Extrema-direita

Ventura integra Chega na teia de Putin

15 de julho 2024 - 12:28

A extrema-direita europeia tenta hoje disfarçar as suas velhas ligações a Vladimir Putin. Mas a aliança “Patriotas Pela Europa” - que o Chega acaba de integrar - tem Viktor Orbán como principal promotor. Dois dias antes de lançar este grupo, o primeiro-ministro húngaro esteve no Kremlin.

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Ventura é a mais recente contratação do grupo aliado de Putin no Parlamento Europeu
Ventura é a mais recente contratação do grupo aliado de Putin no Parlamento Europeu

Viktor Órban teve uma semana em cheio. Dois dias depois de aterrar em Moscovo, onde foi reunir-se com Vladimir Putin, o dirigente húngaro selou a recomposição da extrema-direita continental com a criação do grupo parlamentar europeu “Patriotas pela Europa”, de que foi o grande impulsionador. Enquanto primeiro-ministro, Órban acaba de iniciar o semestre de presidência do Conselho da UE sob o slogan “Make Europe Great Again”, uma provocação com base no slogan da campanha de Trump, outro aliado político. A Hungria continua a ser um assumido aliado da Rússia na União Europeia.

Vitor Orbán no Kremlin com Vladimir Putin, julho 2024
Vitor Orbán no Kremlin com Vladimir Putin, 5 de julho 2024. Foto Kremlin.

 

Le Pen no Kremlin: financiamento secreto e apoio público

A presidência dos “Patriotas pela Europa” será atribuída ao líder da União Nacional francesa, Jordan Bardella, que o povo afastou do cargo de primeiro-ministro na segunda volta das legislativas e que ocupará o lugar de eurodeputado. A ligação da União Nacional ao Kremlin é conhecida e bem documentada, nomeadamente nos extratos bancários do financiamento concedido em 2014 por bancos russos ao partido então liderado por Marine Le Pen. E ficou mais uma vez patente no início de julho, através de uma mensagem de apoio eleitoral do alto diplomata Andrei Nastasin na conta oficial do Ministério dos Negócios Estrangeiros russo no X: “O povo francês procura uma política externa soberana que sirva os seus interesses nacionais e uma rutura com os ditames de Washington e Bruxelas. Os responsáveis franceses não poderão ignorar estas mudanças profundas nas atitudes da grande maioria dos cidadãos”.

Marine Le Pen e Vladimir Putin
Marine Le Pen e Vladimir Putin em março de 2017. Foto Kremlin.

 

Extrema-direita belga legitimou anexação da Crimeia

Os Patriotas pela Europa serão o terceiro maior grupo no Parlamento Europeu, com 84 eurodeputados. Com Bardella na presidência, o poderoso lugar de secretário-geral foi entregue ao belga Philip Claeys, do Vlaams Belang (VB), outro partido com conhecidos laços a Moscovo. Há ainda pouco tempo, um dos seus principais dirigentes, Filip Dewinter, aplaudia Putin por defender o conservadorismo cristão: “a única coisa boa da Cortina de Ferro é que salvou a Europa de Leste do politicamente correto, do multiculturalismo e do 'wokeness’”. Em 2014, outros três dirigentes do VB deslocaram-se à Crimeia no papel de “observadores” do referendo organizado pelo Kremlin para legitimar a anexação do território. A invasão de 2022 obrigou o VB a ajustar posição face à Rússia, com o seu líder Tom Van Grieken a admitir ter estado enganado sobre Putin. O próprio Dewinter passou a chamá-lo de ditador “de cabeça perdida”. Nesse ano, o cônsul-geral russo na Bélgica foi expulso do país por suspeitas de espionagem, depois de ser visto várias vezes em público com Dewinter, que chegou a convidá-lo para encontros no parlamento flamengo.  Este ano, Dewinter continuou na mira das autoridades, desta vez por suspeitas de colaboração com espiões chineses.

Jan Penris (VB), Aldo Carcaci (PP) e Filip Dewinter (VB) com comandantes russos na Síria
Jan Penris (VB), Aldo Carcaci (PP) e Filip Dewinter (VB) com comandantes russos numa base militar na Síria em 2017. Imagem Russia Today

A Liga de Salvini, irmã do partido oficial russo

Outro velho aliado de Putin (e bom amigo do Chega) é o líder da Liga italiana, Matteo Salvini. Correu mundo a sua foto em plena Praça Vermelha, vestindo uma t-shirt com a figura de Putin em traje militar. Após a anexação da Crimeia, há dez anos, o Kremlin começou a ligar-se à extrema-direita ascendente na Europa e depois ao projeto de Donald Trump. Em 2017, o partido de Putin, Rússia Unida, assinou um acordo “de cooperação” com a Liga Norte. O acordo regressou à baila este ano quando Salvini anunciou que a Liga estaria presente numa vigília em memória de Alexei Navalny, mesmo depois de ter manifestado dúvidas sobre se este teria sido assassinado. “Eu mal sei o que se passa em Itália, quanto mais noutro lado do mundo”, disse então Salvini, atual vice-primeiro-ministro do governo Meloni. Foi então desafiado a mostrar o acordo com a Rússia Unida e a provar que ele tinha sido rasgado. Não deu resposta.

Salvini na Praça Vermelha em 2014 com t-shirt estampada com imagem de Putin
Salvini na Praça Vermelha em 2014 com t-shirt estampada com imagem de Putin

Vox espanhol crítico da Rússia só na 25ª hora

Se Orbán, Le Pen e Salvini são os aliados mais notórios de Moscovo, cujo percurso comum com Vladimir Putin é impossível de apagar, outros partidos do grupo “Patriotas pela Europa” possuem a mesma afinidade política, ainda que mais discreta, por temor ao apoio da opinião pública à Ucrânia invadida. Exemplar é o Vox espanhol: são conhecidas as ligações financeiras entre oligarcas próximos do Kremlin e organizações-satélite do partido liderado por Santiago Abascal, como o Hazte Oir e a sua filial global CitizenGo. Já depois da invasão da Ucrânia em 2022, Abascal declarava: “Putin é uma personagem que se posiciona contra a estupidez da esquerda. Mas só porque alguém está certo sobre algo não o torna bom em tudo o resto”. Entre os próximos do líder do Vox estão partidários abertos de Putin, como o recentemente falecido escritor Sánchez Dragó e o dirigente do Vox catalão, Jordi de la Fuente, que editou o ultranacionalista russo e ideólogo putinista Alexander Dugin. Apesar de tudo isto e de, antes da invasão, nunca ter criticado Putin, Abascal aprova hoje as resoluções do parlamento espanhol em apoio da Ucrânia e chega a acusar de ligação ao Kremlin os setores anti-NATO da esquerda espanhola. A adesão do Vox aos “Patriotas pela Europa” representa um realinhamento político do partido no plano europeu: foi o único a trocar o grupo Conservadores e Reformistas Europeus (ECR, liderado pela primeira-ministra italiana Giorgia Meloni) pela família Orbán-Le Pen.

Jordi de la Fuente
Jordi de la Fuente é um dos admiradores de Putin na direção do Vox. Foto publicada na sua conta X.

 

No FPÖ austríaco, todos os escândalos vão dar a Moscovo

Mais próxima e antiga é a relação do Partido da Liberdade Austríaco (FPÖ) ao regime de Putin. Tal como a Liga de Salvini, a anexação da Crimeia não interferiu nas relações com Moscovo e o FPÖ até assinou um protocolo com o partido de Putin, o Rússia Unida, um ano antes dos colegas italianos. Desde então, atribui culpas ao Ocidente pelo conflito e critica as sanções à Rússia. Embora o atual líder Herbert Kickl se tenha distanciado daquele protocolo, a verdade é que o partido não o denunciou, permitindo a renovação automática até 2026.  Parceiro minoritário no Governo a partir de 2017, para o FPÖ a ligação à Rússia foi fatal e levou à saída do executivo em 2019 no chamado “escândalo Ibiza”. Num vídeo filmado com câmara oculta, o então líder do FPÖ e vice-chanceler Heinz-Christian Strache surgia discutindo com uma suposta sobrinha de um oligarca russo a possibilidade de apoio financeiro ao partido em troca da promessa de acesso a contratos públicos.

Ex-ministra dos Negócios Estrangeiros indicada pelo FPÖ, Karin Kneissl, dança com Vladimir Putin no seu casamnto. Foto Kremlin.
Ex-ministra dos Negócios Estrangeiros indicada pelo FPÖ, Karin Kneissl, dança com Vladimir Putin no seu casamento em 2018. Foto Kremlin.

Ao longo das últimas décadas, o estatuto neutral do país e a dependência energética da Rússia colocou a Áustria numa posição distinta da maioria dos países europeus, com um historial de boas relações das elites económicas e políticas com os seus congéneres russos, refletindo-se também nos índices mais baixos de apoio à Ucrânia nos inquéritos feitos entre a população europeia. Em março passado rebentou novo escândalo, quando foi detido um antigo espião, acusado de passar informações à Rússia a troco de dinheiro, incluindo os dados telefónicos de três altos funcionários do Ministério do Interior. O caso remontaria a 2017, quando o ministro do Interior era o atual líder do FPÖ. Na pasta dos Negócios Estrangeiros desse governo estava uma figura indicada pela extrema-direita, Karin Kneissl, que convidou Putin para o seu casamento e fez questão de dançar com ele, poucos meses depois de vários países europeus - mas não a Áustria - terem expulso diplomatas russos em retaliação pelo envenenamento do ex-espião Sergei Skripal em Inglaterra. Após deixar o cargo aceitou em 2021 um lugar na administração da petrolífera russa Rosneft, tendo saído em maio de 2022. No ano passado a ex-ministra anunciou no seu canal do Telegram a satisfação pelo facto de os seus póneis, mantidos na Síria, terem sido levados num avião militar para a Rússia, o país onde agora vive e dirige o Centro Gorki, think tank de geopolítica associado à Universidade de São Petersburgo.

Países Baixos: vitória de Wilders saudada por ultranacionalistas russos

O grupo dos Patriotas pela Europa vai poder contar com os seis eurodeputados do Partido da Liberdade (PVV), dos Países Baixos, que passou de 3,5% em 2019 (nenhum eurodeputado) para o lugar de segundo partido, com 17%, meses depois de ter ficado à frente nas legislativas. A opinião pública face à Rússia mudou nos Países Baixos em 2014, quando um avião da Malaysia Airlines com origem em Amesterdão foi abatido sobre a Ucrânia, matando mais de 190 neerlandeses que iam a bordo. A responsabilidade foi atribuída às forças pró-russas no leste da Ucrânia e o Kremlin foi relutante na colaboração com as investigações. Com a invasão russa, os Países Baixos foram dos primeiros a exigir mais sanções a Moscovo. Ainda assim, o PVV, que já não tinha condenado a anexação da Crimeia, criticou o apoio à Ucrânia e descreveu Putin como um “verdadeiro patriota”.

Geert Wilders posa para a foto nas redes sociais no púlpito durante a sua visita à Duma em 2018.
Geert Wilders posa para a foto nas redes sociais no púlpito durante a sua visita à Duma em 2018. Foto publicada na sua conta X (então Twitter),

As opiniões do PVV sobre a Ucrânia são sempre enquadradas no fardo da guerra para os neerlandeses, fazendo a ligação entre as sanções à Rússia e o aumento dos custos da energia e da inflação. Propôs no Parlamento o fim das sanções e a declaração de neutralidade do país no conflito. Quanto a refugiados, mostra abertura a um número limitado de ucranianos, a quem chama de “verdadeiros refugiados”, por oposição a refugiados oriundos do continente africano. Este ano, a imprensa ultranacionalista russa congratulou-se com a sua vitória nas legislativas, apontando-o como “um apoiante da Rússia”, em contraste com o então líder do Governo e futuro secretário-geral da NATO Mark Rutte, considerado “um apoiante fanático da Ucrânia”. Foi também recordado o tweet de 2018 em que Wilders mostrava o seu pin na lapela com as bandeiras russa e neerlandesa, afirmando que o usava “com orgulho” e o seu apelo contra a “russofobia” a legendar as suas fotos tiradas na Duma, onde se encontrou com Leonid Slutsky, então líder da comissão de negócios estrangeiros e alvo das sanções da UE desde a anexação da Crimeia.