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“Uma nova geração levanta-se”: testemunho da revolta de Hong Kong

As três fases do movimento de protesto, a sua composição e as diferentes visões em confronto sobre o futuro de Hong Kong são passadas em revista neste testemunho de Au Loong-Yu, um veterano ativista socialista da ilha.
Protesto de 23 de agosto na Hong Kong Way. Foto Beverly Yuen Thompson/Flickr

A população de Hong Kong está a viver a luta das suas vidas contra o seu próprio governo e o Partido Comunista da China. Carrie Lam, a chefe de governo do enclave, nomeada por Pequim, tentou aprovar à pressa no início do ano uma lei de extradição que permitiria que os cidadãos de Hong Kong fossem levados para a China continental e ali acusados de infringirem leis chinesas que não se aplicam em Hong Kong.

Desde 1997, quando foi entregue formalmente pelos britânicos, o enclave tem sido uma Região Administrativa Especial da China, com as suas próprias liberdades protegidas e um sistema judicial separado. Um estatuto que se vê ameaçado pela lei da extradição. As ondas de protesto tiveram início em junho. Enquanto Lam insistia que a lei morrera na praia, milhões de pessoas continuaram a mobilizar-se. Têm cinco exigências: retirada da proposta de lei, demissão de Carrie Lam, inquérito à brutalidade policial, libertação de todos os manifestantes presos e sufrágio universal.

Publicamos em seguida uma transcrição editada da intervenção feita por um socialista de Hong Kong, Au Loong Yu, através de vídeoconferência, à conferência anual “Socialismo” realizada a 18 de agosto em Perth, na Austrália. Escritor e socialista, o último livro de Au chama-se “A Ascensão da China: Força e Fragilidade”.


O movimento em Hong Kong já passou por três fases: a primeira foi em junho quando milhões de pessoas tomaram as ruas. A assembleia legislativa foi sitiada e houve violência. Houve uma radicalização e os protestos tornaram-se um movimento de massas. Carrie Lam recuou nessa altura, anunciando que a lei da extradição seria suspensa temporariamente. Mas o descontentamento permaneceu. A administração Lam tem zero legitimidade. A atuação do movimento sindical merece uma nota: a 17 de junho, a confederação de sindicatos, uma das duas, e a mais democrática, apelou à greve. Mas não foi bem sucedida.

A segunda fase ficou marcada pelas manifestações e pelo cerco à assembleia legislstiva, com a juventude radical a forçar a entrada no edifício. Isto foi em julho. Foi uma ação extremamente radical — se fizessem o mesmo na Austrália iria causar muitas vítimas. Mas o protesto de julho chegou ao fim sem uma única baixa. Isso aconteceu porque o edifício foi evacuado pela polícia, provavelmente para atrair os radicais e forçar o confronto. Seja como for, esta ação empurrou o movimento para o nível seguinte. Mas o que se seguiu foi horrível: a polícia colaborou com a máfia da região de Yuen Long [junto à fronteira com a China] para levar a cabo ataques indiscriminados numa estação ferroviária, aterrorizando manifestantes e restantes passageiros. Isto levou a um antagonismo generalizado e até os liberais mais moderados se zangaram.

Tudo isto abriu caminho a uma radicalização ainda maior. Houve umas 16 ou 17 manifestações em vários bairros. Assistimos ao alargar do movimento à escala das comunidades locais, coisa nunca antes vista em Hong Kong. Isso aconteceu por causa do ataque da máfia. Centenas de milhares de pessoas participaram. O protesto de 27 de julho teve ainda maior significado. Até aí as manifestações foram legais. Mas a 27 de julho, pela primeira vez, a polícia recusou dar autorização. A população de Hong Kong é bastante moderada — ou tem sido durante muitos anos. Normalmente, teriam aceitado. Mas em vez disso, centenas de milhares de pessoas saíram às ruas em sinal de desafio. Foi a primeira vez desde o início deste movimento em que a desobediência civil atraiu tanta gente. E isso definiu o enquadramento do que viria a suceder em agosto.

Agosto marca a terceira fase, na qual nos encontramos agora. Uma data importante é o 5 de agosto, quando houve uma segunda greve, desta vez bem sucedida. Um setor da economia de Hong Kong determinou o movimento grevista: os trabalhadores do aeroporto e indústria aeronáutica. O Partido Comunista está agora a pedir a lista dos trabalhadores da Cathay Pacific que aderiram à greve. O sindicato recusa-se a fornecer a lista. Mais tarde, organizaram-se marchas triunfais a cada dois ou três dias. Houve mais pessoas a manifestar-se agora do que em julho e a mobilização continua.

A 12 de agosto, realizaram-se ocupações gigantescas do aeroporto. Isso desencadeou uma resposta enfurecida do Partido Comunista. Mandou polícia armada para a fronteira, cerca de 10 mil agentes. Foi apenas uma demonstração de força — já existe um enorme regimento estacionado em Hong Kong, composto por quase oito mil tropas, paredes meias com o edifício governamental. Se Pequim quiser reprimir, vai recorrer ao que está mais à mão.

Juventude radical é o motor do movimento

No que diz respeito à composição do movimento, é de assinalar que os partidos políticos não assumiram um papel na sua direção. Apenas desempenharam um papel logístico, fornecendo ajuda jurídica e dando cobertura a uma frente cívica unida. A frente envolve sindicatos e ONGs bem como os partidos. Foi a anfitriã das manifestações dos últimos dois meses. Sem ela, a juventude radical ficaria muito isolada. Não devemos subestimar o papel da frente cívica, mas dali não saiu uma liderança política. Está sempre à espera da juventude radical para escalar os acontecimentos a um nível superior.

A outra componente é a juventude, em particular a juventude radical. São cerca de cinco ou dez mil jovens, sobretudo estudantes, prontos a lutar contra a polícia. É difícil avançar números corretos, mas há milhares deles preparados para o uso da força. E muitos outros milhares de jovens não estão prontos para irem para a linha da frente, mas estão prontos a ajudar os radicais. Isso torna o movimento dinâmico. Os jovens apoiantes trazem as viseiras, os capacetes, a água e por aí fora. As suas inclinações políticas são variadas e é raro juntarem-se a organizações políticas. São jovens do secundário e da universidade. Acreditam na democracia de forma genuína, mas têm um conhecimento rudimentar da política. Podem ser xenófobos em relação aos chineses continentais, mas essa atitude não se solidificou num programa ou perspetiva. Ao mesmo tempo, muitos desses jovens acham que é importante convencer os chineses continentais das suas cinco exigências. Portanto, temos estas posições contraditórias.

A terceira componente são os regionalistas xenófobos, que parasitam o Movimento dos Guarda-Chuvas de 2014. Esta corrente enfraqueceu desde 2016. Os media ocidentais adoram estas pessoas, mas as suas organizações são pequenas, juntam duas ou três dúzias, ou no melhor dos casos menos de uma centena. Mas a sua política continua a ser perigosa, porque a sociedade de Hong Kong foi sempre de direita, e as pessoas podem aceitar a ideia de que os continentais são o problema e deveriam ser expulsos.

A quarta componente é sindical: a organização sindical não é grande em Hong Kong. Foi bom que a 5 de agosto se tenha realizado uma greve com relativo sucesso, até porque não estava bem organizada. Os sindicatos de Hong Kong não costumam organizar greves políticas, mas fala-se agora de uma nova greve no início de setembro.

Finalmente, o tema da chamada intervenção externa. Se olharmos para o movimento na sua base, verificamos que as acusações de que é controlado ou financiado pelo governo dos EUA não passa de um disparate, Temos dois milhões de pessoas a sair às ruas. Temos gente a insultar a polícia, a chamar-lhes porcos. É um disparate dizer que são controlados por alguma potência estrangeira.

Um enfrentamento entre duas visões de Hong Kong

A situação entrou agora num impasse. É bem evidente que Pequim não quer perder a face e vai continuar na linha dura. O governo Lam perdeu toda a autonomia mas também não irá recuar. Ao mesmo tempo, a população está a ser constantemente antagonizada por mais repressão. Esta pode vir a tornar-se uma situação revolucionária, se centenas de milhares de cidadãos comuns e trabalhadores convergirem com a juventude radical e enfrentarem a polícia ao mesmo tempo. Aí entraríamos numa situação revolucionária. Mas não é fácil. Hong Kong é demasiado pequena para enfrentar Pequim e a maioria sabe disso. Além disso, o movimento não está de todo bem organizado e a consciencialização é muito residual.

Ainda assim, este movimento é significativo por uma série de razões. Primeiro, representa a ascenção de uma nova geração, que cresceu após o governo chinês ter tomado conta de Hong Kong. Ela dá uma nova energia à política de Hong Kong. A nova geração é mais radical. É muito interessante que usem a palavra “revolução”. A minha geração teme a revolução, e é por isso que não tem hipóteses. Mas agora vemos uma geração a acolher a ideia de revolução. E são jovens e atiram pedras à polícia por essa revolução. Isso é muito bom, embora também seja caótico. É ao mesmo tempo uma oportunidade e um desafio.    

A segunda razão é que este movimento representa um enfrentamento entre duas visões de Hong Kong. Uma é a visão de Pequim, a outra é a da gente comum. O governo de Pequim sempre tratou Hong Kong como uma cidade inteiramente económica. Quiseram roubar a Hong Kong a sua identidade política, para que a cidade não pudesse ter nenhum papel na política. Isso é compreensível, dado que Hong Kong é a única cidade na China com liberdade de expressão e liberdade para os partidos políticos. Mas o que é contraditório é que foi precisamente isto que politizou a população inicialmente despolitizada de Hong Kong. A gigantesca politização de Hong Kong não se deve à intervenção estrangeira; foi o Partido Comunista que ajudou a incitá-la.

Em terceiro lugar, há um confronto de duas visões dentro de Hong Kong — a do cidadão comum e a da classe alta e dos magnatas. Contraposta à visão de Pequim, a classe média de Hong Kong aspirava a uma forma liberal de capitalismo para a ilha. Nos últimos 30 anos, os magnatas não se comprometeram com esta visão. Têm sido os proponentes da perspetiva de Pequim de um capitalismo totalitário. Por isso há um conflito.

Finalmente, a crise de Hong Kong simboliza os traços da ascensão da China. No meu livro “A Ascensão da China: Força e Fragilidade”, defendo que a China se debate com contradições: é forte mas carrega também enormes fraquezas. Hong Kong expõe as fraquezas da China. A China é uma sociedade do tipo 1984. É mesmo difícil mudar alguma coisa ali porque a sociedade é tão dura e fechada. Mas Hong Kong é diferente, e essa é uma fraqueza importante.


* Au Loong-Yu é um ativista veterano, escritor e membro de Pioneer, uma organização socialista de Hong Kong. Artigo publicado no site australiano Red Flag. Traduzido por Luís Branco para o esquerda.net. Subtítulos inseridos pela edição em português.

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