem convite, Carlos Moedas falou da imigração para criticar o que diz ser “uma política de portas escancaradas que conduz à desordem, dá espaço a redes criminosas e multiplica casos de escravatura moderna”.
Em julho, Moedas já tinha vindo a público afirmar que na capital “houve um aumento [de criminalidade] e esse aumento é claro, é visível, portanto, não é só uma perceção. Os números que nós conhecemos, que houve realmente um aumento da criminalidade na cidade de Lisboa e também um aumento da violência com que esses atos foram praticados”. Números que foram prontamente desmentidos pela PSP, ao sublinhar a diminuição da criminalidade violente e grave em Lisboa. Mas o mote estava dado e foi secundado no Porto por Rui Moreira - também desmentido pela polícia -, abrindo caminho a André Ventura para convocar uma manifestação anti-imigração, associando-a à criminalidade.
Já este mês, antes do discurso do dia da implantação da República, Moedas voltou a repetir o mesmo argumento, desta vez reconhecendo que “não há mais crimes”, mas insistindo que “os crimes são cometidos com mais violência”, acrescentando que “isto é factual, as pessoas sentem isto”, confundindo na mesma frase factos com perceções.
Mas não foi este ano que Moedas decidiu explorar o filão político anti-imigração, sempre antecedendo as suas ideias com a frase de que o país “precisa de imigrantes”. Já no início de 2023, em entrevista ao Público e Renascença no rescaldo do incêndio na Mouraria numa casa onde viviam mais de 20 imigrantes, o autarca tinha defendido o regresso dos contingentes e que só possam entrar imigrantes no país ja com contrato de trabalho. Palavras que mereceram críticas de Marcelo Rebelo de Sousa, apelando aos sociais-democratas que não cedam à tentação de “captar votos e ser mais populista” porque “a cópia perde sempre com o original”.
"Eu fui emigrante, sou casado com uma imigrante [Celine Abecassis-Moedas, que em Portugal já passou pela administração dos CTT, da Vista Alegre Atlantis e da CUF], o meu sogro é marroquino, a minha sogra é tunisina, por isso, há algo que gostaria de deixar muito claro: não aceito lições de ninguém nesta matéria, de ninguém", respondeu, alegando que está a lutar “pela dignidade da nossa imigração”.
Mas os pergaminhos domésticos invocados pelo autarca não sensibilizaram o resto do executivo municipal, que no dia seguinte aprovou um voto de preocupação apresentado pela vereadora bloquista Beatriz Gomes Dias, alertando que as declarações de Moedas “criminalizam o direito a migrar, fomentam os preconceitos, e o sentimento de anti-imigração”, ao mesmo tempo que “conduzem à marginalização e à exclusão das pessoas que procuram o bem-estar e direitos para si e suas famílias”.
Exatamente um ano depois, na campanha para as legislativas de março, Carlos Moedas juntou-se à caravana da AD em Évora para voltar a colocar as suas propostas sobre a imigração na agenda, em sintonia com o que Passos Coelho havia feito semanas antes. Desta vez acusou o PS e a “extrema-esquerda” de terem criado “um caos na imigração” e depois “diabolizam todos os que querem falar de imigração. A AD tem de falar nisto”, insistiu, atribuindo às políticas de imigração os “atentados contra a dignidade humana” e dando como exemplo “o que se passa no Alentejo, ignorando assim a responsabilidade dos empregadores que contratam mão de obra às mafias, sabendo bem as condições em que os seus trabalhadores se encontram e que a lei os protege de serem responsabilizados por elas.
O ênfase colocado no tema da imigração nos discursos políticos de primeiro plano por parte de Carlos Moedas não é alheio aos dividendos eleitorais que o populismo anti-imigração tem dado a quem o protagoniza. E Moedas, que tem afastado o cenário de integrar o Chega na sua coligação em Lisboa, sabe que será difícil conseguir a reeleição se não captar parte desse eleitorado.
O memorial da escravatura boicotado por Moedas
O projeto do artista angolano Kiluanji Kia Henda, intitulado “Plantação”, tinha sido selecionado no mandato anterior para dar corpo ao Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas, uma proposta aprovada no Orçamento Participativo que os proponentes queriam ver na Ribeira das Naus e que a Câmara decidiu colocar no Largo José Saramago, no antigo campo das Cebolas.
Com a entrada da direita no executivo, sucederam-se os obstáculos à concretização do projeto, com pedidos de pareceres a várias entidades que tiveram resposta desfavorável. A associação Djass, que propôs o memorial, queixou-se que esses pareceres não eram vinculativos e que tinham sido dados com base num projeto que não correspondia à versão entretanto ajustada pelas discussões técnicas com os serviços camarários e o arquiteto que foi autor da requalificação do largo.
Carlos Moedas propôs então que o memorial passasse para um corredor de acesso a um cais situado na Doca da Marinha, próximo do terminal de cruzeiros de Santa Apolónia, uma proposta que a associação considerou “inaceitável” e que “levanta dúvidas sobre a boa-fé do atual executivo autárquico em todo este processo”, concluindo que Moedas "não tem qualquer interesse em inaugurar este memorial".
Até agora, o memorial que procurava dar visibilidade à história e à presença africana em Lisboa continua na gaveta, tal como o projeto aprovado e parcialmente financiado através do programa BIP/ZIP e de uma recolha de fundos da Associação Batoto Yetu Portugal para colocar em vários locais da cidade placas toponímicas e um busto para assinalar e homenagear a secular presença africana em Lisboa.