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Todos vigiados, por Ignacio Ramonet

Em termos de potência financeira, face aos mastodontes das telecomunicações, a imprensa escrita (mesmo com os seus sites web), pesa pouco. Cada vez menos. Mas continua a ser um indispensável fator de alerta e de denúncia. Em particular dos abusos que os novos gigantes das telecomunicações cometem quando espiam as nossas comunicações. Por Ignacio Ramonet
Foto de Electronic_Frontier_Foundation/flickr
Foto de Electronic_Frontier_Foundation/flickr

No filme Her1, que acaba de ganhar o Óscar para o melhor guião original e cuja ação decorre num futuro próximo, o personagem principal, Theodore Twombly (Joaquin Phoenix), adquire um sistema operativo informático que funciona como um assistente global, satisfazendo intuitivamente qualquer necessidade ou pedido do utente. Theodore escolhe-o com voz de mulher e mediante o seu telefone inteligente passa horas a conversar com ela até acabar perdidamente apaixonado.

A metáfora de Her é evidente. Sublinha a nossa crescente dependência em relação ao mundo digital, e a nossa imersão cada vez mais profunda num universo desmaterializado. Mas se citamos aqui este filme não é só pela sua moral mas porque as suas personagens vivem, como acontecerá connosco amanhã, numa atmosfera comunicacional ainda mais hiperconetada. Com alta densidade de phablets2, smartphones, tablets, videojogos de última geração, telas domésticas gigantes e computadores dialogantes ativados por voz...

O pedido de dados e de vídeos atinge efetivamente níveis astronómicos. Porque os utentes estão cada vez mais ligados às redes sociais. O Facebook, por exemplo, já tem mais de 1.300 milhões de utentes ativos no mundo; o Youtube, cerca de 1.000 milhões; o Twitter, 750 milhões; o WhatsApp, 450 milhões...3 Em todo o planeta, os utentes já não se conformam com um só modo de comunicação mas reclamam o “quádruplo play” ou seja o acesso a Internet, televisão digital, telefone fixo e móvel. E para satisfazer essa insaciável procura, são necessárias ligações (de banda ultralarga de muito alta velocidade) capazes de garantir os enormes volumes de informação, expressos em centenas de megabits por segundo. Mas aí surge o problema. Do ponto de vista técnico, as redes ADSL4 atuais - que nos permitem receber Internet de banda larga nos nossos smartphones, habitações ou escritórios - já estão quase saturadas...

Do ponto de vista técnico, as redes ADSL - que nos permitem receber Internet de banda larga nos nossos smartphones, habitações ou escritórios - já estão quase saturadas...

Que fazer? A única solução é passar pelas rotas de cabo, seja coaxial ou de fibra ótica. Esta tecnologia garante uma ótima qualidade na transmissão de dados e de vídeos de banda ultralarga, e quase não tem limites de volume. Esteve em voga nos anos 1980. Mas foi preterida porque requer obras de envergadura de alto custo (há que cavar e enterrar os cabos, e levá-los até junto dos edifícios). Só uns quantos operadores de cabo continuaram a apostar nela pela sua fiabilidade, e construíram com paciência uma densa rede de cabo. A maioria dos demais preferiram a técnica ADSL mais barata (basta instalar uma rede de antenas) mas, como dissemos, já está quase saturada. Por isso, neste momento, o movimento geral das grandes empresas de telecomunicações (e também dos especuladores dos fundos de capital de risco) consiste em procurar a todo o custo a fusão com as operadoras de cabo cujas “velhas” redes de fibra representam, paradoxalmente, o futuro das autoestradas da comunicação.

Este contexto tecnológico e comercial explica a recente aquisição, em Espanha, da ONO, a maior operadora local de cabo, pela empresa britânica Vodafone5 por 7.200 milhões de euros. A quarta operadora espanhola, ONO, dispõe de 1,1 milhões de linhas móveis e 1,5 milhões de linhas fixas, mas, sobretudo, o que lhe dá valor é a sua extensa rede de cabo que atinge os 7,2 milhões de casas. 60% do capital da ONO já estava nas mãos de fundos internacionais de capital risco sabedores, pelas razões que acabámos de explicar, de que as empresas gigantes de telecomunicações desejam adquirir, a qualquer preço, as operadoras de cabo.

Por todo o lado, os fundos abutre estão a comprar as operadoras de cabo independentes com o propósito de realizar importantes mais-valias ao revendê-las a algum comprador industrial. Por exemplo, em Espanha, as três operadoras de cabo regionais - Euskaltel, Telecable e R - foram alvo de aquisições especulativas. Em 2011, o fundo de capital de risco norte-americano The Carlyle Group comprou 85% do operador de cabo asturiano Telecable.

Em 2012, o fundo italiano Investindustrial e o norte-americano Trilantic Capital Partners ficaram com 48% do operador basco Euskatel. E no mês passado, o fundo britânico CVC Capital Partners6 adquiriu os 30% que lhe faltava da operadora galega R7, que agora controla na totalidade.

Às vezes as fusões fazem-se em sentido inverso: é a operadora de cabo que adquire uma companhia de telecomunicações. Acaba de acontecer isso em França, onde a principal empresa de cabo, Numericable (5 milhões de empresas ou casas ligadas), está a tratar de comprar, por quase 12.000 milhões de euros, à terceira operadora francesa de telefone, SFR, proprietária de uma rede de fibra ótica de 57.000 km...

Outras vezes são duas operadoras de cabo que decidem unir-se. Está a acontecer nos Estados Unidos, onde as duas principais operadoras de cabo, Comcast e Time Warner Cable (TWC), decidiram juntar-se8. Juntos, estes dois titãs têm mais de 30 milhões de utentes registados que procuram serviços de Internet de banda larga e de telefone móvel e fixo. Ambas as empresas, associadas, controlam além disso um terço da televisão paga. A sua megafusão terá a forma de uma compra da TWC pela Comcast pelo colossal preço de 45.000 milhões de dólares (36.000 milhões de euros). E o resultado será um mastodonte mediático com um montante de negócios estimado em cerca de 87.000 milhões de dólares (67.000 milhões de euros).

Graças às revelações de Edward Snowden e de Gleen Greenwald, difundidas pelo diário britânico The Guardian, soubemos que a maioria dos colossos da Internet foram - e continuam a ser - cúmplices da National Security Agency (NSA) para a aplicação do seu programa ilegal de espionagem massiva de comunicações e uso de redes sociais.

Soma astronómica, como a dos demais gigantes da Internet, em particular se a comparamos com a de alguns grupos mediáticos de imprensa escrita. Por exemplo, o montante de negócios do grupo Prisa, o primeiro grupo de comunicação espanhol, editor do diário El País e com forte presença na América Latina, é de menos de 3.000 milhões de euros9. A do New York Times é inferior a 2.000 milhões de euros. A do grupo Le Monde não passa de 380 milhões de euros, e a do The Guardian nem sequer atinge os 250 milhões de euros.

Em termos de potência financeira, face aos mastodontes das telecomunicações, a imprensa escrita (mesmo com os seus sites web), pesa pouco. Cada vez menos10. Mas continua a ser um indispensável fator de alerta e de denúncia. Em particular dos abusos que os novos gigantes das telecomunicações cometem quando espiam as nossas comunicações. Graças às revelações de Edward Snowden e de Gleen Greenwald, difundidas pelo diário britânico The Guardian, soubemos que a maioria dos colossos da Internet foram - e continuam a ser - cúmplices da National Security Agency (NSA) para a aplicação do seu programa ilegal de espionagem massiva de comunicações e uso de redes sociais.

Não somos inocentes. Qual escravos voluntários, e ainda sabendo que nos observam, continuamos a dopar-nos com droga digital. Sem nos importarmos que quanto mais cresce a nossa dependência mais entregamos a vigilância das nossas vidas aos novos amos das comunicações. Vamos continuar assim? Podemos consentir que estejamos todos sob controle?


Por Ignacio Ramonet, editorial do Le Monde Diplomatique em espanhol abril de 2014. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net

1 Diretor: Spike Jonze, 2013. Título em português: “Uma história de amor”

2 Phablets, segundo wikipedia, é um “termo informal criado para designar dispositivos de telas sensíveis ao toque com mais de 5 e menos de 7 polegadas, que reúnem os recursos de um smartphone aos de um tablet — com a integração opcional de uma caneta stylus”.

3 É interessante notar, neste contexto, a recente compra, pela Facebook, da WhatsApp, "o serviço de mensagens mais popular do mundo" (450 milhões de utentes), pela monumental soma de 19.000 milhões de dólares.

4 ADSL: sigla do inglês Asymmetric Digital Subscriber Line (Linha digital assimétrica de subscritores). É uma tecnologia de acesso à Internet de banda larga.

5 Em 2011, a Vodafone comprou a operadora de cabo britânica Cable&Wireless, e em 2012 adquiriu a principal operadora de cabo alemã Kabel Deutschland.

6 CVC Capital Partners já adquiriu, em 2010, a empresa helvética Sunrise, a segunda operadora de telefone na Suíça, que possui mais de 7.500 km de rede de fibra ótica.

7 R Cable y Telecomunicaciones Galicia S. A. fornece serviços de Internet de banda larga, televisão, telefone móvel e fixo a cerca de um milhão de habitações e empresas em 90 localidades galegas.

8 Este projeto de megafusão ainda não tem o visto da Divisão antitrust do Departamento norte-americano da Justiça.

9 Exatamente de 2.726 milhões de euros. A Prisa registou, em 2013, uma perda líquida de 649 milhões de euros, mais do dobro que em 2012.

10 Leia-se Ignacio Ramonet, La explosión del periodismo, Clave Intelectual, Madrid, 2012.

Sobre o/a autor(a)

Jornalista. Diretor da edição espanhola do Le Monde Diplomatique. Foi diretor da edição francesa entre 1990 e 2008.
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