Paris, 17 de outubro de 2025,
Ontem, dia 16 de outubro de 2025, várias dezenas de portugueses, estudantes e jovens trabalhadores, encontraram-se na Casa André de Gouveia, a Casa de Portugal na Cidade Internacional Universitária de Paris, espaço excecional onde uma parte dos estudantes e investigadores internacionais residem, e se cruzam, na cidade das luzes, durante os seus estudos e investigação académica. São dezenas de casas que representam várias nacionalidades, fundações ou universidades. Portugal está presente neste projeto de residências universitárias internacionais desde 1967.
Cabe dizer que o autor desta carta é, pela segunda vez, residente e membro desta comunidade particular, tendo sido admitido neste gigantesco complexo de residências universitárias – nada mais que 6000 residentes por semestre - graças à Casa de Portugal, o seu país de origem, mas vivendo, por vontade própria, na Casa da Alemanha, participando num programa de intercâmbio de casas.
Ao programa da noite, uma cerimónia de boas-vindas, na presença da senhora Cônsul de Portugal em Paris, Mónica Lisboa, e doutros membros e instituições da comunidade lusitana em terras francesas. Após um admirável e perspicaz discurso da Cônsul, onde claramente se subentendem as questões e as indagações sobre o fenómeno migratório dos jovens portugueses altamente qualificados, comemos algumas iguarias da nossa terra natal e discutimos entre nós.
Após a minha primeira dentada no meu Pastel de Nata, cortesia da casa, a senhora Cônsul interpela-me e pergunta-me se eu já tinha saudades. O pastel de nata é, obviamente, o símbolo icónico da nossa nação, imagem internacional da nossa pastelaria excecional e do nosso incomensurável turismo.
A minha resposta, demasiado espontânea - de quem passa muitas vezes ao lado das convenções diplomáticas - é de que eu tenho o hábito de ir à pastelaria portuguesa que se encontra no subúrbio parisiense mais próximo, a poucos minutos de distância da Casa de Alemanha onde resido. Para lá chegar, basta atravessar, através duma ponte, a chamada estrada periférica parisiense, que separa a cidade de Paris das suas comunidades suburbanas. A Cônsul responde num tom cordial e afável que, efetivamente, algumas vezes, fazemos as perguntas erradas e obtemos assim respostas inesperadas.
Essa pastelaria, de nome Pão Quente, encontra-se no subúrbio parisiense de Gentilly, um lugar de importante presença portuguesa, herança de várias vagas migratórias, que construíram a diáspora portuguesa em França. Essa mesma diáspora da qual a Cônsul falou, sabiamente, no seu discurso, defendendo o seu papel crucial na política externa do Estado português, sobretudo na sua vertente de soft power, de influência em outras sociedades civis. Essa mesma diáspora que, por vezes, gera desconforto nos membros da elite académica e intelectual portuguesa que frequentam as grandes instituições do ensino superior francês.
Na tranquilidade da burguesia expatriada, tenta-se evadir a imagem pejorativa associada a esses nossos compatriotas, sintoma de que a classe, frequentemente, fala mais alto que a nacionalidade.
Nesse momento, o autor deste texto pensa na exposição no hall de entrada da Casa de Portugal, o mesmo lugar onde os estudantes comiam rissóis e miniaturas de bolas de Berlim, bebiam Água das Pedras e vinhos portugueses, branco ou tinto.
A exposição chama-se Canções do Exílio Português ao amanhecer da Revolução dos Cravos, proposta pela Universidade Nova de Lisboa, no âmbito do projeto EXIMUS, em parceria com outras instituições.
Esta exposição foca-se essencialmente na elite intelectual e artística que fugiu dos miseráveis anos 60 e 70, para poder exprimir o seu desacordo, ou cólera, em relação a um regime autoritário nacionalista e imperialista. Esse mesmo regime que preferiu mandar a sua juventude para África, para voltar dentro de caixões ou com membros a menos, que encarar a fraqueza e a absurdidade da ideologia que impunhaimpiedosamente ao seu povo. Estes cantores e compositores vinham para Paris e para outras partes da Europa, onde gravavam e traduziam aos outros europeus à sua incansável revolta. No entanto, eles não esqueciam a fibra da sua pátria e iam aos bairros de lata dos imigrantes portugueses em França, as bidonvilles, e cantavam na língua de Camões para os seus conterrâneos - muitos deles pedreiros, operários, porteiros, empregadas da limpeza, trabalhadores árduos, e muitas vezes miseráveis, que ergueram com o seu suor a França dos ditos trinta gloriosos.
Creio que alguns de nós, desta minha bela geração, formada e bem cultivada, que fugiu à economia de baixos salários, de parcas oportunidades e a um custo de vida insuportável, por vezes, desonra a memória destes nossos predecessores que, nos anos60 e 70, pisaram o mesmo chão que nós pisamos hoje na Casa de Portugal, ou nas universidades e palcos franceses. Queremos estar tão longe quanto possível, geográfica e simbolicamente, dessas bidonvilles contemporâneas, dessas camadas da população, e tentamos nos construir essencialmente como diferentes deles, eliminando a herança dessas classes baixas portuguesas das quais devíamos estar orgulhosos.
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Após este serão, atravessei a distância que separa a Casa Lusa da Casa Germânica. No meu quarto, abro o jornal e leio a atualidade nacional, um reflexo de quem ainda acredita num país melhor. Telefono a alguns dos meus poucos amigos que permaneceram nas margens do Tejo e que não zarparam para outros mares. Admito que foi um momento difícil, visto as notícias que preenchiam os jornais – confesso que as palavras que mais me chocaram foram, deveras, as dum antigo primeiro-ministro. Pedro Passos Coelho exprimiu-se esta quinta-feira na apresentação do livro Introdução ao Liberalismo, de Miguel Morgado, na presença de outras figuras proeminentes da política nacional. O meu choque face às palavras de Passos não se deve tanto ao desacordo natural e quase primitivo que nutro em relação a esta personalidade da política portuguesa - que marcou o final da minha infância e o início da minha adolescência – mas pela veracidade dalgumas das suas palavras. Afirmou Passos Coelho que teme que as pessoas se possam vir a sentir “estrangeiras na sua própria terra”. Partilho desta opinião do nosso ex-primeiro ministro, mas vou bem mais além.
Muitos de nós já nos sentimos estrangeiros na nossa própria terra.
Quase um terço dos jovens portugueses entre os 15 e os 39 anos, nascidos em Portugal, vive no estrangeiro, segundo dados do Observatório das Migrações. O perfil migratório dos emigrantes mudou na última década, são agora os mais qualificados a maior fatia das novas saídas. Números muitas vezes escondidos pelo grande número de entradas. Não admira que a nossa pátria nos pareça outra que a nossa terra, quando tão poucos da nossa geração subsistem.
Sentimo-nos assim há bastante tempo, aliás. É difícil viver num país em que as políticas públicas ou as palavras de certos chefes de governo deixam subentender que não somos bem-vindos. Num país que é para esses estrangeiros que ocupam as nossas cidades, os nossos apartamentos, as nossas ruas, os nossos cafés, os quais se tornaram em espaços de coworking para essa espécie invasiva conhecida como nómadas digitais, deixando-nos pouco espaço para viver ou, no mínimo, existir. Esses que vêm comer pastéis de nata ou investir o capital que os jovens de cá não têm no setor imobiliário ou noutros.
Admito também que não gosto de criticar aqueles que viajam, pois também tenho a sorte e o privilégio de fazer parte desse grupo. Na verdade, muitos dos turistas em nada são responsáveis pela gentrificação das nossas cidades e pela destruição do nosso património cultural - essas lojas, bares, associações emblemáticas da nossa cidade que fecharam para se tornarem Airbnb ou restaurantes onde se vende a autenticidade portuguesa ou lisboeta em menus em inglês, servidos por imigrantes a quem se paga pouco e a quem progressivamente se negam direitos fundamentais. Esses mesmos direitos que o nosso Estado tenta garantir à diáspora portuguesa noutras terras, como bem lembrou a Cônsul ontem ao grupo de jovens portugueses presentes.
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Parafraseando o nosso notável capitão, questiono - quem é o responsável pelo estado a que chegámos? É o nosso Estado, soberano no nosso território e com a autoridade máxima, dentro do respeito dos limites constitucionais. O nosso Estado tem a capacidade de regular o turismo – um setor que tem contribuído para o crescimento económico, mas sobretudo para o aumento do custo de vida e a consequente amplificação das desigualdades sociais – esse turismo que tem estimulado uma economia de baixos salários, de Disneyficação da nossa cultura e incitado a imigração para responder às suas necessidades de carne para canhão.
Cabe ao ramo executivo e legislativo do nosso Estado e a quem os personifica regular estes fenómenos, não só o turismo, mas também a imigração – sobretudo a imigração que impossibilita aos jovens de aceder ao mercado imobiliário ou de arrendamento. Curiosamente, na nova Lei da Imigração, são precisamente os imigrantes que participam na especulação imobiliária que são excluídos da regulamentação, os dos vistos Gold e assimilados, sendo que a privação de direitos dos imigrantes se reduz àqueles que fazem o nosso país funcionar, que trabalham na nossa agricultura, construção civil, no turismo e noutros setores. Ora, quando falamos dos que entram no nosso país e nos fazem sentir como não sendo bem-vindos na nossa pátria, é necessário ser mais rigoroso.
Talvez, Sr. Passos Coelho, o problema esteja mais naqueles que saem de Portugal do que nos que entram no nosso país. Talvez a razão pela qual a população imigrante tenha progressivamente mais peso na nossa demografia seja pelas escolhas políticas feitas por pessoas como o senhor e alguns dos que o sucederam, que ocuparam posições em órgãos de soberania – essa palavra que exprime o poder máximo de regulação da vida da nação. Talvez, se outras políticas tivessem sido verdadeiramente implementadas, como a regulamentação do mercado da habitação ou o teto às rendas - que não faz confusão nenhuma aos portugueses que vivem em cidades onde tais medidas são moeda corrente, como Paris, Amsterdão ou Berlim. Ou, talvez, o controlo do investimento estrangeiro - em vez dessa escandalosa política de portas escancaradas aos milionários especuladores, que conhecemos nos últimos 15 anos. Ou, talvez, o estímulo à investigação e à retenção de talento – em vez da mercantilização do ensino superior e da investigação à qual temos assistido, que torna por vezes o ensino superior mais acessível noutras terras que na nossa e o trabalho de investigador mais respeitado e valorizado fora das nossas fronteiras. Ou, talvez, o fomento de setores de alto valor acrescentado, não só valor económico, mas também social e cultural – em vez de setores que, para obterem lucros para uma meia dúzia, exigem um nível de exploração ao qual certos portugueses não estão dispostos a se submeter, e ao qual, infelizmente, se submetem esses imigrantes a quem quer tirar direitos.
Talvez, talvez, se tudo isso tivesse sido feito, não nos sentíssemos estrangeiros na nossa própria terra...
Saudosas palavras dum jovem emigrado,
Artur Ramos
Artigo publicado originalmente no jornal Expresso, no dia 22 de outubro de 2025.