Os Estados Unidos assistiram no ano passado ao ressurgimento da contestação estudantil contra a política externa do país, nomeadamente na política da administração Biden em apoio ao governo de Israel no massacre da Faixa de Gaza. Greves, acampamentos e inúmeros protestos atravessaram os campi universitários de costa a costa, num movimento que muitos compararam ao da oposição estudantil à guerra do Vietname.
Nos últimos meses, a força do protesto foi diminuindo, mas regressa agora por causa da prisão de um dos porta-vozes das manifestações na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, considerada o epicentro do movimento. O ativista estudantil Mahmoud Khalil foi preso pela polícia de imigração no sábado, com a porta-voz do departamento de Segurança Interna, Tricia McLaughlin, a acusá-lo de forma vaga de “levar a cabo atividades ligadas ao Hamas, uma organização designada como terrorista”. A primeira tentativa de expulsão foi travada por um juiz novaiorquino na segunda-feira, com a defesa a alegar o direito à liberdade de expressão e a ausência de acusação por qualquer crime.
O Presidente Donald Trump afirmou então na sua rede social que esta “é a primeira prisão e haverá muitas outras”, acrescentando que “nós sabemos que ha outros estudantes em Columbia e noutras universidades que participaram em atividades pró-terroristas, antissemitas, anti-americanas e o governo Trump não tolerará isso (…) Iremos encontrar, prender e expulsar esses simpatizantes terroristas”.
Uma das poucas vozes entre os Democratas a surgir abertamente em defesa do estudante foi a do senador Chris Murphy: “Hoje está um rapaz na cadeia por protestar na sua escola. Sem acusação, Sem comportamento criminal. Nas ditaduras chamam a isto ‘um desaparecimento’”, escreveu o político do Connecticut numa mensagem nas redes sociais.
“A ideia de que possamos ser presos pelas nossas opiniões é aterradora”
Este novo patamar de repressão levou mais de um milhar de pessoas a manifestar-se ainda na segunda-feira em Nova Iorque pela libertação de Mahmoud Khalil, o estudante de 30 anos nascido e criado na Síria, filho de refugiados palestinianos que veio para os EUA em 2022 com um visto estudantil para a Universidade de Columbia, casando-se no ano seguinte com uma cidadã estadunidense, hoje grávida de oito meses. Mahmoud completou o seu mestrado em dezembro e tem a cerimónia de entrega do diploma agendada para maio. Tem o estatuto de residente permanente nos EUA com um “cartão verde” emitido pelas autoridades de imigração, as mesmas que o prenderam agora.
“A ideia de que possamos ser presos pelas nossas opiniões é aterradora. E veremos mais detenções deste tipo se não fizermos nada para parar esta agora”, afirmou um dos manifestantes à Agência France Presse. Outro acrescentou: “Quando cresces nos EUA, dizem-te a toda a hora que tens direitos, a liberdade de expressão, usa os teus direitos. E quando o fazemos, de repente, vemos um rapaz ter a sua casa alvo de buscas durante a noite e ser levado, não sabemos para onde”.
Parlamento
Bloco recomenda adoção de definição de antissemitismo da Declaração de Jerusalém
Segundo a Associated Press, durante a detenção um dos agentes da polícia de Imigração e Alfândega disse à advogada de Mahmoud, Amy Greer, que estava a agir por ordem do Departamento de Estado para revogar o seu visto estudantil. Informado pela advogada de que o estudante tem o estatuto de residência permanente através de um “cartão verde”, o agente terá dito que então seria esse a ser revogado. Mahmoud foi levado do seu apartamento em Nova Iorque para um centro de detenção de imigrantes no Louisiana, a 1.300 quilómetros de distância. Os seus advogados denunciaram esta quarta-feira em audiência judicial realizada em Nova Iorque que ainda não tinham conseguido falar com ele em privado, mas apenas por telefone sob vigilância, com o juiz a determinar que o possam fazer nos próximos dois dias através de uma chamada telefónica não vigiada com duração de duas horas. Embora a audiência tratasse apenas de questões procedimentais, isso não impediu os apoiantes de Khalil de encherem a sala da sessão e uma sala adjacente, numa multidão que incluiu a atriz Susan Sarandon.
Na próxima segunda-feira o juiz deve decidir se o caso será tratado pela jurisdição da Nova Jérsia, para onde foi levado após a detenção no sábado, pela de Nova Iorque, como defendem os seus advogados, ou pela do Louisiana, como pretende a acusação.
Esta quinta-feira dois alojamentos estudantis da Universidade de Columbia foram revistados por agentes do Departamento de Segurança Interna, em mais uma ação que visa a intimidação dos estudantes pró-Palestina. O Governo anunciou ainda o corte de 400 milhões em financiamento à universidade por alegadamente não ter protegido os seus estudantes dos protestos do ano passado.
Detenção de Mahmoud Khalil feita ao abrigo de lei proposta por senador antissemita
Neste momento, Mahmoud Khalil não é acusado de qualquer crime. Segundo afirmou ao Washington Post Brad Parker, advogado do Centro para os Direitos Constitucionais, “esta é claramente uma tentativa de deportar Mahmoud, explorando uma norma vaga e excessivamente ampla da lei de imigração dos EUA”, Uma norma que, “se não for restringida, será explorada para tentar a deportação de qualquer pessoa que discorde da agenda de política externa da administração. Não se trata de segurança, trata-se de poder executivo absoluto e repressão”, diz o causídico.
O advogado de Mahmoud Khalil disse em entrevista ao Democracy Now que o artigo invocado para tentar deportar o seu cliente foi introduzido na lei para impedir a entrada nos EUA de judeus do leste europeu sobreviventes do Holocausto, a coberto da suspeita de serem agentes soviéticos.
Mahmoud Khalil’s lawyer Ramzi Kassem breaks down the shaky legal grounds the Trump administration is using to prosecute the Palestinian activist, including a rarely used legal provision “enacted primarily to target Eastern European Jewish Holocaust survivors."
[image or embed]— Democracy Now! (@democracynow.org) March 13, 2025 at 1:43 PM
A lei em causa é a Lei de Imigração e Nacionalidade promulgada em 1952 e que restringia a imigração com base na raça e em quotas, incluindo ainda artigos específicos para recusar vistos de entrada a pessoas que fossem ou tivessem sido no passado filiadas em partidos comunistas, ou que escrevessem e fizessem circular “as doutrinas governamentais, económicas ou internacionais do comunismo mundial”. A lei foi contestada sobretudo pelo sistema de quotas que implementava e uma das preocupações do seu primeiro subscritor, o Senador Patrick McCarran, sobre o efeito dos “indesejáveis” para a sociedade estadunidense passava também por supostos “interesses judeus” que procuravam inviabilizar a sua aprovação. Apesar de eleito pelos Democratas, McCarran destacava-se pelo anticomunismo e era um admirador do ditador espanhol Francisco Franco. Mas também pelo antissemitismo que o levou a opor-se às autorizações de entrada de judeus sobreviventes do Holocausto. Em 2021, as autoridades de Clark County, no Nevada, estado natal do senador, decidiram tirar o seu nome do aeroporto de Las Vegas ao fim de vários anos de campanhas nesse sentido por causa das posições racistas e antissemitas que defendeu. Pela mesma razão chegou a ser proposta em 2017 a retirada da sua estátua do Capitólio, onde cada estado tem direito a expor estátuas de duas personalidades.
Judeus pela Paz invadem átrio da Trump Tower em protesto contra deportações
Mais de 70 anos depois, esta lei do senador antissemita está a ser usada pela administração Trump para expulsar do país um estudante sob a acusação de antissemitismo. E a detenção dividiu a comunidade judaica. De um lado, a Liga Anti-Difamação aplaudiu as “rápidas e graves consequências para aquelas que dão apoio material a organizações terroristas estrangeiras”; do outro, várias organizações alertam que esta deportação pode ser um precedente e não se ficar por aqui.
Esta quinta-feira, por iniciativa da organização Jewish Voice for Peace, centenas de pessoas conseguiram passar as barreiras de segurança para invadir o átrio do edifício Trump Tower, em Nova Iorque. O objetivo foi deixar claro a Donald Trump que ele “não pode deportar um movimento inteiro”. O movimento lembrou ainda que o chefe da diplomacia Marco Rubio, que assinou a ordem de deportação de Mahmoud Khali, anunciou esta semana um pacote de quatro mil milhões de dólares de ajuda a Israel, incluindo mais de 35 mil bombas de 900 quilos.
“Os judeus, independentemente da sua posição em termos de ativismo político e de organização, sentem na pele como isto é profundamente perigoso”, disse esta semana ao New York Times a diretora de comunicações estratégicas dos Judeus pela Justiça Racial e Económica, Sophie Ellman-Golan.
“Qualquer judeu que ache que isto começa e acaba com alguns ativistas palestinianos está a iludir-se a si mesmo”, afirmou Amy Spitalnick, do Conselho Judaico para Assuntos Públicos, acrescentando que “a nossa comunidade não deve ser usada como desculpa para pôr em causa a democracia e o Estado de direito”.
Em conferência de imprensa, vários professores judeus juntaram-se na segunda-feira junto à Universidade de Columbia para acusarem a administração Trump de estar a instrumentalizar o antissemitismo para conseguir os seus objetivos de limitar a liberdade de expressão e fomentar a sua política de deportações. “O que está a acontecer neste campus - ou a este campus - não tem a ver com a proteção dos judeus”, disse Marianne Hirsch, professora de inglês reformada e investigadora do Holocausto, cujos pais foram sobreviventes do Holocausto. “O discurso e o ativismo pró-palestiniano não significam falta de segurança para os judeus”, acrescentou.