Brasil: o fim de um ciclo e um salto no escuro

A “tempestade perfeita” que levou Jair Bolsonaro à Presidência representa o fim do ciclo político marcado pela Constituição de 1988, e a abertura de um outro ciclo de contornos ainda em grande parte indefinidos. Por Luis Leiria.

22 de dezembro 2018 - 18:57
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O presidente Michel Temer e o presidente eleito Jair Bolsonaro participam da Cerimônia de Lançamento do Submarino Riachuelo. Foto Tomaz Silva - Agência Brasil.

2018 ficará para a história do Brasil como o ano em que se encerrou o ciclo político marcado pela Constituição de 1988 e se abriu um novo, de contornos ainda em grande parte desconhecidos. A eleição de um candidato de caraterísticas abertamente neofascistas, Jair Bolsonaro, mostrou de forma eloquente até onde chegara a agonia do regime precedente.

As eleições de outubro mostraram a crise aberta dos partidos que tinham marcado e governado o ciclo precedente: o PSDB de Fernando Henrique Cardoso, José Serra e Aécio Neves, o PMDB de Michel Temer e o PT de Lula da Silva. As derrotas eleitorais que todos eles sofreram varreram-nos dos centros do poder. No caso do PT, embora tivesse ainda mantido a primeira bancada parlamentar em número de deputados, reapareceu após outubro como um partido praticamente encurralado numa região do país, o Nordeste.

Golpe parlamentar de 2016

O fim deste ciclo começou com o golpe parlamentar de 2016. A presidente Dilma Rousseff foi afastada do poder por força de uma acusação sem qualquer sustentação legal, que contou, porém, com o apoio da maioria do Congresso. A elite do Brasil, a burguesia, o setor financeiro, os latifundiários do agronegócio despediram do poder o partido que durante tanto tempo lhes fora útil, permitindo-lhes ganhos nunca antes vistos ao custo de pequenas concessões aos mais pobres. Terminada a época do “win-win”, em que a busca desenfreada global por matérias-primas colocou o Brasil numa posição económica conjunturalmente privilegiada, a crise internacional repôs o capitalismo brasileiro no seu curso de sempre: para uns poucos continuarem a ganhar faustosamente, muitos têm de perder.

E se o PT não conseguia impor, ao ritmo que a elite exigia, o ajuste fiscal do banqueiro Levy, chamado à pressa a servir o governo de Dilma, então era preciso afastá-la. O PT tornara-se inútil. Como último ato da tagédia, perdera até a hegemonia das ruas, pagando dessa forma o resultado de anos de conciliação de classes e do sonho tornado pesadelo de se eternizar no poder por via dos mensalões e petrolões.

Caixa de Pandora

A manobra que afastou Dilma, porém, abriu uma caixa de Pandora cujas consequências nem os seus autores imaginavam. As massas, essencialmente de classe média, que tinham ganho as ruas para exigir a queda de Dilma e a prisão de Lula, não estavam dispostas a voltar ao mesmo rame-rame de sempre. Alckmin – o candidato preferido das elites –  no lugar de Dilma, não seria mais que o  mesmo business as usual de sempre. Mas a radicalização das ruas à direita exigia mais.

A crise económica em que mergulhara o Brasil veio assim juntar-se à crise de representação política da direita e criou a tempestade perfeita para a vitória de Bolsonaro. O capitão reformado construíra pacientemente, durante 28 anos, uma carreira medíocre entre o chamado “baixo clero” dos deputados do Congresso Nacional; mas nem nos seus mais gloriosos sonhos se via a subir a rampa do Palácio do Planalto, em janeiro de 2019, envergando a faixa presidencial.

Todos os fatores, porém, se conjugavam para o impensável acontecer: a sede de poder e o pragmatismo das igrejas evangélicas que desta vez viram no capitão a melhor forma de ampliar o seu poder (lembremos que a Igreja Universal do Reino de Deus dera o seu apoio a Dilma Rousseff em disputas eleitorais anteriores); as primeiras eleições em que a manipulação da internet e das notícias falsas contou mais que a propaganda televisiva; até mesmo o tentado fracassado que Bolsonaro sofreu.

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O outro fator decisivo foi consequência da vitória do golpe de 2016: o afastamento da corrida presidencial do primeiro colocado nas sondagens, o ex-presidente Lula da Silva. Lula jogou até o fim o jogo do regime a que servira: entregou-se de peito aberto à Justiça apostando que uma transferência de votos de última hora para o candidato que ele mesmo ungisse, quando ficassem esgotadas todas as possibilidades de se apresentar aos eleitores, lhe traria, afinal, a vitória.

O plano quase deu certo e a transferência de votos de Lula para Haddad é algo nunca visto antes. Mas não foi suficiente.

Salto no escuro

Hoje o Brasil vive a angústia do salto no escuro. O governo que assume no dia 1 de janeiro combina o mais desconcertante amadorismo com graus de fanatismo difíceis de imaginar, um ultraliberalismo doente e uma declaração de guerra aos direitos dos trabalhadores, das mulheres, dos negros, dos índios. O nacionalismo típico da extrema-direita foi, neste caso, substituído por uma subserviência parola ao governo Trump. Nem nos tempos da ditadura militar o Itamaraty (o Ministério dos Negócios Estrangeiros) se pautou por tais princípios. A forte presença militar em todas as áreas do governo, porém, pretende ser o garante da estabilidade do executivo.

Escândalos não matam, mas moem

Terá sucesso? Ainda antes da posse, as crises já aparecem, difíceis de controlar. O capitão que se apresentou como antissistema, apesar de durante 28 anos ter comido do prato do mesmíssimo sistema que agora ataca, já se vê em dificuldades para explicar escândalos que rondam a sua própria família. Como as trapalhadas do segurança do filho do presidente eleito, o senador eleito Flávio Bolosnaro, que administrou uma conta bancária de 1,2 milhão de reais de movimento anual, sem possuir ganhos ou património que justificasse esse caudaloso tráfego financeiro. O segurança, de nome Queirós, já adiou por duas vezes o depoimento que supostamente explicará a origem da dinheirama. Já são duas semanas sem explicação, que começam a dar força à pergunta que não quer calar: onde está Queirós?

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O caso não tem ainda potencial para ferir de morte o prestígio dado a Bolsonaro por 57 milhões de votos. Mas, se não mata, mói. Como já moeu a provocação do presidente eleito que levou o governo de Havana a retirar do Brasil os mais de 8.500 médicos cubanos que garantiam o atendimento às populações nos lugares recônditos, onde os clínicos brasileiros não queriam viver.

Guerra de classes

O governo que toma posse em janeiro já anunciou que terá como prioridade a (contra) reforma da Previdência (Segurança Social), apesar de esse tema não ter sido nunca anunciado durante a campanha eleitoral. Será a primeira prova da sua capacidade de levar adiante a guerra de classes que é, afinal, a sua própria essência.

Como parte desta guerra, paira a ameaça de criminalização dos movimentos sociais e até a prisão das suas lideranças, como o ex-candidato do Psol e líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Boulos.

O regime que Bolsonaro começa a desenhar em janeiro terá como componente claro o ataque às liberdades democráticas essenciais, contando provavelmente com a cumplicidade do Judiciário e a maioria do Congresso. Nem vai precisar de uma grande alteração do quadro legislativo para o fazer: basta usar, por exemplo, a Lei Antiterrorista que recebeu de herança de Dilma Rousseff. Também não vai precisar de promover grandes alterações na composição da cúpula da Justiça: o atual presidente do Supremo, Dias Toffoli, que foi advogado de duas candidaturas de Lula da Silva, assessor parlamentar da bancada do PT e assessor jurídico da Central Única dos Trabalhadores, já demonstrou que não pretende ser obstáculo a Bolsonaro. Ou não foi ele que garantiu a manutenção de Lula na cadeia, apesar de decisões para a sua libertação tomadas por seus pares que ele, como presidente do STF, anulou?

Com a  responsabilidade de quem vai estar na barricada da resistência a Bolsonaro, a esquerda precisa unir-se sempre que estiver em causa a defesa das liberdades democráticas. Mas precisa igualmente construir novas alternativas face à rotunda negativa do PT de assumir qualquer autocrítica da sua trajetória de conciliação e de envolvimento com a corrupção. Combinar a unidade indispensável para a resistência com o necessário balanço para que não se repitam os erros do PT é tarefa delicada. Mas é a que está em grande parte nos ombros de Guilherme Boulos, do Psol e dos partidos e movimentos sociais que se uniram para apresentar a candidatura de Boulos à Presidência.

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