A 16.ª cimeira dos BRICS emitiu em 23/10/2024 uma declaração final com 134 pontos que indica claramente que este bloco não constitui uma alternativa favorável aos interesses dos povos.
Não restam dúvidas de que é preciso combater a política das grandes potências imperialistas tradicionais: os EUA e seus parceiros europeus, juntamente com o Japão. Também não há dúvida de que os países imperialistas mais agressivos são de longe os EUA e Israel. Na sua esteira seguem a União Europeia, o Reino Unido, o Japão, a Austrália, o Canadá, etc., que aceitam tudo quanto faz o governo fascista de Israel.
A repugnância pela política das potências imperialistas tradicionais leva uma parte da esquerda a considerar que a política dos BRICS constitui uma alternativa encorajadora
A repugnância pela política das potências imperialistas tradicionais leva uma parte da esquerda a considerar que a política dos BRICS constitui uma alternativa encorajadora, ainda que muitos sejam contra a invasão da Ucrânia pela Rússia, sem no entanto deixarem de ter em conta a quota-parte de responsabilidade da NATO e de Washington.
Importa analisar o conteúdo da declaração final dos BRICS aprovada em Kazan a 23/10/2024, a fim de verificar se esse bloco propõe uma alternativa ao modelo e às políticas impostas pelas potências imperialistas tradicionais (agrupadas no G7: EUA, Alemanha, França, Reino Unido, Canadá, Japão, Itália e União Europeia). De qualquer forma, não seria de esperar que, de um aglomerado de países totalmente dominados pela lógica capitalista (ainda que em diferentes graus), incluindo uma maioria de governos que reprimem os seus povos, emergisse uma alternativa favorável aos povos. O resultado da leitura integral da declaração final é concludente: mesmo ao nível das palavras usadas não encontramos verdadeiras diferenças em relação aos discursos, às declarações das principais potências imperialistas tradicionais e das instituições por elas dominadas. Se, além disso, nos dermos ao trabalho de analisar a política concreta dos BRICS, temos de concluir que para promover uma alternativa favorável à emancipação dos povos, para reforçar a luta contra as diversas formas de opressão e para defrontar a crise ecológica, não podemos contar com a ajuda e a ação dos BRICS.
Vou passar em revista os pontos mais importantes da declaração final da cimeira dos BRICS, feita na Rússia, seguindo a ordem em que se sucedem os pontos, com uma única excepção. Quem quiser ler a declaração na íntegra, encontra-a na página do governo russo, e em outras páginas oficiais.
O FMI e o Banco Mundial não são postos e causa
No ponto 11, os BRICS reafirmam o papel central que cabe ao Fundo Monetário Internacional (FMI):
«11. Reafirmamos o nosso compromisso de manter uma Rede de Segurança Financeira Global forte e eficaz, com um FMI baseado em cotas e com recursos adequados no seu centro.»
Os BRICS alegram-se com os debates em curso no FMI sobre a evolução dos direitos de voto no seu seio:
«Acolhemos o trabalho atual do Conselho Executivo do FMI para desenvolver, até junho de 2025, abordagens possíveis que servirão de guia para um novo realinhamento das cotas […]». «Saudamos a decisão de criar uma 25ª cadeira no Conselho Executivo do FMI para aumentar a voz e a representação da África Subsaariana.»
[N. do T.: Existem consideráveis diferenças entre as versões portuguesa, francesa e inglesa do documento. Neste caso particular, a versão francesa faz referência à «escandalosa sub-representação na direção do FMI» dos países da África Subsaariana: «Il s’agit également de féliciter le FMI pour son intention de permettre aux pays d’Afrique subsaharienne, scandaleusement sous-représentés dans la direction du FMI, d’obtenir en son sein un siège supplémentaire.»]
Os BRICS não emitem nenhuma crítica em relação às políticas neoliberais impostas pelo FMI aos países que recorrem aos seus créditos. Não exigem ao Banco Mundial nenhuma mudança e contentam-se em dizer a seu propósito: «Aguardamos a Revisão da Participação Acionária de 2025 do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) 2025.»
Não encontramos na Declaração nenhuma exigência e nenhum empenho na anulação das dívidas.
Segue-se, no ponto 12, uma declaração puramente abstrata e sem interesse sobre o necessário melhoramento do sistema monetário e financeiro internacional.
Satisfação com as COP, apesar de estas não oferecerem soluções convincentes, e apoio ao mercado do carbono
Os BRICS não denunciam a política irresponsável das antigas potências coloniais e das empresas que vivem das energias fósseis
No ponto 16, respeitante às iniciativas para fazer face à crise ecológica e às mudanças climáticas, a Declaração não faz qualquer alusão à profunda crise ecológica e felicita as iniciativas saídas das últimas cimeiras dos COP sobre o clima:
«Saudamos o Egito por sediar a COP27 em Sharm El-Sheikh em 2022, onde o Fundo de Perdas e Danos foi estabelecido, e os Emirados Árabes Unidos por sediar a COP28 em Dubai em 2023, onde o Fundo foi operacionalizado. Acolhemos o Consenso dos Emirados Árabes Unidos alcançado na COP28, incluindo a decisão intitulada “Resultado do primeiro balanço global” e a Estrutura para a Resiliência Climática Global dos Emirados Árabes Unidos. Expressamos o nosso compromisso com uma COP29 bem-sucedida no Azerbaijão […]. Apoiamos a liderança do Brasil em sediar a COP30 em 2025 e saudamos a candidatura da Índia para sediar a COP 33 em 2028.»
Sendo certo que as COP não produzem resultados convincentes, e as suas resoluções mais recentes foram caricatas, os BRICS estão muito próximos das grandes potências industriais imperialistas tradicionais, recusando-se a reconhecer que as políticas adotadas até agora não deram respostas à altura para as questões em jogo. Apesar dos desacordos e das tensões que caracterizam as suas relações, na prática os dois blocos estão de acordo, como se tem visto nas COP, em não adotar medidas restritivas suficientemente fortes para defrontar a crise ecológica. Cada bloco defende interesses industriais poluentes. É muito evidente que os BRICS não denunciam a política irresponsável das antigas potenciais imperialistas e das grandes empresas que vivem das energias fósseis.
Além disso, no ponto 85 os BRICS declaram o seu apoio ao mercado das licenças de emissão de carbono:
«Reconhecemos o importante papel dos mercados de carbono como um dos impulsionadores da ação climática e incentivamos o aumento da cooperação e o compartilhamento de experiências nesse campo.» (ver mais abaixo)
O mercado de carbono está no centro do capitalismo verde, do greenwashing e da prossecução de políticas predadoras em relação à natureza.
Condenação de Israel sem empregar a expressão «genocídio»
Os BRICS continuam a fornecer a Israel petróleo, gás, carvão, indispensáveis a esse país para prosseguir o seu esforço de guerra. O ponto 30 aborda a situação em israelo-palestina sem usar uma só vez a palavra genocídio para designar a ação criminosa do governo israelita.
«Reiteramos a nossa grave preocupação com a deterioração da situação e com a crise humanitária no Território Palestino Ocupado, e em especial com a escalada sem precedentes da violência na Faixa de Gaza e na Cisjordânia em decorrência da ofensiva militar israelita, que resultou em assassinatos e ferimentos em massa de civis, deslocamento forçado e destruição generalizada da infraestrutura civil. Enfatizamos a necessidade urgente de um cessar-fogo imediato, abrangente e permanente na Faixa de Gaza, a libertação imediata e incondicional de todos os reféns e detidos de ambos os lados que estão sendo mantidos ilegalmente em cativeiro e o fornecimento desimpedido, sustentável e suficiente de ajuda humanitária para a Faixa de Gaza, além da cessação de todas as ações agressivas. Denunciamos os ataques israelitas contra operações humanitárias, instalações, pessoal e pontos de distribuição. […] saudamos os esforços contínuos da República Árabe do Egito, do Estado do Qatar, bem como de esforços regionais e internacionais para alcançar um cessar-fogo imediato, acelerar a entrega de ajuda humanitária e a retirada de Israel da Faixa de Gaza.»
Os BRICS não decretam uma rutura ou uma suspensão das relações comerciais e dos tratados de cooperação com Israel. Pior ainda, como assinalaram Patrick Bond e outros autores, os BRICS continuam a fornecer petróleo, gás, carvão, indispensáveis àquele país para prosseguir o seu esforço de guerra. Isto também é verdade no caso do governo da África do Sul, que embora tenha interposto uma queixa contra Israel no Tribunal Internacional de Justiça, continua a fornecer-lhe carvão.
Para saber mais sobre as relações comerciais entre os BRICS e Israel durante o genocídio, ler: Patrick Bond, Quase todos os regimes dos BRICS+ alimentam Israel economicamente.
É certo que condenam no ponto 31 a «perda de vidas civis e os imensos danos à infraestrutura civil resultantes dos ataques de Israel em áreas residenciais no Líbano e pedimos a cessação imediata dos atos militares», mas mais não dizem.
No ponto 32 condenam, sem apontar a responsabilidade do Governo de Israel, «o ato terrorista premeditado de detonação de dispositivos de comunicação portáteis em Beirute, em 17 de setembro de 2024, que resultou na perda de vidas e no ferimento de dezenas de civis».
Condenação sem menção explícita das acções Houthis que tentam entravar as relações comerciais com Israel
No ponto 33 condenam, sem os nomear, os actos dos Houthis que atacaram os barcos de comércio com Israel. Os BRICS afirmam:
«Ressaltamos a importância de garantir o exercício dos direitos e liberdades de navegação das embarcações de todos os Estados no Mar Vermelho e no Estreito de Bab Al-Mandab, de acordo com o direito internacional.»
Ausência de condenação da invasão da Ucrânia pela Rússia e ausência de crítica explícita à OTAN
No ponto 36 os BRICS não condenam a invasão da Ucrânia pela Rússia. Escrevem eles:
«Relembramos as posições nacionais relativas à situação na Ucrânia e em seus arredores, conforme expressas nos fóruns apropriados, incluindo o [Conselho de Segurança das Nações Unidas] e a [Assembleia Geral das Nações Unidas]. […] Observamos com apreço as propostas relevantes de mediação e bons ofícios, visando a uma resolução pacífica do conflito por meio do diálogo e da diplomacia.»
O facto de não serem feitas críticas à NATO deve-se provavelmente ao facto de a Turquia ter sido convidada a assistir à cimeira.
Apoio às parcerias público-privadas que favorecem as grandes empresas privadas, em detrimento dos bens públicos
A partir do ponto 61 os BRICS voltam a falar das questões financeiras. Pronunciam-se sobre as parcerias público-privadas nestes termos:
«Reconhecemos que o uso de financiamento combinado é uma forma eficaz de mobilizar capital privado para financiar projetos de infraestrutura.» E acrescentam: «elogiamos o trabalho da Força-Tarefa de Infraestrutura e Parceria Público-Privada do BRICS e endossamos o seu Relatório» [sic].
Apoio ao Novo Banco de Desenvolvimento criado pelos BRICS em 2015, falando de créditos em moeda local, enquanto o essencial do financiamento passa sempre pelo dólar dos EUA
O Novo Banco de Desenvolvimento faz empréstimos principalmente em dólares.
No ponto 62 sublinham «o papel fundamental do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) na promoção da infraestrutura e do desenvolvimento sustentável dos seus países membros» (ver quadro sobre o NDB). Prometem uma melhoria da sua gestão: «Apoiamos o desenvolvimento do NDB e a melhoria da governança corporativa e da eficácia operacional para o cumprimento da Estratégia Geral do NDB para 2022-2026». Para compreender a referência à melhoria da governança do NDB, é preciso conhecer a opinião do brasileiro Paulo Nogueira Batista, que entre 2007 e 2015 foi representante do Brasil no banco, durante a presidência de Lula, e que a seguir foi vice-presidente do NDB, de 2015 a 2017. Embora ele seja um apoiante entusiástico dos BRICS, não deixou de criticar a gestão do NDB:
«O Banco conseguiu fazer muitas coisas mas ainda não marcou a diferença. Uma das razões é, francamente, o tipo de pessoas que enviámos para Xangai desde 2015 como presidentes e vice-presidentes da instituição. O Brasil, por exemplo, durante a administração de Bolsonaro, enviou uma pessoa fraca como presidente, de meados de 2020 até inícios de 2023 – tecnicamente fraca, orientada pelo Ocidente, sem capacidade de liderança e sem a menor ideia de como dirigir uma iniciativa geopolítica. Infelizmente a Rússia não constitui exceção à regra: o vice-presidente russo do NDB é marcadamente inapto para o cargo. A fraqueza da gestão levou muitas vezes a más escolhas do pessoal.» [1]
Estas pessoas declaram o seu apoio ao NDB e à expansão contínua dos financiamentos em moeda local, o que é positivo, mas esquecem-se de dizer que a maior parte do financiamento do NDB é feita em dólares, graças à emissão de títulos nos mercados financeiros.
Quadro sobre o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB)
O NDB foi criado oficialmente em 5 de julho de 2014, por ocasião da 6.ª cimeira dos BRICS, realizada em Fortaleza, no Brasil. O NDB concedeu os primeiros créditos a partir de finais de 2016. Os cinco países fundadores têm cada um uma parte igual do capital do Banco e nenhum tem o direito de veto. O NDB, além dos cinco países fundadores, tem como membros o Bangladeche, os Emirados Árabes Unidos e o Egipto. O Uruguai está preste a tornar efetiva a sua participação. O NDB é dotado de um capital de 50 mil milhões de dólares que deviam futuramente aumentar para 100 mil milhões de dólares. A presidência do NDB é rotativa. Cada país tem o direito de exercer a presidência por um período de cinco anos. Dilma Rousseff, brasileira, é a atual presidente; o/a próximo presidente será russo e em 2025 será designado por Vladimir Putin, que acaba de ser reeleito para a Presidência da Federação Russa até 2030. O Novo Banco de Desenvolvimento faz saber que se concentra principalmente no financiamento de projetos de infraestruturas, incluindo sistemas de distribuição de água e sistemas de produção de energias renováveis. Insiste em afirmar o carácter «verde» dos projetos que financia, mas esta afirmação é muito discutível.
Certas passagens respeitantes ao NDB dão a entender que existem consideráveis tensões entre os países membros dos BRICS;
«Instamos o Banco a executar os seus objetivos e funções de acordo com os Artigos do Acordo do Novo Banco de Desenvolvimento de maneira justa e não discriminatória.»
Provavelmente esta tirada deriva do facto de o NDB não ter concedido nenhum crédito à Rússia desde que as potências ocidentais decretaram sanções contra Moscovo, após a invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022. De facto o NDB, que se financia nos mercados financeiros, teve medo de sofrer uma degradação da sua notação de triplo AAA, caso continuasse a conceder créditos à Rússia.
Isto pode ser verificado no site do NDB, onde podemos verificar que desde 2022 o NDB aprovou financiamentos a mais de 50 projetos, nenhum deles na Rússia. Quanto aos créditos à Rússia, se clicarmos aqui vemos que o último projeto financeiramente aprovado pelo NDB para a Rússia remonta a setembro de 2021.
Sublinhemos de novo o julgamento negativo emitido em março de 2024 por Paulo Nogueira, apesar de este ser um caloroso apoiante dos BRICS, a propósito do NDB, onde foi vice-diretor em 2014-2015:
«Por quê podemos dizer que o NDB foi uma deceção até hoje? Vejamos algumas das razões. Os desembolsos foram espantosamente lentos, os projetos são aprovados mas não são transformados em contratos. Quando os contratos são assinados, o começo efetivo dos projetos é lento. Os resultados no terreno são magros. As operações – financiamentos e empréstimos – são realizadas principalmente em dólares americanos, moeda que também serve de unidade contábil do Banco.
Como havemos nós, enquanto BRICS, de falar de forma credível da desdolarização, se a nossa principal iniciativa financeira continua dolarizada? Não me venham dizer que não é possível efetuar operações na moeda nacional dos nossos países. O Banco Interamericano de Desenvolvimento, o BID, por exemplo, há muitos anos tem uma considerável experiência em matéria de operações em moeda brasileira. Não compreendo por que razão o NDB não aproveita essa experiência.» [2]
Os BRICS já não falam do possível lançamento de uma moeda comum
Na realidade, os resultados dos instrumentos financeiros dos BRICS são insignificantes e não foi anunciado qualquer progresso sério na declaração final.
Recordemos que Lula, presidente do Brasil, aquando da cimeira precedente na África do Sul em agosto de 2023, tinha declarado que os BRICS tinham
«aprovado a criação de um grupo de trabalho para estudar a adoção de uma moeda de referência dos Brics. Isso aumentará nossas opções de pagamento e reduzirá nossas vulnerabilidades». [3]
Pouco antes, Paulo Nogueira Batista, já citado, tinha declarado num encontro na Rússia:
«É uma sorte que a Rússia presida os BRICS em 2024 e o Brasil em 2025 – precisamente os dois países que parecem mais interessados na criação de uma moeda comum ou de referência. Se tudo correr bem, os BRICS poderiam decidir a criação de uma moeda na cimeira a realizar na Rússia no próximo ano.» [4]
Nada disso aconteceu. Na declaração final da 16.ª cimeira dos BRICS, publicada em 23/10/2024, não encontramos nenhuma referência à criação de uma moeda comum. Estamos perante um importante passo atrás. Ora muitos partidários dos BRICS tinham anunciado em 2023, depois do encontro dos BRICS na África do Sul, que estaríamos em vésperas da criação dessa moeda. A montanha pariu um rato e o breve ponto 67 disso nos dá a medida:
«67. Encarregamos os nossos Ministros das Finanças e Governadores de Bancos Centrais, conforme apropriado, de continuar a considerar a questão das moedas locais, instrumentos e plataformas de pagamento e nos apresentar os resultados até a próxima Presidência.»
Nem uma palavra sobre a moeda comum.
O Fundo Monetário dos BRICS está em ponto morto
Outro ponto claramente negativo diz respeito ao fundo de reserva de divisas que os BRICS tinham decidido criar em 2015, há quase 10 anos. O acrónimo desse fundo é CRA (Contingent Reserve Arrangement). Permitiria aos países membros dos BRICS, quando confrontados com o problema da falta de divisas necessárias para os seus pagamentos internacionais, recorrer a esse fundo (por empréstimo) para adquirir as divisas de que careciam. Este instrumento é importante sobretudo para a África do Sul, o país mais fraco dos BRICS, que nos últimos anos tem padecido de falta de divisas. Mas outros países que aderiram aos BRICS ou são candidatos a integrar o grupo veem-se igualmente a braços com este problema. Exemplo disso são a Etiópia, o Egito, o Irão. Ora, desde que o Fundo foi criado no papel em 2015, nada aconteceu. Nenhum crédito foi concedido.
Esse Fundo deveria preencher a função desempenhada pelo FMI quando um membro se defrontasse com falta de reservas de câmbio para efetuar pagamentos. Isso permitiria aos países membros dos BRICS escapar aos condicionalismos impostos pelo FMI.
Ora esse Fundo, ainda que criado no papel, nunca entrou em atividade e a cimeira dos BRICS que acabou de encerrar pariu uma declaração abaixo de tímida:
«68. Reconhecemos que o Acordo de Reserva Contingente (CRA) do BRICS é um mecanismo importante para evitar pressões de curto prazo na balança de pagamentos e fortalecer ainda mais a estabilidade financeira. Expressamos o nosso forte apoio ao aprimoramento do mecanismo de CRA por meio da previsão de moedas alternativas elegíveis e saudamos a finalização das emendas aos documentos do CRA. Reconhecemos a conclusão bem-sucedida do 7th CRA Test Run e a quinta edição do Boletim Económico do BRICS sob o título “BRICS Economies in a Higher-rate Environment” [As economias dos BRICS num ambiente de taxas de juro mais altas].»
Congratular-se com a edição de um boletim de análise e a realização de um 7.º teste é o mesmo que reconhecer que ao cabo de 9 anos o Fundo de Reserva (CRA) não existe senão como projeto e não efetuou qualquer operação.
Em outubro de 2023 Paulo Nogueira declarou a propósito do CRA:
«Os dois mecanismos de financiamento existentes dos BRICS foram criados em meados de 2015, há mais de oito anos. Permitam-me garantir-vos que quando lançámos a ideia do CRA e do Novo Banco de Desenvolvimento, se levantaram grandes inquietações em Washington, no FMI e no Banco Mundial quanto ao que os BRICS iriam fazer nesse domínio. Disso mesmo sou testemunha, porque nessa época fui administrador, pelo Brasil e outros países, no conselho de administração do FMI.
Com o correr do tempo, contudo, o pessoal de Washington acalmou-se, talvez por sentirem que nós não íamos a parte alguma com o CRA (=Fundo monetário comum dos BRICS) e o Novo Banco de Desenvolvimento.» (extraído da mesma fonte das citações anteriores)
Segundo os BRICS, o livre-comércio é o leitmotiv da atividade agrícola. Nem uma palavra sobre soberania alimentar, sobre agricultura biológica
«73. Concordamos que a resiliência das cadeias de suprimentos e o comércio desimpedido na agricultura, juntamente com a produção doméstica, são cruciais para garantir a segurança alimentar e os meios de subsistência, especialmente para os agricultores de baixo rendimento ou desprovidos de recursos, bem como para os países em desenvolvimento importadores líquidos de alimentos.»
A experiência mostra que o livre-comércio [ou livre-cambismo] é uma arma das grandes potências e das grandes empresas privadas do agro-negócio contra os camponeses.
Os BRICS promovem as zonas económicas especiais, paraísos das empresas capitalistas e frequentemente espaços sem direitos para os/as trabalhadores
«74. Reconhecemos a eficácia das Zonas Económicas Especiais (ZEEs) dos países do BRICS como um mecanismo bem estabelecido para a cooperação comercial e industrial e para a facilitação da produção (…) Acolhemos com satisfação o estabelecimento de um fórum para cooperação em ZEEs dos países do BRICS. (…)»
Rejeição das medidas protecionistas para proteger o meio ambiente
«83. Rejeitamos medidas protecionistas unilaterais, punitivas e discriminatórias, que não estejam de acordo com o direito internacional, sob o pretexto de preocupações ambientais, como mecanismos unilaterais e discriminatórios de ajuste de carbono nas fronteiras (CBAMs), exigências de devida diligência, impostos e outras medidas, e reconfirmamos o nosso total apoio ao apelo da COP28 relacionado a evitar medidas comerciais unilaterais baseadas no clima ou no meio ambiente. Também nos opomos a medidas protecionistas unilaterais, que deliberadamente interrompem as cadeias globais de fornecimento e produção e distorcem a concorrência.»
É facto que as grandes potências tradicionais que estão a perder terreno, como a UE e os EUA, recorrem ao pretexto das motivações ambientais para esconder a sua vontade de proteger os interesses dos grandes acionistas das empresas que estão a perder terreno, mas isso não significa que devemos estar contra todas as medidas protecionistas que defendam realmente o meio ambiente e permitam a promoção dos direitos dos trabalhadores, tanto no Sul como no Norte do Planeta.
Os BRICS debitam um discurso sobre as mulheres inteiramente compatível com o discurso das potências imperialistas tradicionais, do Banco Mundial, da imprensa dominante e do mundo dos negócios
«130. Reconhecemos o papel fundamental das mulheres no desenvolvimento político, social e económico. Destacamos a importância do empoderamento das mulheres e a sua plena participação com base na igualdade em todas as esferas da sociedade, incluindo a sua participação ativa nos processos de tomada de decisão, inclusive em cargos de chefia, o que é fundamental para a conquista da igualdade, do desenvolvimento e da paz. Reconhecemos que o empreendedorismo inclusivo e o acesso ao financiamento para as mulheres facilitariam a sua participação em empreendimentos comerciais, inovação e economia digital. Nesse sentido, saudamos os resultados da Reunião de Ministras da Mulher e do Fórum da Mulher do BRICS, realizados em setembro, em São Petersburgo, sob o tema “Mulheres; Governança e Liderança”, e reconhecemos a valiosa contribuição dessas reuniões anuais para o desenvolvimento e a consolidação do empoderamento da mulher em todos os três pilares da cooperação do BRICS.
131. Apreciamos os esforços da BRICS Women’s Business Alliance para promover o empreendedorismo feminino, incluindo o lançamento da Plataforma Digital Comum da BRICS Women’s Business Alliance, a realização do primeiro Fórum de Empreendedorismo Feminino do BRICS em Moscou, nos dias 3 e 4 de junho de 2024, e o primeiro Concurso de Startups Femininas do BRICS. Apoiamos o fortalecimento da cooperação entre a BRICS Women’s Business Alliance e as mulheres empreendedoras do Sul Global, incluindo o estabelecimento de Escritórios Regionais, conforme apropriado.»
Para os povos, os BRICS não são uma alternativa às potências imperialistas tradicionais. As posições dos BRICS inscrevem-se perfeitamente no sistema capitalista neoliberal global, nada ou quase nada fazem para se destacarem desse sistema e subscrevem as falsas soluções do capitalismo verde. Apesar de terem denunciado os crimes cometidos por Israel contra os povos palestiniano e libanês, não se dignam romper os seus laços comerciais com a potência sionista.
Traduzido por Rui Viana Pereira. Publicado originalmente no CADTM.
Notas:
[1] Paulo Nogueira Batista, «BRICS Financial and Monetary Initiatives – the New Development Bank, the Contingent Reserve Arrangement, and a Possible New Currency», 3/10/2023, consultado em 25/10/2024.
[2] Paulo Nogueira Batista, «BRICS Financial and Monetary Initiatives – the New Development Bank, the Contingent Reserve Arrangement, and a Possible New Currency», 3/10/2023, consultado em 25/10/2024.
[3] Folha de Paulo, «Moeda do Brics: tema ganha tratamento tímido em cúpula», 25/08/2023. CNN, «Brics criam grupo de trabalho para avaliar moeda comum».
[4] Paulo Nogueira Batista, «BRICS Financial and Monetary Initiatives – the New Development Bank, the Contingent Reserve Arrangement, and a Possible New Currency», 3/10/2023, consultado em 25/10/2024.