Ao contrário do que se passa em muitos países europeus e no resto do mundo, o nosso país ainda não tem um regime fiscal específico para este tipo de ativos, nem uma benesse para investidores estrangeiros, como é, por exemplo, o regime de residentes não habituais que não tributa pensionistas. O que acontece antes é um vazio legal e falta de vontade política.
Em dezembro do ano passado, o Governo entendeu que não poderia proceder à tributação destes instrumentos sem que o Parlamento procedesse a uma alteração do Código do IRS. O Bloco de Esquerda propõe que esta adaptação seja feita, nomeadamente no âmbito das mais-valias, geralmente tributadas a uma taxa liberatória de 28%.
O Governo parecia querer aguardar por uma tributação concertada a nível europeu. Tal não se afigura plausível, uma vez que pode ser um processo moroso de anos e já existirem regimes distintos a funcionar. Por exemplo, em Espanha as mais-valias relacionadas com criptomoedas são tributáveis por escalões entre 19% e 26%, e em França as transações deste tipo que ultrapassarem os €305 anuais são taxadas a 30%.
No entanto, esta quinta-feira, o jornal ECO apurou que o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais pediu à Autoridade Tributária (AT) uma avaliação de como enquadrar a tributação das criptomoedas à luz do que outros países fazem.
O que diz a lei?
Em 2016, a AT emitiu uma nota informativa em que analisava o enquadramento dos rendimentos de compra e venda de criptomoedas em sede de IRS.
Começa por esclarecer que moedas digitais não são consideradas “moeda” - não dispõem de curso legal ou de poder liberatório, isto é, não são aceites como forma de pagamento de dívidas. Como contraexemplo, El Salvador foi o primeiro país a aceitar a Bitcoin como tendo curso legal (legal tender) e mais tarde a República Centro-Africana. O seu valor está antes na troca, com ganhos, por moeda fiduciária (real), como euros ou dólares.
Podem então ser gerados três tipos de rendimentos tributáveis. Primeiro, aqueles obtidos por compra e venda de moedas virtuais com posterior troca por moeda real. Segundo, a obtenção de comissões por prestação de serviços relacionados com a obtenção ou curso normal da criptomoeda. Terceiro, por ganhos derivados de vendas de produtos ou serviços em criptomoeda. Os dois últimos tipos aplicam-se a plataformas de troca especializadas. O primeiro caso é o que importa a título de investimento pessoal.
A AT avança que, em teoria, este poderia estar enquadrado em três categorias no IRS: acréscimos patrimoniais ou mais valias (categoria G), rendimentos de capitais (categoria E) ou rendimentos empresariais ou profissionais (categoria B). Para ser tributado no âmbito do último caso, é necessário apurar a habitualidade deste tipo de transações e que a atividade se orienta para a obtenção de lucros. No entanto, não serão muitas as situações em que isto se verifica.
No primeiro caso, das mais valias, a AT sublinha que se legislou de forma fechada, listando o tipo de situações tributáveis, e que as criptomoedas não se enquadram em nenhuma delas. Não são partes sociais nem um direito de receber qualquer quantia, como seria, por exemplo, deter uma ação de uma empresa cotada em bolsa; não são um produto financeiro derivado, uma vez que o seu valor não assenta em qualquer ativo; e não se enquadram na definição de valor mobiliário (art.º 1º do Código dos Valores Mobiliários).
No segundo, consideram-se ganhos de capitais os frutos económicos da detenção de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas. Serão, por exemplo, juros, prémios de amortização, etc. Ainda que legislado de forma aberta, o Fisco considerou que também não se enquadram nesta categoria - o rendimento gerado provem da venda do direito e não da sua mera detenção. Posto isto, concluiu que não seriam tributados como rendimento pessoal.
Já em 2019, a AT emitiu uma ficha doutrinária que explicava o tratamento em sede de IVA. Recorreu a um acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) sobre Bitcoin que conclui que as criptomoedas têm um valor liberatório e que, por isso, estão sujeitas a IVA, mas abrangidas pela isenção. Estão assim isentas de IVA transações, troca por moeda fiduciária e mineração, isto é, processo de criação de criptomoeda que é pago com a própria moeda.
Pode entender-se aqui uma leitura ambígua. Levantam-se questões se as criptomoedas constituem ou uma forma de pagamento válido e se o processo de mineração não é em si também uma fonte de rendimento que faria sentido tributar.
Por fim, em sede de IRC, os lucros arrecadados concorrem para o resultado tributável.
Tributar, mas nem tanto?
Apesar de um primeiro sinal do novo governo em funções, não é claro como será a sua atuação, uma vez que fonte oficial do Ministério das Finanças esclareceu que o estudo da tributação está a ser feito “no sentido de propor um enquadramento fiscal adequado a estes novos instrumentos, tendo em conta o necessário equilíbrio entre a repartição justa dos rendimentos e da riqueza e a atração do investimento estrangeiro”.
Em setembro, o Decrypt, um site especializado em criptoativos, publicou uma lista de 11 países reconhecidos internacionalmente como “crypto-friendly”. No entanto, divergem substancialmente entre si no tratamento que fazem.
Primeiro, e talvez o mais comum, podem ser atrativos porque há uma imprecisão legal de como endereçar as criptomoedas, como o caso de Portugal, mas também, por exemplo, de Malta, Eslovénia ou Malásia.
Depois, pode haver um tratamento diferenciado conforme o propósito que cumprem e se considera constituir uma atividade especulativa. Na Alemanha, estão isentas as mais-valias inferiores a €600 anuais ou se as criptomoedas forem vendidas após um ano de detenção. Uma situação semelhante em Hong Kong: a Bitcoin é considerada uma commodity virtual para propósitos fiscais e é tributada ou não dependendo do tempo de detenção.
Por fim, pode haver a intenção clara de atração de investimento. Por exemplo, El Salvador isenta os investidores estrangeiros de impostos sobre ganhos com Bitcoin e as Bermudas que, sendo um regime de baixos impostos, não impõem qualquer tipo de impostos a ativos digitais.
A questão que fica é se o Governo português quer enquadrar os criptoativos em sede de IRS para depois desenhar benefícios para atrair investidores estrangeiros.