Salazar e a primeira biografia portuguesa de Marx

24 de junho 2023 - 12:31

O ditador combatia o marxismo dando dele uma visão de um determinismo economicista que repelia ideias como as “de justiça e de dignidade”. Foi a isto que o anarquista Emílio Costa procurou responder no seu livro. Por Luís Carvalho.

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Marx. Foto de E. Dutertre em Argel, 28 de abril de 1882.
Marx. Foto de E. Dutertre em Argel, 28 de abril de 1882.

O crítico literário do Diário de Notícias achou que era um livro “perigoso”1.

E a ditadura concordou: acabou apreendido pela polícia nas livrarias de Lisboa, na primavera de 1931.

Assim aconteceu à primeira biografia portuguesa de Karl Marx, publicada em 1930.

O autor era um anarquista que se salientaria na resistência ao fascismo. Um elemento ativo da revista Seara Nova, do jornal República e do Movimento de Unidade Democrática (MUD).

Seu nome era Emílio Costa.

Marxismo nas aulas de Salazar

Alguns anos antes, nas suas aulas de economia política, na Universidade de Coimbra, o professor Salazar ainda não era ministro nem ditador. Mas já combatia o marxismo.

Do alto da cátedra, afirmava que para Marx “o fenómeno económico é a causa determinante de todas as outras manifestações da vida social”. E que “o marxismo repele toda a consideração ideológica, a começar pelas ideias de justiça e de fraternidade”.

Era uma forma de acusar o marxismo de ser uma doutrina anti-humanista, para quem a “a justiça, a paz, a simpatia, o amor, numa palavra, os factos psicológicos não desempenham função alguma na evolução social”, pois considera que esta “é apenas determinada pelo factor económico”.2

Esta foi uma das questões a que Emílio Costa procurou responder na sua biografia de Marx.

Reformismo e Estalinismo

A tendência de confundir marxismo com determinismo económico suscitou vários problemas.

Salazar usou-a enquanto adversário do marxismo, procurando descredibilizá-lo e demonizá-lo como algo incompatível com sentimentos e valores humanistas.

No seio do movimento operário, esse determinismo serviu de suporte teórico a concepções conformistas, de abandono da luta contra o capitalismo. Mas também a concepções autoritárias.

No primeiro caso, funcionou para encarar a transformação social como uma espécie de herança pacífica de um desenvolvimento natural do capitalismo, menosprezando a luta de classes e o papel fundamental da ação coletiva e consciente da classe trabalhadora.

No segundo caso, serviu de suporte à ‘visão’ de que no rumo para uma sociedade socialista “tudo está feito desde que se mudem as condições económicas [...] e inversamente, que é inútil provocar mudanças que não sejam económicas”.3

Descurando tantas outras lutas e valores fundamentais. Como se o ideal socialista, de uma sociedade mais livre e justa, fosse algo que se pudesse simplesmente impor numa revolução “a partir de cima, por iniciativa do poder de Estado”.4

Afinal, mais uma forma de menosprezo pelo papel ativo da classe trabalhadora. E de abandono do socialismo.

Estaline será um exemplo mais trágico dessa “visão economicista”.5

Determinismo económico?

O próprio Marx deu um certo azo a uma leitura determinista.

Por exemplo, na sua obra O Capital (Livro 1), no capítulo sobre a “tendência histórica da acumulação capitalista”, Marx foi ao ponto de afirmar que a “produção capitalista engendra ela própria a sua negação com a fatalidade que preside às evoluções da natureza”. E concluiu que, como consequência de um processo económico, a crescente concentração do capital, a “transformação da propriedade capitalista em propriedade social” e “o triunfo do proletariado são igualmente inevitáveis”.6

Mas é preciso compreender que Marx cresceu e viveu na época do liberalismo clássico do século XIX. A Revolução Francesa tinha proclamado que “os homens nascem e permanecem iguais em direitos”.7

Só que, na prática, essa igualdade jurídica e política não pôs fim a profundas desigualdades e injustiças sociais.

Como assinala David Riazanov, a “desconfiança pelas aparências na vida política e social era para Marx o ponto de partida para qualquer investigação crítica”. Com a preocupação de não se deixar “enganar pelo rosto de justiça da sociedade capitalista, na qual pode parecer que prevalecem a liberdade, igualdade e justiça”.8

Foi neste contexto que Marx se focou na estrutura económica da sociedade, na propriedade dos meios de produção e nas relações de produção.

E encontrou aí a base da opressão e desigualdade entre a classe trabalhadora e a nova classe dominante: a burguesia, o grande capital.

Outro fator a ter em conta é que, em 1930, grande parte da obra de Marx ainda não era conhecida. Quedavam por publicar peças fulcrais para se estudar o seu pensamento humanista, como os Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844 e os Grundrisse (de 1857).

A resposta de Emílio Costa

Uma das preocupações de Emílio Costa na sua biografia de Marx foi contribuir para o diálogo entre as diferentes correntes do movimento operário português, à época muito enfraquecido pelas suas quezílias internas.

Emílio era anarquista e não deixou neste livro de tornar bem clara a sua posição.

Mas reconhece em Marx “um homem de altíssimo valor, que prestou grandes serviços à ciência social e à causa do socialismo”.9

E considera que a concepção marxista da história, com o seu ênfase na estrutura económica da sociedade, é, de todas as ideias de Marx, “a mais interessante, a mais atraente, a que contém mais sólida porção de verdade”.10

Não a confunde com as leituras demasiado deterministas. Pelo contrário, reconhece bem a sua natureza humanista.

Cita a esse propósito uma advertência do mais próximo camarada de Marx, Friedrich Engels: “a evolução política, jurídica, filosófica, literária, artística, etc., assenta sobre a evolução económica. Mas todas elas reagem umas sobre as outras e sobre a base económica”.

E conclui que “não é que a situação económica seja a única causa ativa, e tudo o mais apenas um efeito passivo”. Embora condicionados por ela, “os próprios homens é que fazem a sua história”.11

Desumano foi a ditadura do ‘professor’ Salazar ter travado a distribuição deste livro e de tantos outros, provocando um “atraso cultural em relação à circulação de ideias”.12

Não obstante, este livro de Emílio Costa faz parte da história do marxismo em Portugal.13


Notas:

1 Diário de Notícias, Lisboa, 04/03/1931, p.9.

2 Menano, Alberto (1927), Economia política - apontamentos coligidos das preleções do exmo. Sr. Doutor Oliveira Salazar, pp.110/1.

3 Costa, Emílio (1930), Karl Marx, Lisboa: Livraria Peninsular Editora, pp. 104/5.

4 AAVV (1946), Histoire du Parti Communiste (bolchévik) de l’URSS, Paris: Éditions Sociales, p.257.

5 Lane, David (1991), “Bolshevism”, in Bottomore (ed.), A Dictionary of Marxist Thought, Oxford: Blackwell Publishing, p.54.

6 Marx (1912, O Capital, Lisboa: Edição da typographia Francisco Luiz Gonçalves, pp. 233/4.

7 «Déclaration des Droits d’Homme et du Citoyen» (1789), article premier.

8 Riazanov, David (1927) “Karl Marx’s ‘confessions’”, in Riazanov (ed.), Karl Marx: Man, Thinker and Revolutionist, London: Martin Lawrence, p. 279.

9 Costa, Emílio (1930), Karl Marx, Lisboa: Livraria Peninsular Editora, p.123.

10 Ibidem, p.94.

11 Ibidem, p.102.

12 Seiça, Álvaro (2022), “Censura sobre o livro “teve um impacto gigante em Portugal””:

https://www.50anos25abril.pt/noticias/entrevista-alvaro-seica-censura

13 Mais sobre este livro, o seu autor e o seu editor, aqui:

https://vozoperario.pt/jornal/2020/01/06/a-primeira-biografia-portugues…

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