Começamos o programa de hoje com o consagrado poeta palestiniano Mosab Abu Toha, que foi recentemente preso e espancado pelas forças israelitas. Foi detido num posto de controlo em Gaza quando se dirigia para Rafah com a sua família. Foi preso com muitos outros palestinianos. Depois de ter sido libertado de uma prisão israelita dois dias mais tarde, Abu Toha publicou uma mensagem nas redes sociais, escrevendo, e cito: "Estou bem, mas ainda tenho dores no nariz e nos dentes depois de ter sido espancado pelo exército israelita. Dei-lhes todos os passaportes da minha família, incluindo o do meu filho americano, mas não devolveram nada. Também as minhas roupas e as dos meus filhos foram levadas e não me foram devolvidas. Sem carteira, dinheiro, cartões de crédito", escreveu.
AMY GOODMAN: A detenção de Mosab Abu Toha provocou um clamor global da comunidade literária e não só. O seu trabalho foi publicado em The New Yorker, The Atlantic, The Progressive e noutras publicações. Fundou a Biblioteca Edward Said em Gaza. O seu primeiro livro de poesia, Things You May Find Hidden in My Ear, ganhou o American Book Award e foi finalista do National Book Critics Circle Award. A coleção de poesia foi publicada pela City Lights Books.
No domingo, Mosab Abu Toha conseguiu sair de Gaza com a mulher e os três filhos através da fronteira de Rafah. Ele junta-se agora a nós do Cairo, no Egito, para a sua primeira entrevista desde que foi preso.
Bem-vindo ao Democracy Now!, Mosab. Muito obrigado por estar connosco. Lamento tudo aquilo por que passou. Pode descrever o que aconteceu, onde foi detido, onde esteve preso, o que lhe aconteceu quando esteve na prisão israelita?
MOSAB ABU TOHA: Muito obrigado pelo convite.
Consegui passar do norte de Gaza para o sul de Gaza, mas fui preso pelo exército israelita. Estava a tentar atravessar e chegar ao posto fronteiriço de Rafah. Os nossos nomes foram incluídos na lista dos americanos - pelo Departamento de Estado, porque o meu filho mais novo, de 3 anos e meio, nasceu na América. Ele é um cidadão americano. Por isso, estava a tentar atravessar do norte de Gaza, onde passei os últimos dois meses, para o sul de Gaza, onde fica Rafah, e para onde fomos aconselhados a ir. Mas no posto de controlo fui apanhado pelo exército israelita, juntamente com cerca de 200 outras pessoas. Fui escolhido pelo soldado israelita. Ele chamou-me e descreveu-me. Disse: "O homem com a mochila preta e o rapaz de cabelo ruivo, põe o rapaz no chão e deixa-o ir, e vem ter comigo." Por isso, peguei nos nossos passaportes, o do meu filho, o da minha mulher e o dos outros dois filhos, pensando que lhes ia mostrar os passaportes e o meu filho americano, para que nos deixassem ir embora. Mas fiquei surpreendido, porque ele me ordenou, de forma muito agressiva, que pusesse o meu filho no chão e viesse juntar-me à fila de outras pessoas que tinham sido raptadas comigo.
Havia um jovem - um homem mais novo. Ele estava tão assustado e disse: "Eu queria a minha mãe. Quero estar com a minha mãe. Oh, minha mãe, vem ajudar-me", etc. Tentei acalmá-lo, dizendo-lhe: "Oh, não te preocupes. Se calhar vão fazer-nos alguma pergunta e depois vamos embora". Mas não foi isso que aconteceu.
Fui então chamado por outro soldado israelita que estava sentado ao lado de outro soldado que nos apontava a arma. Pediram-nos que disséssemos os nossos nomes e os nossos números de identificação, e depois levaram-me para outro jipe israelita, diante dele - quer dizer, havia três soldados israelitas - fui obrigado a despir toda a minha roupa. Despi as calças, a camisa, etc., e fiquei com os boxers. Mas fiquei surpreendido quando me pediram para despir também os boxers. Então fiquei nu. E senti-me humilhado. Senti-me assustado e aterrorizado por este exército, porque nos ordenavam que fizéssemos tudo isto sob a mira de uma arma. E depois bateram-me na cara. Bateram-me no estômago. E ainda tenho dores na cara.
Mais tarde, apercebi-me de que nos estavam a levar para Bir As-Saba, ou Be'er Sheva, a cerca de duas horas de Gaza, sem saber o que nos iam fazer. Eu tinha pouca roupa para aquecer o meu corpo durante o tempo frio. E então levaram-me para interrogatório e eu contei-lhes toda a minha história. Não sabia que o mundo inteiro, especialmente a América, estava a escrever sobre mim e a pedir a minha libertação. Penso que esta foi uma das razões - quer dizer, eu nunca fiz nada na minha vida, não fiz mal a ninguém, embora tenha vivido sob ocupação toda a minha vida. E fui ferido quando tinha 16 anos. Fiquei com um estilhaço a poucos centímetros da traqueia, por isso fiquei ferido. A minha casa foi bombardeada. Mas eu não fiz mal a ninguém. E voltei a ser atingido. E continuo a ser afetado pelo facto de a minha família e os meus vizinhos ainda estarem em Gaza. E a última vez que estive em contacto com a minha mãe e as minhas irmãs e também com os meus irmãos e os seus filhos foi há cinco dias, no mesmo dia em que deixei Gaza. Por isso, não tenho qualquer notícia sobre se estão vivos ou mortos.
NERMEEN SHAIKH: Mosab, gostaria de lhe perguntar - você mencionou logo após a sua chegada ao Egito que continua muito, muito preocupado porque os seus pais e irmãos estão em Gaza. Há cinco dias que não consegue contactá-los. Consegue contactar outras pessoas em Gaza? Gostaria apenas de ler muito brevemente o que disse um importante analista militar dos EUA, fazendo uma analogia entre o bombardeamento de cidades alemãs como Dresden e Colónia durante a Segunda Guerra Mundial e o atual bombardeamento de Gaza por Israel. Robert Pape escreveu: "Dresden, Hamburgo, Colónia - alguns dos bombardeamentos mais pesados de sempre são recordados pelos seus nomes. Gaza também ficará registada como um nome de lugar que denota uma das mais pesadas campanhas de bombardeamento convencional da história." Mosab, pode falar sobre isso e sobre o que sabe agora sobre o que se está a passar em Gaza desde que se foi embora?
MOSAB ABU TOHA: Bem, a situação, penso eu, é diferente dos outros nomes de lugares que mencionou. Para vossa informação e do vosso respeitado público, ainda tenho amigos cujas casas foram bombardeadas há algumas semanas e cujos corpos ainda não foram recuperados. E escrevi num dos meus posts que não só nós e os habitantes de Gaza estamos preocupados com a possibilidade de sermos mortos sob os escombros da nossa casa, mas também com a possibilidade de estarmos vivos sob os escombros e ninguém nos vir salvar. Não há camiões de bombeiros. Não há pessoal da proteção civil. Não há combustível. Não há equipamento para recuperar os corpos daqueles que ainda possam estar vivos sob o bombardeamento das suas casas. Por isso, não creio que Gaza possa ser comparada a qualquer outro sítio na Terra.
Agora, com as redes sociais e o mundo inteiro a observar-nos, é diferente do que acontecia na Segunda Guerra Mundial. Quer dizer, as pessoas ouviam as notícias do bombardeamento de uma casa ou algo do género talvez mais tarde. Mas as pessoas estão a ver-nos em direto e ninguém pode intervir para impedir a carnificina, o genocídio que é cometido contra a minha família, os meus vizinhos, os meus amigos, os meus alunos, os meus colegas escritores e artistas.
Durante as tréguas, há algumas semanas, eu estava em Deir al-Balah, na outra metade da Faixa de Gaza, enquanto o meu irmão Hamza, que é pai de três filhos e cuja mulher está grávida e prestes a dar à luz - essa é outra questão de que ninguém fala, a realidade e as circunstâncias em que vivem as mulheres em Gaza. Fala-se da violência sexual contra as mulheres israelitas, mas ninguém fala da violência contra as nossas vidas. Ninguém fala das mulheres grávidas. Ninguém fala das mulheres enterradas sob os escombros com as suas famílias. Então, não se chama a isto violência? Então, só vos interessa a violência sexual? É só isso que vos interessa?
NERMEEN SHAIKH: Qual é a situação das mulheres palestinianas, em particular, como referiu, das mulheres palestinianas grávidas, tendo em conta a situação nos hospitais? Já falou um pouco sobre isso no passado. Pode explicar melhor?
MOSAB ABU TOHA: Bem, as mulheres, tal como as outras mulheres no mundo - quer dizer, as mulheres em Gaza têm as suas próprias necessidades. Não há casas de banho limpas. E elas precisam das suas próprias coisas. Quando uma mulher tem o período, não há artigos para cuidar do seu corpo. E há também as outras mulheres grávidas. Muitos hospitais em Gaza estão fora de serviço neste momento, não só para os feridos, mas também para as mulheres grávidas. Ninguém fala sobre isto. É preciso falar sobre isto. Onde é que a minha cunhada, a mulher do meu irmão, onde é que ela pode dar à luz? E há roupas suficientes para o bebé recém-nascido? Então, não se preocupam com esta violência cometida contra os pais? Como é que eles vão gerir as suas vidas? Ninguém fala sobre isso.
Isto é violência em si, não só por nos matar, mas também por causa da falta de água, da falta de comida. Antes do início desta carnificina, comprávamos 25 quilos de farinha de trigo por 40 shekels, o que equivale a cerca de 12 dólares. Ontem, o tio da minha mulher enviou-me uma mensagem e disse-me: "Paguei 500 shekels", o que equivale a cerca de 130 dólares. Portanto, ele pagou 130 dólares para obter 25 quilos de farinha de trigo e porque a conseguiu encontrar, claro, porque há falta de farinha de trigo e de outras coisas básicas. Mas, se ele tinha dinheiro para a comprar, há outras pessoas que não conseguiram arranjar dinheiro porque não têm emprego. A maioria das pessoas em Gaza depende de trabalhos à jorna - agricultores, vendedores, etc. Por isso, a maioria das pessoas em Gaza não tem dinheiro e, por vezes, pedem a outras pessoas que lhes deem dinheiro. Só se fala sobre a violência sexual, sobre o 7 de outubro. Mas isto tem acontecido, mesmo antes do dia 7 de outubro, já agora.
AMY GOODMAN: Mosab Abu Toha, estamos a relatar tudo, as histórias horríveis que estamos a ouvir desde o dia 7 de outubro, mas também o que aconteceu antes e depois do dia 7 de outubro aos palestinianos. Queria saber a sua reação ao facto de a Organização Mundial de Saúde ter classificado o ataque a Gaza como a "hora mais negra" da humanidade. O principal coordenador da ajuda humanitária das Nações Unidas afirmou que o ataque israelita ao sul de Gaza foi tão devastador como no norte, com condições apocalípticas que impedem a entrega de ajuda e com cerca de 85% da população deslocada. E, em particular, se pudesse falar sobre as suas conversas com médicos e enfermeiros em Gaza? Você escreveu no Twitter: "Imagine-se como um pai que vê o seu filho não só a ter a perna amputada, mas também a morrer de dor. Ainda sentes que és um pai? Que ainda existem seres humanos no mundo?" Fale-nos sobre os hospitais.
MOSAB ABU TOHA: O primeiro hospital em que pude entrar foi o Hospital Shuhada al-Aqsa, que fica em Deir al-Balah. E fui para lá - quer dizer, não gosto de ir a hospitais, porque, antes de mais, não há espaço para eu entrar. As camas estão cheias de doentes e feridos. E, ao mesmo tempo, os corredores, os corredores interiores estão cheios de pessoas deitadas. Os feridos estão a ser tratados, a ser operados enquanto estão no chão. Tive de me deslocar a esse hospital para receber tratamento para a minha cara e o meu nariz a sangrar. Não há médicos suficientes para tratar os doentes e os feridos. E há corpos por todo o lado. Até se enterram pessoas sem os seus familiares por perto, porque os seus familiares tinham morrido com elas, o que é realmente de partir o coração. E as pessoas são transformadas em números e nomes. Eles colocavam o corpo num pedaço de pano e escreviam os nomes, e pronto. Levavam-nos para o cemitério.
Consegui falar com alguns médicos e enfermeiros do hospital. E fiquei chocado. Quer dizer, eu sabia que não havia medicamentos suficientes, mas uma enfermeira contou-me o caso de uma criança a quem foi amputada uma perna. E como não havia anestesia nem analgésicos, a criança morreu quando lhe estavam a amputar a perna. E eu pergunto-me: como é que eu me sentiria como pai se a minha filha tivesse de amputar a perna ou o braço, enquanto está a ver o braço ou a perna serem amputados, e depois continuasse a sangrar, e depois morresse por causa da dor? E peço a todas as pessoas do mundo que se ponham no meu lugar de pai. E pergunto-lhes: Estão mesmo preparados para o dia em que uma criança de Gaza vos encontrar na rua ou quando forem a Gaza ou visitarem os cemitérios de Gaza? O que é que vão dizer a essa criança? O que é que fizeram para proteger a sua família? Estão a viver no mundo ocidental e de alguma maneira a apoiar Israel, quer dizer, estão a pagar impostos, que vão para Israel. E estou realmente chocado com a administração americana, e espero que a minha voz chegue às pessoas da administração americana. Quando aconteceu o 7 de outubro, foram a Israel. Mostraram o vosso apoio. Ofereceram armas e dinheiro. Portanto, foram capazes de fazer tudo. Mas agora estão a pedir a Israel que proteja - que minimize as baixas entre os civis. Podem fazer alguma coisa para proteger os civis? Estão a pedir a Israel que minimize as baixas, certo?Então, o que é que a administração americana pode fazer para obrigar Israel a respeitar a lei mundial? É assim tão difícil parar a carnificina, proteger a população civil, proteger os hospitais, proteger os abrigos, as escolas da UNRWA?
NERMEEN SHAIKH: Para terminar, Mosab, qual é a sua mensagem para os EUA, para o Presidente Biden e para os líderes europeus?
MOSAB ABU TOHA: Bem, acho que se não conseguem parar a guerra, se não conseguem parar a carnificina, o genocídio, simplesmente parem de o financiar. Deixem de fornecer mais armas a Israel. Porque essas armas estão apenas a matar crianças que são como as vossas crianças. Quero dizer, os vossos filhos e vocês, como pais americanos ou europeus, podiam ter nascido aqui na minha casa, em Gaza. O vosso filho pode estar a viver numa escola da UNRWA, num abrigo. Podem ser bombardeados numa sala de aula. Em vez de estudar e continuar a estudar, o seu filho pode estar simplesmente abrigado numa sala de aula sem professor, sem livros. Estão apenas a ser educados para sobreviver, se conseguirem.
AMY GOODMAN: Mosab, só temos 30 segundos, mas alguma vez lhe disseram porque é que foi preso? Foi preso - penso que nesse dia foram presos cerca de 200 palestinianos em Gaza. Houve um grande clamor a seu favor. Sabe se os outros foram libertados?
MOSAB ABU TOHA: Não. Quer dizer, há algumas outras pessoas que eu conhecia pelo nome porque são da mesma cidade que eu, de Beit Lahia. E agora - portanto, fui raptado a 19 de novembro e hoje é dia 7 de dezembro. Até agora, há outras pessoas que ainda estão detidas pelo exército israelita e as suas famílias contactam-me: "Sabes alguma coisa sobre o nosso..." Eu disse-lhes: "Acabei de sair. Acabei de ser libertado. Não tenho notícias da vossa família." Portanto, eles ainda estão raptados.
E os israelitas, já agora, acusaram-me de ser membro do Hamas. Quer dizer, que acusação ridícula. Tenho vivido na América nos últimos quatro anos. Perguntei ao capitão israelita se tinham alguma fotografia, se tinham alguma fotografia de satélite de mim a segurar uma arma ou a estar em qualquer sítio que lhes pudesse causar algum dano. E ele deu-me uma bofetada na cara. Disse-me: "Dá-me tu a prova!"
AMY GOODMAN: Mosab Abu Toha, queremos agradecer-lhe muito por estar connosco, poeta e autor palestiniano, preso pelas autoridades israelitas quando ele e a sua família fugiram de Gaza. O seu filho é cidadão americano. É colunista, professor e fundador da Biblioteca Edward Said em Gaza, também autor do livro de poesia vencedor do American Book Award, Things You May Find Hidden in My Ear: Poems from Gaza.
Entrevista publicada no Democracy Now! a 7 de dezembro de 2023. Traduzida por Luís Branco para o Esquerda.net