Afrodescendentes acusam Moedas de boicote ao memorial da escravatura

03 de julho 2023 - 22:48

Com a posse do executivo da direita, o projeto aprovado ainda antes da pandemia tem sofrido obstáculos. Associação Djass considera “inaceitável o modo negligente e desrespeitoso” com que a autarquia de Lisboa lidou com o projeto.

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Projeto de Kiluanji Kia Henda/Paulo Moreira architectures 2022 para o Largo José Saramago em Lisboa.
Projeto de Kiluanji Kia Henda/Paulo Moreira architectures 2022 para o Largo José Saramago em Lisboa.

A Djass - Associação de Afrodescendentes acusa o executivo camarário de Lisboa de ter pedido dois pareceres à Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) e à Empresa de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa (EMEL) sobre o projeto do Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas, recorrendo a imagens que não correspondem ao projeto aprovado e alterado pelo artista em conjunto com os serviços camarários. A resposta negativa destas entidades foi o pretexto para Carlos Moedas propor outra localização, em concreto num corredor de acesso a um cais situado na Doca da Marinha, próximo do terminal de cruzeiros de Santa Apolónia.

“Esta proposta é para nós inaceitável. Não só representa mais um dos expedientes dilatórios que a Câmara Municipal de Lisboa tem usado para atrasar, se não mesmo impedir, a colocação do Memorial, como levanta dúvidas sobre a boa-fé do atual executivo autárquico em todo este processo”, refere a Djass em comunicado.

A associação diz que a conduta da Câmara desde o início do seu mandato revela que “não só não valoriza o projeto, como parece querer impedir a sua concretização”, no que chamam de “uma estratégia de obstrução e boicote ao Memorial por parte do atual Executivo municipal, que tem recorrido a sucessivos expedientes dilatórios para obstaculizar o processo”. Toda a sequência de acontecimentos leva a Djass a concluir “que a Câmara Municipal de Lisboa não está de boa-fé neste processo e não quer que o Memorial exista”.

À CNN Portugal, Carlos Moedas afirmou-se “espantado por a associação ter falado primeiro com os media em vez de ter falado com o Presidente da Câmara para encontrarmos uma solução” em conjunto após ter recebido "pareceres técnicos negativos". A associação responde que não existem quaisquer pareceres técnicos, mas apenas opiniões informais das entidades consultadas pela autarquia com base em imagens que não correspondem ao projeto. Quanto à “solução” apontada por Moedas, referem que o projeto nem sequer cabe no local proposto, desvirtuando a proposta aprovada pela própria autarquia. No sábado à noite, Evalina Dias, presidente da Djass, disse à CNN que a conclusão a tirar é que este executivo da Câmara "não tem qualquer interesse em inaugurar este memorial".

Da aprovação à gaveta de Moedas: a história da “Plantação”

A proposta do Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas foi aprovada no Orçamento Participativo e o anterior executivo camarário aprovou em 2019 a sua localização no Largo José Saramago, no Campo das Cebolas, ao invés da localização original proposta pela Djass - Associação de Afrodescendentes, que era a Ribeira das Naus. O projeto vencedor para este memorial foi o do artista angolano Kiluanji Kia Henda, intitulado “Plantação”. E ele foi sendo ajustado de acordo com as discussões técnicas entre o artista, a sua equipa, a Câmara de Lisboa e o o arquiteto João Carrilho da Graça, autor do projeto de requalificação do Largo. A versão final reduziu o número das estruturas a instalar (canas-de-açúcar), de modo a reduzir a densidade visual da obra.

Entretanto houve eleições e desde a entrada de Carlos Moedas na Câmara o processo nunca mais avançou. Um ano após a tomada de posse, a Djass conseguiu reunir com o vereador da Cultura, que informou que a autarquia iria pedir dois pareceres à DGPC e à EMEL, que detém um parque de estacionamento subterrâneo no local. Em abril deste ano, a Câmara informou que os pareceres foram desfavoráveis, o que inviabilizaria a localização do memorial no local que a própria Câmara tinha indicado em alternativa à proposta original da Djass.

Mas a associação diz que os pareceres são afinal “uma opinião sumária e informal das duas entidades” e sem “qualquer carácter vinculativo” e tiveram como base “imagens de um projeto que não existe”. Em vez do projeto de Kiluanji Kia Henda, a Câmara entregou para análise “um exercício realizado, de forma abusiva, pelo arquiteto João Carrilho da Graça”, o que atribui a negligência grosseira ou flagrante má-fé” por parte da autarquia. E foi a partir deste último que a DGPC entendeu que os “impactos formais e visuais significativos” do Memorial naquele espaço eram de modo a “encerrar a praça face ao rio Tejo”. Por seu lado, a EMEL referiu a perda de garantia da obra do parque em caso de intervenção na cobertura e a existência recente de problemas de infiltrações como razões para não recomendar o Memorial naquela superfície.

Placas toponímicas e busto para assinalar presença africana em Lisboa continuam por colocar

Mas o boicote ao memorial não é caso único, prossegue a Djass. Também o projeto de colocação em vários locais da cidade de vinte placas toponímicas e um busto para assinalar e homenagear a secular presença africana em Lisboa, uma iniciativa da Associação Batoto Yetu Portugal (BYP), “continua igualmente por concretizar”. Isto apesar de as peças estarem prontas desde 2020. O financiamento da Câmara através do programa BIP/ZIP foi insuficiente, mas a recolha de fundos da associação BYP no ano passado conseguiu o dinheiro que faltava. Desde então, nada avançou e as placas e o busto continuam por colocar, refere a Djass, solidarizando-se com o projeto da BYP.

A associação promete não desmobilizar por causa dos obstáculos erguidos pela gestão de Moedas e continuará a bater-se pela sua instalação no Largo José Saramago.

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