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Uma gota de sangue
O esquerda.net tem publicado um testemunho por dia de resistentes antifascistas sobre o seu quotidiano na prisão e/ou na clandestinidade e as estratégias que encontraram para combater o isolamento.
Todos os testemunhos publicados até ao momento estão reunidos aqui:
Confinamento(s) em tempo de ditadura
Projeto organizado por Mariana Carneiro.
Uma gota de sangue
Fui a preso ao princípio da tarde de 14 de Outubro de 1972, numa das ruas do Bairro de Santos, quando me dirigia em grupo para o cemitério da Ajuda, no funeral do estudante José António Ribeiro dos Santos, assassinado a tiro pela polícia política dois dias antes. Ficámos encurralados numa rua fechada, com a PSP a avançar de ambos os lados. Para nos refugiarmos entrámos num prédio. Num patamar da escada, uma senhora idosa, que parecia viver sozinha, abriu-nos a porta. A casa era minúscula – um cubículo com o quarto e a cozinha ao fundo.
Três agentes subiram atrás de nós. No meio do grupo, alguém disse – «Tenho de me esconder. Estou com pena suspensa e se me apanham mandam-me para a guerra.» A senhora não se afligiu. Pegou no rapaz e meteu-o no guarda-fato de pinho do quarto, disfarçando-o com as roupas. A polícia bateu duro e com pressa. A dona da casa perguntou quem batia e só após a resposta abriu. Nós estávamos à mercê, em grupo, expostos no minúsculo vão da entrada. Deram-nos ordem de saída e quando passei o umbral da porta lembrei-me do tipo que estava arrumado entre as roupas, no guarda-fato. A polícia nada percebera. Num grupo de meia dúzia como o nosso, um a menos passava. Iluminou-se-me o rosto. Sorri. Admirável sentimento humano que em tais momentos se cria!
Meteram-nos num velho furgão prisional e fomos despejados no governo civil de Lisboa. Fomos encaminhados para um buraco escuro, sem luz natural ou eléctrica, com um grande estrado de madeira carcomida e lustrosa, que depressa percebi que servia para nos sentarmos e nos deitarmos. A única luz que nos chegava era a do corredor, um livor acinzentado e bolorento que se coava pelas grades de ferro da porta. Ao lado esquerdo da entrada, num canto, estava um ralo, que servia para urinar e cagar, e ao lado um balde de zinco com uma torneira por cima. Além de escura, a sala era infecta. Um odor castigado, velho de muitas décadas, a urina, a vómito e a desinfectante, pairava no ar. Nas horas seguintes foi chegando gente, muita gente – tudo gente laçada na concentração da tarde e no que se seguira. Ao princípio da noite éramos uma pequena multidão, que se acotovelava, quase sem espaço.
Meteram-nos de novo num furgão prisional e fomos para Caxias. Aí reuniram-nos numa grande sala, em círculo. Éramos cerca de 20 ou 30 jovens. No meio estavam dois homens novos, trajados à civil, bem barbeados, cabelo cortado, que falavam alto, estalavam os dedos, barafustavam, davam ordens. Percebia-se que estavam habituados a comandar homens e a ser obedecidos. Outros dois, também trajados à civil, guardavam a porta. Um rapaz macilento, de óculos de massa preta, grenha espessa e comprida, berrou de repente com fúria: «assassinos, assassinos!» Ninguém piou. Ficámos todos em silêncio, debaixo da alta voltagem das lâmpadas eléctricas. Lá fora a noite mais escura do mundo metia pavor. Os dois homens deitaram mão ao rapaz e puxaram-no para o meio do círculo. Cada vez mais raivoso, ele continuava a gritar «assassinos». Com uma rasteira, estatelou-se desamparado com as costas no chão. Pisaram-no, pontapearam-no, insultaram-no. Sem óculos, ele continuou a berrar até que se calou, estendido no chão, com a cara ensanguentada. Ao lado tinha os óculos espezinhados. Ninguém mexia um cabelo. Tudo estava suspenso daquele corpo inanimado. Do outro lado da janela a noite pareceu-me ainda mais pavorosa.
Fui levado através dum corredor metálico para uma cela. Estava escuro mas divisei dum lado um beliche e do outro uma mesa presa na parede com dois bancos. Ao fundo uma porta que dava para uma sanita e um lavatório e uma janela com grades que dava para a escuridão. Abeirei-me da janela. Só via escuridão, camadas e camadas de escuro, que se repercutiam até ao infinito. Nunca me apercebera assim da realidade da escuridão. Nunca vira um negro tão negro. O mesmo para o silêncio – um silêncio aterrador num casarão que me parecia imenso e que não tinha um único barulho. Assim passei a noite. Encostado na cama, não sabia onde estava, não sabia para onde ia, não sabia o que me esperava.
De madrugada um toque seco no metal da porta despertou-me. Pelo postigo, entrou um braço com uma marmita de alumínio. Pão e café. O mesmo ao almoço – pão, prato e sopa. Entretanto a luz do dia permitiu-me explorar melhor a cela – um rectângulo onde se podiam dar 10 passos por três. Tentei perceber o que havia no exterior e para surpresa minha mesmo à luz do dia a impressão de escuro não se desvaneceu. Nada se via a não ser a escuridão. Eu devia estar nas caves do edifício, ou no rés-do-chão, um rés-do-chão sombrio, e por isso abaixo do nível do solo. Só via a terra barrenta e escura, a terra de Outubro, que não se diferenciava das camadas espessas da escuridão da noite.
Só via a terra barrenta e escura, a terra de Outubro, que não se diferenciava das camadas espessas da escuridão da noite.
Depois de almoço, a porta da cela abriu-se e um homem jovem foi empurrado para dentro. Quando me viu, sobressaltou-se – mas eu animei-me com a companhia. Perguntei-lhe se também fora preso no funeral do Ribeiro Santos. Olhou desconfiado para mim e disse-me que nada tinha a ver com política. Estava empregado e os seus tempos livres eram passados no Moulin Rouge e noutros cafés da Avenida João XXI e da Avenida de Roma. Tinha sido preso de madrugada, no Terreiro do Paço, por engano. Sentou-se e disse-me que preferia ficar com a cama de baixo. Evitou depois falar comigo e sempre que o fez foi para me afirmar que nada tinha a ver com política e que tudo o queria era conviver com uns rapazes e umas raparigas que gostavam de discos e de dançar. Regressou assim o silêncio e a escuridão, de dia e de noite, com o meu companheiro de cela sempre fechado em si e estirado na cama, de olhos cerrados.
Nessa tarde alguém me veio buscar. Revisitei o corredor de metal e fui metido numa sala onde me cortaram rente o cabelo e me fizeram a ficha prisional. Passaram-se talvez dois ou três dias. Comecei a perder a noção do tempo. Acordava a meio da noite e não percebia onde estava e o que fazia ali. Dava-me apenas conta do silêncio e da escuridão que me rodeava. Procurava captar um barulho mas nada ouvia. O meu companheiro era a imobilidade em pessoa. Sempre de olhos fechados e quieto na cama. Custava-me a diferenciar o dia da noite. As únicas referências concretas que me situavam eram as horas das refeições em que um braço entrava na cela para depositar e recolher uma marmita. O resto era sempre igual. Nada pode ser tão destabilizador como a monotonia e o fechamento num espaço minúsculo.
Por fim vieram-me buscar. Desta vez encontrei-me na presença dos dois homens que nos haviam recebido na noite de sábado. Estavam sentados à mesa e com um lugar entre eles e que me era destinado. Sentei-me, obedecendo à indicação de um deles. A primeira frase que ouvi foi: – «Ouve lá, então tu acabas de sair do Colégio Militar… e já estás esquecido do que lá te ensinaram?» Mal estas palavras estavam a acabar, um deles puxou de trás um bofetão que me acertou em cheio na boca. Levei a língua aos lábios, engoli saliva espessa, salgada e com sabor a sangue. Era verdade. Eu acabara de sair nesse final de ano lectivo do Colégio Militar. Mal sabiam porém aqueles dois que entre os alunos mais velhos e até entre os oficiais que prestavam serviço no Colégio se lia Juan Clemente Zamora e Che Guevara. Quem disser que o 25 de Abril foi feito por razões corporativas de carreira, mente!
Regressei à cela depois dum demorado interrogatório. Queriam nomes. Quem me passara a notícia da concentração? Com quem fora? Quem eram os meus amigos? Naquela escuridão inventei como pude uma história qualquer, com muitos nomes inventados. No dia seguinte, foi o meu companheiro de cela que foi levado. Passou lá a tarde e só regressou ao princípio da noite. Repetia sempre a mesma história, desta vez aos soluços: «Não tenho nada a ver com política.» E fechou-se de novo no mesmo mutismo, estirado na cama, de olhos fechados, que só abria para comer, ainda assim sentado nos lençóis.
Não demorei a ser libertado. Ao todo passei sete dias em Caxias – mas que me pareceram sem fim. Foi a semana mais longa da minha vida – a mais escura e a mais esquecida. Foram precisos mais de 40 anos para eu voltar a recordar esse momento e dessa vez com toda a nitidez. Até o sabor a sangue me veio à boca. Uma gota de sangue no meio da escuridão e do silêncio! Em 2013 fui à Torre Tombo conhecer o processo político de Agostinho da Silva, sobre quem andava a escrever uma biografia. Quase sem dar por isso dei com a minha ficha. Fiquei estupefacto a olhar para a fotografia que lá estava. Não me reconheci. Não era eu por certo – embora tivesse o mesmo nome. Era um miúdo imberbe, uma criança que acabara há pouco de largar calção e berlinde. Tinha 16 anos acabados de fazer no Verão.
Dedico esta memória do cárcere aos presos anarco-sindicalistas, que morreram no Tarrafal e passaram longos anos nas masmorras da ditadura e cuja memória não tem sido lembrada nem honrada como merece. E ainda aos meus colegas do sexto ano do Liceu Gil Vicente, que então frequentava, especialmente o Rui Martinho, o Jaime Pinho, o Jorge Martins e o Fernando Costa.
António Cândido Franco
11 Maio de 2020
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