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Um resgate do ativismo revolucionário

O terceiro volume da coleção "Portugal, uma retrospectiva: 1974", da autoria de Luís Trindade e Ricardo Noronha, traz um relato denso, mas incrivelmente bem escrito, sobre alguns dos principais acontecimentos que marcaram o Portugal da revolução e do PREC.
Capa do livro
Capa do livro Portugal, uma retrospectiva: 1974 vol 3)

Saiu ontem com o Público e as Edições tinta-da-china este livro dos historiadores Ricardo Noronha e Luís Trindade sobre o Portugal de 1974/75. Li-o de uma enxurrada, tal é a qualidade e a pertinência do que escreveram. Em cerca de cem páginas os autores oferecem-nos um relato denso, mas incrivelmente bem escrito, sobre alguns dos principais acontecimentos que marcaram o Portugal da revolução e do PREC. Acontecimentos, esses, que aqui não são narrados da mesma forma que aparecem descritos nos nossos livros de história ou nos “especiais” de aniversário da revolução. Os protagonistas políticos e militares também aparecem, claro, mas este livro prefere assentar numa outra abordagem, resgatando a memória dos processos de mobilização coletiva nos quais tantas pessoas anónimas foram pela primeira vez protagonistas do processo histórico. Essa memória é de muito difícil tratamento porque ela implica, como muito bem assinalam logo na instrução, confrontar “embaraço que o nosso presente sente em imaginar outras modalidades do político”. 

A memória da revolução institucionalizou-se enquanto processo de construção e conquista da “democracia representativa” e da liberdade. Nas palavras de Rui Ramos, o processo revolucionário emerge “como reencarnação do debate secular entre moderados e radicais”. Um acontecimento que Marcelo Rebelo de Sousa da época caracterizava como “uma sucessão inopinada de tentativas golpistas” e que Vasco Pulido Valente garante “que nunca existiu”. 

Esta memória seletiva, construída imediatamente a seguir à derrota do PREC, ocultou a forma como a igualdade foi o motor de um ativismo revolucionário que realmente distinguiu a revolução portuguesa. Um ativismo que aqui é resgatado e que, na verdade, não foi um exclusivo do período entre o 11 de Março e o 25 de Novembro. Essas mobilizações têm antecedentes nas lutas que se desenvolveram nos anos anteriores ao golpe – como referem, a multidão que sai à rua no 25 de Abril desobedecendo aos apelos dos militares “não aparece do nada” – e que se radicalizam imediatamente a seguir a ele, desafiando todos os poderes e autoridades, inclusive a dos partidos empenhados, com muito pouco sucesso, em dirigir e controlar os movimentos que se multiplicavam como cogumelos. 

Porque é que o MFA era uma realidade compósita, palco de tensões e interesses contraditórios? Porque é que o percurso do golpe esteve tão em aberto e foi tão arriscado? Porque é que, logo depois do 25 de Abril, houve manifestações contra as greves? E porque é que houve greves contra a lei das greve? Porque é que as novas autoridades entraram tantas vezes em contradição com os processos de mobilização popular? Como foi o dia 25 de Abril do escritor Luíz Pacheco, do pintor da construção civil Rogério Dias de Sousa, do estudante Fernando Martins, do militar Alpoim Calvão ou do militante de extrema-direita Jaime Nogueira Pinto? Porque é que o PCP foi tão hostil com os movimentos que se seguiram ao golpe em 74 e radicalizou mais tarde a sua posição em 75? 

Estas são algumas das perguntas a que o livro vai respondendo, ao mesmo tempo que nos oferece uma interpretação da revolução como movimento que torna “presente o que antes só se imaginava no futuro”. Uma “intensificação da experiência histórica” protagonizada por um movimento que escapa à política da cerimónia e do governo enquanto gestão do que existe. 

“Quarenta e cinco anos após o 25 de Abril, o que podemos aprender ainda com esta acontecimento tão difícil de pensar?”, questionam os autores a acabar o livro. Entre muitas outras coisas, o PREC mostra como num momento histórico muitos portugueses não se deixaram representar politicamente, logo, não puderem mais ser vistos como um povo “passivo e obediente”. O PREC fez com que deixasse de ser possível garantir, sem contraditório, “essa menoridade cívica como característica genética” do povo português. Neste sentido, ele “desmentiu a narrativa política dominante no Portugal contemporâneo”, entrando em contradição como a própria cultura política do salazarismo. 

A revolução foi derrotada e a política pôde finalmente sair da rua e voltar às instituições. Uma nova classe estava pronta para fazer da política e sua especialidade profissional. Business as usual. Mas se o PREC foi um susto valente, lá isso foi. Leiam pois, que vale bem a pena.


Portugal, uma retrospectiva: 1974 (vol.3)

Ricardo Noronha e Luís Trindade

Público e Edições Tinta da China

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo e investigador
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