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Kiluanji Kia Henda: "Eu crio arte para provocar emoções"

O artista angolano criador do futuro Memorial às Pessoas Escravizadas, a instalar em Lisboa, fala do processo de criação desse lugar de reflexão e da democratização da representação no espaço público. Entrevista de André Soares.
Kiluanji Kia Henda
Kiluanji Kia Henda. Foto de Ana Diaz.

Entrevista com Kiluanji Kia Henda, artista angolano e o criador do Memorial às Pessoas Escravizadas da Djass- Associação de Afrodescendentes, que estará na cidade de Lisboa, esperemos, ainda este ano. A proposta eleita por assembleias abertas de afrodescendentes tem o título de “Plantação” e servirá de espaço memorial às pessoas vítimas do empreendimento escravista português.

Ao fim de séculos dão-se os primeiros passos no sentido da reparação e memorialização das consequências do tráfico de pessoas, num país cuja mitologia fundacional assenta na exploração de outros povos e seus territórios. Numa passagem por Lisboa, Kiluanji falou ao jornalista e antropólogo André Soares do processo de criação da Plantação, um lugar de reflexão, mas também de resistência à violência racista e escravista, processo que tem consequências nos dias de hoje.

O que achaste da iniciativa da Djass - Associação de Afrodescendentes para a edificação de um Memorial às pessoas escravizadas, que vai ser implementada pela Câmara Municipal de Lisboa?
 
A proposta da Djass é de extrema importância porque existe uma falta de representatividade no espaço público, no que diz respeito a história ligada às minorias em Lisboa, neste caso especifico dos afrodescendentes. A inexistência de um memorial sobre a escravatura já me tinha ocorrido há anos, quando vi pela primeira vez o memorial do massacre dos judeus que foram mortos aqui em Lisboa, perto do Rossio. Muitas vezes pensava, como era possível, não existir nenhum memorial sobre a escravatura ou até mesmo sobre a guerra colonial.

A conturbada história da relação entre Portugal e África já é centenária e de repente quando olhamos para o espaço público há uma ausência flagrante na representação dos capítulos que mais marcaram essa relação histórica no espaço público. Lisboa como uma cidade cosmopolita, composta também por comunidades oriundas das ex-colonias. Este memorial, embora seja representação simbólica de um momento trágico para humanidade, não deixa de ser um importante elemento para fortalecer o sentimento de inclusão. Independentemente da sua origem, mesmo sendo uma minoria, os afrodescendentes também são portugueses, é importante que a sua história seja representada no espaço público.

Ao contrário dos monumentos que são celebrados em várias praças da cidade, este memorial não pretende celebrar nenhuma figura histórica, mas sim evitar que caiamos numa amnésia coletiva. Penso que poderá ter um forte componente pedagógico, neste estranho momento em que vivemos, onde assistimos atónitos ao surgimento de movimentos que rejeitam acontecimentos históricos como o Holocausto.

"Plantação". Imagem publicada em memorialescravatura.com
"Plantação". Imagem publicada no site do Memorial

"A escravatura deve ser relembrada para além do sofrimento, da dor e do luto"

Como foi o processo de criação do memorial às pessoas escravizadas da Djass - Associação de Afrodescendentes?
 
O título da obra é a Plantação. Já chegou a ter um subtítulo que era “prosperidade e pesadelo”, mas para mim deixou de fazer sentido porque era mais um título de trabalho. Participei no concurso proposto pela Djass, que levou à eleição pública e por afrodescendentes da minha proposta que vai ser agora implementada no Campo das Cebolas. A Plantação nasce da nota concetual da Djass, o que foi importante para ter aceite o convite em participar, identifiquei-me com o conceito, coincidia em muitos aspetos com aquilo que eu acredito que deveria ser um memorial. Tendo em conta esta nota, o envolvimento dos arquitetos e os técnicos da Câmara de Lisboa para a sua materialização tem sido como um processo de criação coletiva fantástico. Definitivamente, considero este memorial como uma obra coletiva, mais do que uma obra de autor.
 
Eu acredito que a escravatura deve ser relembrada para além do sofrimento, da dor e do luto. E isso eu entendi pelas viagens que fiz pela América do Sul e em particular num lugar chamado São Basílio de Palenque, na Colômbia, o primeiro quilombo nas Américas. Ali entendi que muita da mão-de-obra, dessa força de trabalho, que muitos consideravam como força bruta, ia muito além disso. Muita dessa força de trabalho era qualificada e também por isso era explorada. Entre aquelas pessoas havia pessoas com conhecimentos de como tratar o gado, havia pessoas com conhecimentos de como explorar minerais, como gerir os recursos hídricos. E com certeza, era importante refletir o impacto económico nos países que realizaram o tráfico.

A abordagem sobre a morte e a violência é central, mas é de extrema relevância pensarmos na continuidade, do que é que este período que ainda influencia as sociedades contemporâneas. Porque quando falamos do impacto positivo do tráfico de escravos nas economias europeias, falamos de um impacto que ainda tem uma incalculável importância nestas economias até nos dias de hoje. A ideia de que o mundo moderno foi construído sobre os ombros de homens e mulheres escravizados e até crianças, está estampada nesta acumulação de património e capital.
A plantação, mais do que um lugar de transição, era o lugar onde se implementou uma ideologia escravista. É onde se perpetuou o ciclo de sofrimento, a relação de exploração e abuso da casa grande em relação a sanzala, onde se estruturaram as hierarquias sociais. A plantação era o principal fator que alimentava a sanzala de corpos negros traficados, e a mesma plantação alimentava também as mordomias da casa grande.

E que serve de metáfora para hoje? A cidade segregada de Lisboa, a casa grande é alimentada por um conjunto de trabalhadores que vêm perpetuar as mordomias de muito poucos.
 
E que também alimenta as teorias racistas, porque o racismo serve ao capitalismo. E não vale a pena dizer que o racista é ignorante e tem a cabeça pequena, não. Um racista simplesmente usa algo tão básico como a pigmentação da pele como um dos principais fatores discriminatórios, tem como verdadeiro intuito defender os seus privilégios, defender os seus interesses económicos. Infelizmente, a construção, perpetuação de estereótipos e preconceitos claramente racistas, continuam a ser um empecilho para o progresso e o bem-estar das comunidades negras, em muitas partes do mundo.

"Plantação". Imagem publicada em memorialescravatura.com "Plantação". Imagem publicada no site do Memorial

A ideia de plantação também remete para a ecologia desses lugares. A natureza manipulada para as monoculturas do capitalismo empobrecendo a natureza, mexendo nos ecossistemas...
 
A ideia do memorial está relacionada com as pessoas escravizadas em Portugal, e como é sabido as vítimas deste tráfico serviam principalmente a indústria do açúcar. A presença destas pessoas na Madeira, ou em Lagos, estava relacionada com a cana-de-açúcar.

Este memorial pretende a representar uma plantação em luto. Uma plantação que nos remete à ideia de natureza manipulada. Manipular a natureza para o crescimento económico que aponta para a prosperidade de um sistema capitalista. Quando nós pensamos nas tragédias da humanidade, muitas vezes deixamos a natureza em terceiro plano. E ela faz parte. Em 2016 realizei uma série de serigrafias intitulada “A Paisagem da Insônia”. Este trabalho tem como base uma série de fotografias de detalhes de árvores, numa estrada que liga a província do Bié ao Huambo, dois lugares onde a guerra civil foi intensa, principalmente na década de 90. Fiz imagens detalhadas de várias árvores enquanto me deslocava de carro pela estrada. A seguir juntei os vários detalhes das árvores para construir uma nova árvore. Este processo de criação, levou-me a pensar não só no impacto que a guerra teve na natureza, mas também sobre a resiliência da própria natureza. Depois de décadas de guerra, muitos animais tinham abandonado o país, começam a regressar à sua “casa”, o que tem provocado alguns incidentes trágicos, pois em muitos destes lugares há agora pessoas a viver. O eterno conflito entre a natureza e a violenta civilização. Por isso é importante que a humanidade, ao contar a sua história das batalhas inglórias, não se esqueça o impacto vil que tem sobre a natureza.

Paisagem da Insônia, 2016
A Paisagem da Insônia, 2016

Faz-me lembrar também, a revolta da Baixa de Cassanje em Malanje, que foi a primeira grande rebelião no tempo colonial em 1960, que antecedeu à guerra colonial. Parte desta revolta estava relacionada com a plantação de algodão e implementação da monocultura. Nestas localidades as famílias eram obrigadas a abandonar as suas lavras para se dedicarem somente a plantação de algodão. Impossibilitados de plantar alimentos, limitavam-se a esperar a comida que lhes era fornecida pelos patrões. Comida má. Enquanto enriqueciam uma minoria burguesa.
A plantação enquanto espaço onde as pessoas foram humilhadas, violadas e maltratadas, tornou-se extremamente importante na minha reflexão sobre a história. Surgiu assim a ideia de instalar essa plantação estéril e em luto. Uma instalação onde os visitantes podem penetrar, e que se converta num espaço de meditação, de reflexão sobre a história, sobre a continuidade dessa violência e sofrimento, mas que acima de tudo, que se aproveite as sombras das canas de açucar para criar um espaço de congregação, daqueles que acreditam que poderemos sempre construir um mundo mais justo e inclusivo.

No teu percurso insistes na reflexão crítica a partir da produção de imagens contra hegemónicas. Lembro-me daquele teu trabalho fotográfico no Padrão dos Descobrimentos com um conjunto de pessoas negras ocupando a proa do monumento. Fala-me um pouco dessa obra e sobre a ideia de intervenção no espaço público desestabilizando as narrativas hegemónicas.
 
Essa fotografia tem por título “A Descoberta”. No fundo deixa de ser a descoberta. Foi feita em 2007 e contou com a participação do António Brito Guterres, foi feita em parceria com uma associação do Lumiar. Eu decidi dar o nome “A Descoberta” porque boa parte dos jovens que participaram nessa intervenção, no Padrão dos Descobrimentos, boa parte deles, nunca tinha estado nessa zona da cidade. Era a primeira vez que visitava essa zona da cidade. Para mim isso era muito especial, ver a forma como reagiam, sobretudo por serem pessoas que nasceram em Lisboa com os seus 18 e 20 anos de idade. Lembro-me até que nesse momento - e ainda nem sequer tínhamos começado a fazer a intervenção, ainda não tínhamos subido para o edifício - a polícia apareceu e começou a questionar o que estávamos a fazer. Era aquela surpresa de ver um grupo de 15 pessoas, maioria rapazes, havia só uma rapariga e a polícia ali meio atrapalhada e surpresa com um grupo de pessoas afro a sair de um autocarro para tomar conta da zona de Belém.

A Descoberta, 2007 A Descoberta, 2007

É necessário repensar sobre o que é que nós pretendemos quando glorificamos certos períodos da história e até que ponto isso se pode tornar ofensivo para certas pessoas que também habitam numa mesma cidade. Porque a história é feita de distintas perspetivas e há a tentativa de se glorificar esse período das descobertas como algo fundacional da identidade portuguesa até aos dias de hoje e que é no fundo a relutância dessa presença africana e da sua contribuição para aquilo que é a cidade hoje. E é preciso pensar que muitos daqueles que são considerados heróis noutros lugares de África, também são parte dessa história portuguesa. Embora seja sempre o vencedor a contar a história, mas mesmo aqueles que foram derrotados, mesmo os que foram dominados, são parte dessa história. Então, é preciso haver essa abertura para quando queremos fazer uma abordagem ao passado. E hoje é cada vez mais importante. O que eu tento através do meu trabalho é essa democratização da representação no espaço público, nos espaços de exposição.

"Hoje o que se pede é o mínimo de empatia e honestidade quando somos confrontados com factos históricos"

As outras perspetivas?
 
Sim, existem outras perspetivas, mesmo aquelas a partir dos supostos derrotados, essas também são importantes. Elas também têm que ter o seu espaço de representação, são importantes para o nosso sentido de humanidade. E aí onde está a grande reviravolta. Timidamente começa a acontecer hoje, nós pensarmos, o que é que nos interessa sermos vencedores? Como se costuma dizer, numa guerra quem é vencedor afinal? Numa guerra somos todos perdedores.

No fundo, se olharmos para o que foi a escravatura, o que foi a colonização, o trabalho forçado, a guerra colonial, acabamos por perder todos. Acabaram por perder os próprios portugueses, porque parte da sua humanidade foi comprometida nesses atos. E hoje o que se pede é o mínimo de empatia e honestidade quando somos confrontados com factos históricos. Quando falamos dos capítulos trágicos da história, não é certamente para incitar o ódio, ou dividir o mundo entre os “bons” e os “maus”, os extremismos tendem a anular o diálogo e a diversidade de pensamento. A história já nos ensinou as graves consequências quando nos tornamos incapazes de dialogar, pois somente dialogando será possível perceber a complexidade dos eventos que moldaram profundamente o que somos.

A ideia de reparação?
 
Há muitos modos de se pensar na reparação. Muitas vezes, quando se fala em reparação pensa-se logo em grandes somas de dinheiro transferidos para África. Não deixa de ser legítimo, porque é possível contabilizar em números os ganhos que se obtiveram com tráfico transatlântico. Já se sabe da participação dos bancos no processo escravista, o chamado capitalismo escravocrata. Pode-se calcular esse número e chegar a uma reparação por essa via. Mas culturalmente falando não é bem essa reparação, vai muito mais além do que números. É mais do lado da empatia sobre a dor alheia, o espaço de voz, do outro lado, de quem foi vítima. No fundo, sempre existiram estratégias de silenciamento das pessoas que foram vítimas de processos violentos ao longo da história.

Tenho visto diversas vezes que cada vez que uma pessoa negra se indigna pelo facto de ter sofrido uma injustiça, a nova estratégia de silenciar é acusá-la de “vitimismo”. No Brasil chamam de mimimi. Não se pode falar, não se pode dizer nada. As pessoas têm que perceber que ao longo da história houve formas muito violentas de silenciar essa dor e essa indignação. O norte-americano considerado o pai da ginecologia moderna, James Marion Sims, operava as mulheres negras sem anestesia, porque dizia que as mulheres negras tinham uma maior capacidade para suportar a dor. O Padre António Vieira que dizia que a salvação da alma dos negros era no cativeiro, como forma de amansar o espirito dos africanos escravizados mais revoltados. Ou aquela conversa que até hoje ainda persiste, de que o negro não deprime. Tudo tentativas de apagar e silenciar. Mesmo quando não estamos a falar de algo abstrato, como o caso da Claúdia Simões espancada pela polícia, por ter embarcado num autocarro sem bilhete. Só as pessoas que sofreram essa dor, essas injustiças, podem falar sobre isso. Por uma questão de decência, cabe-nos a nós escutar, e sermos solidários quando necessário.

"Não há coisa pior que celebrar a vitória sobre um inimigo, que é o seu próprio povo"

Reparação através da escuta contra a perda da humanidade?
 
Sim, a perda do sentido de humanidade é a grande derrota dos povos que dominaram os outros. Foi a perda dessa humanidade por atos horríveis. E mesmo falando de uma geração que não foram eles que cometeram esses crimes. Mas são herdeiros, vivem desse passado e têm um certo privilégio e um certo conforto de vida que é resultado desse processo, mas mesmo assim vivem em constante negação. Penso que a arte pode ser um meio efetivo para reavivar essa empatia. Como disse antes, numa guerra somos todos perdedores. Eu sei do que falo, pela questão em Angola. Não há coisa pior que celebrar a vitória sobre um inimigo, que é o seu próprio povo.

Que ainda por cima é o seu próprio povo...
 
Olha para a América de hoje que andou pelo mundo, supostamente a defender a democracia, chacinaram povos, promoveram golpes de estado e hoje vemos a quantidade de veteranos de guerra norte-americanos que estão completamente traumatizados, que são um fardo pesado para seu país. Veja-se no ataque ao Capitólio, uma mulher que era veterana há 14 anos na força aérea americana e que levou um tiro no peito, lá bem dentro do Capitólio. Olhar para esse país e ver a herança nefasta dessa violência e dessas guerras é bastante revelador. Por mais que os Estados Unidos exibam a sua gloriosa águia e toda a sua supremacia militar, no fundo, acabou por ter uma comunidade considerável de pessoas traumatizadas e mutiladas, onde muitos se tornaram terroristas domésticos facilmente manipulados pelo discurso de ódio e ansiosos por sabotar a democracia do seu próprio país. E a cura, por certo, não será através de discursos inflamados sobre o sentimento patriótico de ser americano.

A arte pode curar feridas?
 
Pode ajudar confrontar a causa das feridas. Picasso dizia que a arte é uma mentira que diz a verdade. Nesse momento em que a verdade está em crise, talvez tenhamos que recorrer à ficção para compreender o mundo surreal em que vivemos. Muitas das coisas que me movem no meio artístico e nos tópicos que exploro, não é motivado por razões caritativas. Existe uma grande indignação em mim. Uma raiva sobre as várias injustiças em diferentes períodos da história e que se tem perpetuado até na minha geração. Uma indignação de viver num país destroçado, que não consegue encerrar os vários ciclos de violência que ocorreram ao longo da história, e ocorrem até nos dias de hoje, pois a miséria também é uma forma de violência, das mais cruéis. A arte é um meio pacífico de expressar essa revolta, um meio capaz de intermediar as nossas frustrações, trazendo a luz múltiplas formas de vida, que extravasam o sentido real.

O objeto em si, deixa de me pertencer no momento em que é criado, e só passa a ter sentido no momento em que é capaz de interagir e tocar nas emoções de quem o observa. Então, mais do que uma questão estética, ou a possibilidade de moldar a matéria, eu crio arte para provocar emoções.

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