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União Europeia avança na regulação da indústria cripto

Depois da “segunda-feira negra" do mês passado, terminam negociações em trílogo de regulações da indústria cripto apresentadas em 2019 e 2020. No entanto, só entrarão em vigor em 2024 e excluem investidores que não recorrem a plataformas para transacionar criptomoedas, NFT e plataformas DeFi.
Foto Jernej Furman/Flickr

Na semana passada foram negociados em trílogo os últimos pormenores de duas legislações europeias importantes sobre a indústria cripto: ToFR e MiCA. Depois de um longo processo de negociação, os regulamentos terão ainda que ser sujeitos a um último voto e entrarão em funcionamento no final do próximo ano ou no início de 2024.

Depois da “segunda-feira negra” de 13 de junho, a União Europeia promete passos importantes para a regulação das criptomoedas. Alguns Estados-Membros têm legislação nesta área, mas esta será a primeira uniformização a nível europeu. Outros centros financeiros relevantes, como os EUA ou o Reino Unido, ainda não avançaram neste campo. 

O eurodeputado Chris MacManus, do grupo parlamentar A Esquerda, presente nas negociações do MiCA, referiu: “É com agrado que vejo este acordo terminado. O caminho é agora claro, o mundo cripto, ou o “oeste selvagem” como Fabio Panetta do BCE o descrevia, deve estar sujeito a um nível de transparência e regulação. Isto estava há muito em falta e deixou os consumidores vulneráveis ​​quando se envolviam em criptoativos, especialmente na transação de criptomoedas”.

No entanto, deve sublinhar-se que as duas regulações incluem ainda cláusulas de revisão passados 18 meses de estar em efetividade, uma vez que ambas continuam a deixar de parte subsetores de atividade e agentes relevantes do mundo dos criptoativos. O jornal Negócios chama-lhe uma regulação “tímida”.

Maior transparência nas transferências denominadas em criptoativos 

A 29 de julho, o Parlamento, a Comissão e o Conselho Europeu chegaram a acordo sobre a Regulação sobre Transferências de Fundos (ToFR), isto é, a legislação que visa combater o recurso a transferências denominadas em criptoativos para práticas de lavagem de dinheiro.  

É um passo particularmente importante uma vez que o setor dos criptoativos está largamente associado a atividades criminosas e a ataques cibernéticos frequentes. A Chainalysis estima que, em 2021, as transações de criptoativos com propósitos ilícitos ascenderam a 14 mil milhões de dólares.  

As transferências de criptoativos podem acontecer em três modelos. Primeiro, entre investidores que recorrem a plataformas que oferecem serviços de compra e venda de criptoativos, as chamadas CASP (Crypto Asset Services Providers), como a Coinbase ou a Binance. Depois, entre investidores em que apenas uma das partes não recorre a uma destas plataformas, detendo e transacionando de forma independente, o que se chama uma unhosted wallet. Por último, entre dois investidores em que nenhum recorre a uma plataforma.

A ToFR prevê que as CASP recolham e verifiquem informação sobre a identidade dos seus utilizadores. Isto quer dizer que, em termos de normas anti-branqueamento de capitais, as transferências denominadas em criptoativos entre este tipo de plataformas serão tratadas de forma semelhante a transferências bancárias. Esta versão da regulação representa um avanço em relação à proposta inicial de 2019 de isentar transações inferiores a mil euros, tal como se faz no que toca a transferências bancárias.  

Quando se detetem movimentações suspeitas, as autoridades competentes nacionais terão acesso à informação. 

O que falta na regulação ToFR

O eurodeputado Urtasun, do grupo Os Verdes explicou que as regras não se aplicam a transações entre utilizadores independentes (P2P), ou seja, em que não existe uma entidade responsabilizável envolvida. Este tipo de transação é o mais difícil de regular e, por enquanto, ainda se discute como será possível fazê-lo. 

Quanto a transações em que uma das partes transaciona de forma independente, a plataforma da contraparte terá que recolher informação e aplicar medidas de diligência, avaliando o risco envolvido. No caso de transferências acima dos mil euros, o beneficiário efetivo da carteira independente terá de ser identificado. 

Visto que deixa espaço de discricionariedade às plataformas na forma como avaliam o risco das unhosted wallets com que interagem, esta parte da regulamentação será revista passados 18 meses. 

Por fim, depois de uma campanha intensa de lóbi, as exigências de identificação extraordinárias foram atenuadas para situações em que os utilizadores detêm criptoativos em carteiras digitais, mas que não interagem em transações.  

Regulamentação do mercado de criptoativos 

No dia seguinte, a 30 de julho, a negociação em torno da regulamentação sobre o Mercados em Ativos Cripto (MiCA) foi também concluída. Esta segunda tem um âmbito mais alargado e o seu principal objetivo é garantir a responsabilização das CASP pelos produtos e serviços que oferecem. Estas precisarão agora de licenças para operar na União Europeia, tanto na emissão como na transação de ativos digitais, e de assegurar que os investidores são devidamente informados quanto ao risco de perdas associadas. 

Chris MacManus, do partido irlandês Sinn Féin, sublinhou a importância desta diretiva na proteção dos consumidores, tal como em qualquer outro ramo do sistema financeiro.

O eurodeputado Ernest Urtasun avançou que grandes stablecoins, isto é, moedas supostamente estáveis por terem o seu valor associado a um ativo de reserva, estarão sujeitas a regras operacionais e prudenciais restritas. Para além de estarem restringidas a um teto máximo de transações diárias de 200 milhões de euros, terão que manter reservas de forma a cobrir a sua procura e garantir a capacidade de resgate dos seus detentores, devendo estar completamente protegidas em caso de insolvência. 

No caso de tokens sem entidades emissoras, como é o caso da Bitcoin, as plataformas terão que emitir um documento informativo (white paper), e ser responsabilizadas por qualquer informação enganadora. 

Também o jornal Politico fez um breve resumo dos pontos mais importantes desta legislação. Primeiro, ainda que o Parlamento Europeu defendesse que a ESMA, o regulador europeu de valores mobiliários, detivesse mais poderes de supervisão, são as autoridades nacionais que passam a estar responsáveis por supervisionar as empresas cripto e os respetivos ativos que emitem. 

No entanto, quando as empresas tiverem mais de 15 milhões de utilizadores, a informação recolhida deve ser partilhada com a ESMA. Para além disso, esta deve emitir opiniões de como promover convergência na regulação e em determinadas situações banir criptoativos e serviços que sejam considerados nocivos para os investidores, a integridade do mercado comum ou para a estabilidade financeira. 

Por seu turno, a EBA (European Banking Authority) terá o poder de supervisão para stablecoins que tenham mais de 10 milhões de utilizadores ou uma reserva de ativos com um valor maior do que 5 mil milhões de euros. O BCE terá a possibilidade de veto de qualquer stablecoin que considere prejudicial. 

Segundo, a ESMA terá a capacidade de criar uma lista negra de empresas que falhem em cumprir com as obrigações previstas. Para além do não cumprimento, poderão também estar incluídas empresas que não estejam registadas no país de atividade, cujos membros da direção sejam suspeitos ou que se comprove um esforço ativo de operar fora das estruturas legais.

Urtasun chama à ESMA o novo “xerife de criptos” na União Europeia e esclarece que esta terá que manter um registo de CASP de países terceiros a funcionar sem autorização. Juntamente com as autoridades nacionais, terá poderes alargados de atuação junto destas entidades listadas, inclusive a possibilidade de encerrar o seu site online. 

Terceiro, as CASP terão que explicitar que tipo de tecnologia blockchain utilizam e a quantidade de energia gasta na criação do criptoativo, informando sobre o seu impacto ambiental. 

Quanto a este ponto, MacManus não deixa de notar, contudo, que o acordo é mais fraco que a sua posição de banir os criptoativos com maior impacto ambiental, ou até mesmo do que em relação à posição acordada no Parlamento Europeu.

NFT e DeFi ficam de fora do acordo, Lagarde apela a um MiCA II

Por fim, o jornal Politico sublinha que o acordo final excluiu produtos e serviços que, entretanto, surgiram no universo cripto desde que o MiCA foi proposto pela Comissão em setembro de 2020.

Por um lado, os chamados NFT (Non-tangible tokens) não foram abrangidos pela legislação, a não ser em situações em que os emissores criem uma coleção de ativos para compra. Nos dias anteriores ao fecho das negociações, esta era das principais preocupações do lóbi cripto. 

Por outro, não existe nenhuma referência a projetos de criptoativos que providenciem serviços financeiros, como por exemplo, empréstimos. Este tipo de plataformas ou aplicações são designados num termo lato de DeFi (decentralised finance) e são cada vez mais comuns. A outra grande preocupação do setor era a restrição deste tipo de atividades. 

Numa audição perante o Parlamento Europeu a 20 de junho, a presidente do BCE, Christine Lagarde, defendeu que a crescente tendência de empréstimos com criptoativos pedia também uma regulamentação, um possível MiCA II.

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