Está aqui

A Cantiga é uma Arma

O trabalho, a vida do Zé Mário, são demasiado importantes, demasiado essenciais para nos limitarmos a admirá-lo ou, mesmo, a venerá-lo, do que ele não gostaria mesmo nada… Por Mário Tomé
José Mário Branco (1942-2019)
José Mário Branco (1942-2019)

Morreu o Zé Mário Branco. Não faleceu, não partiu, não nos deixou. Morreu simplesmente.

Mas, afinal, temo-lo connosco, hoje e para sempre, o tempo que cada um de nós durar. Que Portugal durar. Que o mundo durar

Tal a importância da sua vida, ou seja daquilo que ele fez para nós todos. O seu amor pela música, a sua entrega à acção política – “eu sou político porque sou músico; não sou músico porque sou político” – marcam toda uma época de combate sem tréguas que, como ele próprio afirmou, teve início quando deu o salto da igreja católica, suporte do fascismo, para outra igreja a do dogmatismo político, o PCP, mas onde, na altura, ele encontrou a possibilidade de lutar contra o fascismo. Era jovem, que jovem era.

Os jovens foram então condenados a ir matar e morrer na guerra colonial. Ao perceber a orientação do então seu partido para integrarem as tropas coloniais o Zé Mário disse para consigo: eu não vou matar o meu irmão a quem só quero abraçar e dizer-lhe força camarada!

Aí começa, decerto, a sua linda e dura caminhada de rebeldia e de entrega radical da sua arte à luta dos trabalhadores, dos emigrantes em França, dos povos das colónias.

O Maio de 68 foi o grande momento do salto em frente para os grupos de exilados políticos em França. Os nossos artistas que iam tocando e cantando para os emigrantes nos seus bidon-ville, viram-se de súbito no grande movimento que, juntando estudantes e operários. levou à maior greve geral da história de França – 10 milhões de trabalhadores da cidade e do campo - confrontando nos seus alicerces a sociedade e a civilização burguesas.

Então a canção saltou para as fábricas ocupadas. A canção de protesto anti-fascista e anti guerra colonial enraizou-se na luta anti-capitalista, anti-imperialista. Os nossos cantautores estavam prontos para marcar o 25 de Abril, para incendiar o proletariado para lhe oferecer o “barco de sonho” que havia de incendiar o PREC.

Na relação entre utopia e revolução o Zé Mário foi encontrar-se com a UDP que ajudou a fundar. Assim como fundou o mais importante grupo de música popular e de intervenção, o GAC- Vozes na Luta

Utopia e revolução as duas coordenadas do movimento socialista, de acordo com Karl Marx.

O “FM”I foi, decerto, como disse o Zé Mário, uma catarse.

Mas eu acho que foi ainda mais um grito brutal e necessário de rebeldia e de revolta – “um grito com as tripas” - contra as camisas de forças que em nome de uma racionalidade política forjada pela ideologia, os “comités centrais e associados”, demarcam os limites da luta no temor que a “liberdade à solta” e o ámen expurgado impeçam a chegada ao objectivo por eles previamente traçado. Eles, os que sabem.

Mas para o Zé Mário não basta ter razão, e ele tem razão, é preciso mudar desde que as pessoas estejam interessadas. Portanto é preciso política. Ou seja, a política é a arte de orientar sabendo seguir.

E, de facto, é esta a base para o entendimento de qualquer movimento revolucionário.

O Zé Mário soube entender o evoluir da nossa história e dar-lhe sempre a resposta adequada na sua música e nas suas palavras cantadas ou ditas

O Zé Mário soube entender o evoluir da nossa história e dar-lhe sempre a resposta adequada na sua música e nas suas palavras cantadas ou ditas. Mas nunca se acomodou, a incómoda necessidade da revolução esteve sempre presente, sempre exposta de uma ou de outra forma.

A raiva e a alegria, servidas por um grande rigor ético e estético, foram sempre a referência com que disputou e ganhou a adesão das novas gerações como tinha conquistado a da malta do PREC. Porque, para ele, a forma é o conteúdo.

A canção de intervenção para os dias de hoje é o RAP. Ele mesmo o quis mostrar na sua relação com os nossos rappers como o Chullage e o Ruas que bem lembrou que antes de o RAP aparecer nos States já o “FMI” era RAP.

O seu “Mudar de Vida” – ou, talvez melhor, “mudar a vida” como também o ouvi dizer – é a prova de que o essencial está aí, na acção e no pensamento para a revolução.

O trabalho, a vida do Zé Mário, são demasiado importantes, demasiado essenciais para nos limitarmos a admirá-lo ou, mesmo, a venerá-lo, do que ele não gostaria mesmo nada...

Temos que aprender com ele: a liberdade é o alicerce da igualdade. Não poderemos tolerar qualquer espaço onde a liberdade seja ameaçada. Esta a grande mensagem que a juventude de hoje está predisposta a entender.

Texto de Mário Tomé

Sobre o/a autor(a)

Coronel na reforma. Militar de Abril. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
(...)

Neste dossier:

José Mário Branco 1942-2019

José Mário Branco, a voz da inquietação

Este dossier é a singela homenagem do esquerda.net ao artista, cantor, compositor e lutador contra as opressões. É um dossier com textos publicados após o falecimento, mas também com documentos publicados anteriormente no esquerda.net

Eu não cantei com o Zé Mário…

Confessei ao Zé Mário o meu arrependimento [por não ter cantado com ele em Lisboa] e ele disse-me: "tranquilo pá… existirão outras oportunidades!!". Mas nunca mais existiram… ou talvez sim! Ainda ontem cantei que “A cantiga é uma arma” (contra a burguesia) no Val do Límia. E continuarei a cantar!! Por Xose Constenla.

José Mário Branco fotografado em casa para a revista BLITZ. Foto de Rita Carmo

José Mário Branco: “A cantiga só é arma quando a luta acompanhar”

“Se decidirem mudar de vida, contem comigo. Eu não esqueci que A Cantiga é uma Arma. Mas a cantiga só é arma quando a luta acompanhar”. Ouça o áudio e leia aqui a transcrição da mensagem enviada por José Mário Branco aquando da projeção, no Desobedoc, em abril de 2014, do filme “Mudar de Vida, José Mário Branco, Vida e Obra”, de Pedro Fidalgo e Nelson Guerreiro.

José Mário Branco (1942-2019)

De longe, para muito longe

Sim, foi um músico genial, exigentíssimo, inventor da maravilha em meia dúzia de acordes e em arranjos dissonantes. Sim, foi um poeta da música raro, militante da palavra ardente, às vezes mordaz outras vezes emocionante, sempre desinstalador. Por José Manuel Pureza

Jose Mário Branco 1942-2019

O representante de todos os ouvintes futuros

Lisboa vai ser homenageada com o nome José Mário Branco numa das suas ruas, praças ou avenidas. Numa conferência em 2018, organizada pelo Bloco de Esquerda, falou sobre o processo de criação. Retirei umas notas que vale a pena deixar aqui. Por Tiago Ivo Cruz

José Mário Branco (1942-2019)

José Mário Branco saíu de cena, mas não morreu...

O maior criador de música portuguesa de todos os tempos, a par de José Afonso, saíu de cena, mas não morreu... Porque os génios vivem para sempre! Por Carlos Vieira

José Mário Branco (1942-2019)

Inquietação, inquietação, é só inquietação…

O Zé Mário não é só um músico, eu vejo-o como um construtor de canções, um “influenciador” dando sempre de si a outros artistas que por sua vez nos deram a nós grandes momentos de Cultura. Por Helena Pinto

José Mário Branco, um compositor e arranjador que vai sempre à frente

Abril, mês de todos os sonhos, todos os projectos, todos os delírios. E lá andava o Zé Mário em todas as frentes e, sobretudo, na frente da música. Por José Fanha.

Momentos galegos do Zé Mário Branco

Dou conta de três situações que vivi e deixam, na minha opinião, bem palpável a enorme personalidade de um músico, criador de múltipla expressão e imenso homem de palco, assim como o permanente compromisso de um lutador sem concessões. Por Carlos Méixome.

Do Zé e do Zeca, com a Galiza ao fundo

O Zé Mário Branco fica para sempre no melhor deste povo da Galiza, consciente da sua dependência colonial, dos seus direitos negados e da pilhagem económica, linguística e cultural, com o qual foi tão solidário. Por Antón Mascato.

Criatividade e musicalidade postas ao serviço de uma cidadania inteira e vertical

Escorado nessa amizade, fui acompanhando o seu percurso no Teatro do Mundo, na UPAV e noutros palcos, admirando-lhe a criatividade, a musicalidade e a oratória, postas ao serviço de uma cidadania inteira e vertical. Por Manuel Pedro Ferreira.

Muito mais vivo que morto

Foi através da permanente inquietação por saber que a fome e a sede existem, a do estômago e a de viver, que José Mário Branco se apaixonou pela música e com ela fez caminho até há pouco. Por Pedro Fidalgo.

José Mário Branco e Luís Cília. Regresso a Portugal, em abril de 74. Reprodução de imagem da RTP Arquivo.

O Zé Mário é, sobretudo, um excelente músico

Em declarações ao esquerda.net, o compositor e intérprete musical Luís Cília refere que Zé Mário era "um excelente compositor de canções": "Isso é o principal. Mas, a vários níveis, o Zé Mário Branco teve um trabalho muito importante", frisa.

Foto de Arlindo Camacho.

“Só guardamos o que demos”

A resposta do meu pai foi uma das maiores lições de humanidade que recebi na vida. Partilho agora com vocês uma parte desta mensagem. Façam bom uso dela! Por João Branco.

José Mário Branco (1942-2019)

A Cantiga é uma Arma

O trabalho, a vida do Zé Mário, são demasiado importantes, demasiado essenciais para nos limitarmos a admirá-lo ou, mesmo, a venerá-lo, do que ele não gostaria mesmo nada… Por Mário Tomé

O Zé Mário nunca deixou que pensassem pela sua cabeça

Em declarações ao esquerda.net, Afonso Dias, que foi um dos fundadores do Grupo de Acção Cultural (GAC), afirmou que José Mário Branco, a par de ser um músico, arranjador e criativo brilhante, era um “cidadão livre e independente”.

O Zé Mário conhecia tão bem o Zeca que se permitiu fazer o que fez no Cantigas do Maio

Quero recordar o que me disse uma vez o Zé Mário acerca da música do Zeca: “é uma questão de higiene ouvir toda a discografia do Zeca, e eu faço-o pelo menos uma vez por ano”. Foda-se que tenha de ser tão duro passarmos a ter mais uma discografia para ouvir todos os anos, por questão de higiene. Por Carlos Guerreiro.

José Mário Branco, operário das artes do espectáculo

José Mário Branco, operário das artes do espectáculo; nem mais, um operário. Um mestre como os mestres que admiravas, sapateiro, padeiro, pescador, mestres da vida na arte da presença. Por Rui Júnior.

Há sempre qualquer coisa que está para acontecer... ZMB maior que a música

José Mário Branco foi muito mais do que cantor de intervenção. É inquestionavelmente um homem com uma cultura musical abrangente, o melhor arranjador de Música Popular, compositor de novos fados singular, como provam os trabalhos discográficos com a sua mão, ouvidos e sensibilidade para Camané. Por Soraia Simões de Andrade.

Vídeos de José Mário Branco

O Esquerda.net juntou uma entrevista exclusiva, a intervenção no Fórum Socialismo 2018 e várias canções de José Mário Branco.

Francisco Louçã sobre José Mário Branco

"Ouvi-o, então exilado em França, nos discos que aqui se distribuíam, era a força genial da música popular portuguesa contra a ditadura." Por Francisco Louçã.

José Mário Branco (1942-2019) - Foto do Fórum Socialismo 2018

Nota de pesar do Bloco sobre a morte de José Mário Branco

O Bloco de Esquerda divulgou uma nota de pesar onde “presta homenagem ao destacado artista, cantor e compositor” e apresenta condolências a Manuela de Freitas, à família e aos amigos.

José Mário Branco (1942-2019)

Morreu esta terça-feira José Mário Branco, músico que ao longo de meio século de carreira deixou a sua marca na cultura portuguesa e em várias gerações de artistas. O velório realiza-se esta quarta-feira a partir das 17h no salão nobre da Voz do Operário. O funeral sai deste local às 17h30 de quinta-feira para o cemitério do Alto de São João.

A ocupação da fábrica LIP em Besançon durou anos - Imagem lesutopiques.org

O outro aspeto do Maio de 68: a greve geral com ocupação dos locais de trabalho

“No princípio de junho [de 68], havia sete milhões de trabalhadores em greve, na França toda. Não havia gasolina, não havia restaurantes abertos” destaca José Mário Branco ao esquerda.net, no seu testemunho sobre o Maio de 68. Entrevista de Carlos Santos

"No canto não há neutralidade", por José Mário Branco

Transmissão na íntegra da sessão "No canto não há neutralidade", no Fórum Socialismo 2018.

José Mário Branco (1942-2019) - Fotos do arquivo de José Mário Branco http://arquivojosemariobranco

A oficina da canção

Texto de José Mário Branco, sobre o processo de produção das canções, desde a sua invenção até que chegam aos ouvidos e às mãos das pessoas. Foi publicado originalmente em passapalavra.info, em quatro partes (disponível também no dossier Fórum Socialismo 2018 do esquerda.net)

Maio de 68 por José Mário Branco

José Mário Branco viveu de perto o Maio de 68 e fala sobre esses tempos em conversa com Carlos Santos.

Entrevista a José Mário Branco

Entrevista de Carlos Santos a José Mário Branco em julho de 2018 sobre a disponibilização online do arquivo da sua obra, a publicação do álbum 'Inéditos 1967-1999' e a perseguição aos imigrantes nos EUA e na Europa.

“Não vejo grandes hipóteses de uma força política proteger os desgraçados que querem fugir do inferno se não tiver uma visão de classe no seu sítio”, afirma José Mário Branco

“Uma saída positiva para as grandes massas, nunca está na moderação, está na radicalidade”

Ao esquerda.net, José Mário Branco fala da disponibilização pública do seu arquivo, do seu último álbum, dá-nos um importante testemunho sobre o Maio de 68 e afirma que “é terrível” a perseguição aos imigrantes. Entrevista de Carlos Santos.

José Mário Branco - Foto publicada no site da FCSH

Inéditos 1967-1999, de José Mário Branco

Uma viagem a três décadas de trabalhos essenciais e uma oportunidade para registar estilos diferentes, canções em diversos tons e línguas, documentando uma história do pensamento, das intervenções e da música de José Mário Branco. Por Francisco Louçã

Arquivo de José Mário Branco disponível na internet a partir desta terça-feira

A apresentação do arquivo digital, que resulta de um trabalho de investigação do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical da Universidade Nova de Lisboa, está agendada para esta terça-feira, às 17h, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. A iniciativa conta com a presença de José Mário Branco.