“Na evolução do pensamento socialista português, Ernesto da Silva marca o início de uma nova era”, dizia Heliodoro Salgado, em 1903.1
Era uma referência a um dos papéis de relevo que o operário Ernesto da Silva desempenhou na história do socialismo em Portugal, naquela viragem de século, quando se tornou um porta-voz do apoio operário ao Partido Republicano.
Na altura, muitos ativistas deram esse passo. Quer socialistas, quer anarquistas. Mais tarde, muitos deles viriam a desiludir-se. Mas deram um apoio fulcral para pôr fim à monarquia, em 1910.
Partido Socialista Português
Antes disso, porém, Ernesto da Silva teve outro papel de relevo, como dirigente do antigo Partido Socialista Português, ao lado de Azedo Gneco.
Contribuiu então para a difusão das ideias socialistas e marxistas neste país.
Há vários testemunhos da época, acerca dos seus dotes oratórios em “assembleias populares”. A feminista Ana de Castro Osório, por exemplo, recordava-se “das suas frases curtas, claras, precisas, da sua ironia, da sua maneira cortante de expôr”.2
A imprensa operária foi outra área de atividade de Ernesto da Silva. E também publicou alguns livros de política e de teatro.
Foi, aliás, um expoente do teatro operário, precursor do neo-realismo na representação literária da classe trabalhadora, das suas condições de vida e das suas lutas.
Imprensa Nacional
Nascido em Lisboa, em 1868, Ernesto da Silva tornou-se operário da Imprensa Nacional, como tipógrafo. E ali passou mais tarde ao ofício de revisor.
Fez parte do notável naipe de militantes que trabalharam naquela casa.
Figuras de diferentes correntes, como José Nobre França (tradutor da primeira edição portuguesa do Manifesto Comunista de Marx e Engels, em 1873); Francisco Cristo (um dos fundadores do jornal A Batalha, em 1919); ou José Maria Gonçalves (um dos fundadores do PCP, em 1921).
Entre outros.
Marxismo clássico
Ernesto da Silva teve ainda um importante papel na organização do seu setor profissional, como dirigente do sindicato «Liga das Artes Gráficas de Lisboa».
Mas o que se foca aqui é o seu contributo à difusão do marxismo em Portugal.
Neste aspeto, salienta-se a sua tradução de um livro de Paul Lafargue, autor que foi uma das referências do “marxismo clássico”, no período anterior à 1ª Guerra Mundial.
No funeral de Lafargue, em 1911, um dos discursos coube a um tal de Vladimir Ilitch Lenine, que o apontou então como “um dos mais dotados e profundos disseminadores das ideias do marxismo”.3
No meio socialista português, Lafargue era especialmente estimado. Tinha passado por Lisboa, nos seus tempos de exilado, a seguir à sua participação na Comuna de Paris. E foi o delegado da seção portuguesa ao congresso da 1ª Internacional, em 1872.4
Determinismo
O pequeno livro de Lafargue que Ernesto da Silva traduziu é: O Comunismo e a evolução económica. Somando apenas 32 páginas, corresponde a uma intervenção proferida pelo autor em Paris, em 1892.5
Um dos traços que saltam à vista nesta obra é a sua leitura determinista do pensamento de Marx, particularmente quando diz, logo ao início:
“Nós discípulos de Marx e de Engels, julgamos [...] que o desenvolvimento dos fenómenos económicos leva fatalmente” ao comunismo.6
Um historiador do marxismo, Leszek Kolakowski, diria que “pela forma como trata o ‘determinismo económico’ Lafargue simplifica o marxismo a tal ponto que o torna irreconhecível”.7
Mas não era uma originalidade. Correspondia afinal ao “determinismo filosófico” que era “endémico” no seio da 2ª Internacional, sublinha outro historiador do marxismo, David Renton.
Este tipo de leitura tinha uma certa base no próprio Marx, nomeadamente no capítulo 32 de O Capital (Livro 1), sobre a tendência histórica da acumulação capitalista. Quando afirma que o capitalismo “engendra a sua própria negação com a fatalidade que preside às evoluções da natureza”.
Note-se, porém, que só depois da morte de Ernesto da Silva e de Lafargue é que se tornaria conhecida uma parte substancial da obra de Marx, que viria contrariar as suas leituras mais deterministas. Incluindo trabalhos tão relevantes como os Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844 e os Grundrisse.
Colonialismo
No livro de Lafargue traduzido por Ernesto da Silva, um aspecto interessante é a referência crítica que faz a uma questão central no Portugal da época: o colonialismo.
É certo que se trata de uma abordagem muito ligeira. E que passa ao lado do ponto central do tráfico esclavagista, e de outras formas de sobre-exploração do trabalho das populações colonizadas.
Apesar destas limitações, denuncia o “roubo” de recursos naturais e o controle de mercados para escoamento de mercadorias produzidas na Europa.
Faz uma distinção entre duas épocas: “nos séculos XVI e XVII as nações europeias, disputavam entre si as colónias no intuito de roubarem aos indígenas, as especiarias, as madeiras preciosas, os metais de valor e as peles dos animais”.
Enquanto no século XIX disputavam “as colónias no intuito de exportarem as mercadorias roubadas aos produtores” - os operários na Europa.
E daqui Lafargue tira a conclusão de que “o roubo é a essência da sociedade capitalista”.8
Mulheres
O lugar das mulheres nas relações de produção e no movimento operário é outra questão abordada por Lafargue, na qual ressalta a sua tendência “determinista”.
Aponta que com o desenvolvimento do capitalismo, “a mulher é condenada aos trabalhos forçados da indústria para diminuir o salário do chefe de família, e depois da mulher é aproveitada a criança para cercear o salário da mulher”.9
Perante esta concorrência, muitos militantes operários defenderiam como solução um regresso da mulher ao lar. Mas Lafargue já antevê uma superação do problema: “a mulher é ainda mais martirizada que o homem, mas o trabalho social que a tortura hoje, liberta-la-á do jugo marital mais eficazmente”.
E advoga que “as mulheres sequestradas ao trabalho doméstico e participando assim do trabalho social, têm o direito e o dever de se ocuparem da política e tomarem parte no movimento socialista”.
Além do “jugo marital”, fala ainda na “opressão da moral masculina”. E vislumbra que “na sociedade comunista” as mulheres “encontrarão todos os direitos de cidadãs”.
Marxismo anti-estatizante
A obra O Comunismo e a evolução económica, traduzida pelo operário Ernesto da Silva, apresenta vários outros pontos de interesse.
Dando aqui apenas mais um exemplo, será uma leitura salutar para quem confunde marxismo com estatização da economia.
Sobre o papel do Estado, Lafargue dizia muito claramente: “queremos a sua supressão” e “temos como certo que o estado é a praça forte do capitalismo”, que “é a organização das opressivas [...] classes privilegiadas”. E augurava que “na sociedade comunista [...] não haverá necessidade de Estado”.10
Três operários
Com a tradução deste livro de Lafargue, que terá sido publicada à volta de 1895, o operário Ernesto da Silva entrou para a história da difusão do marxismo em Portugal. E inseriu-se num trabalho coletivo desenvolvido à época pela secção portuguesa da 1ª Internacional e pelo antigo Partido Socialista Português.
Trabalho no qual avultam as primeiras edições portuguesas do Manifesto Comunista (1873) e de O Capital (1911/12).
Por sinal, ambas também traduzidas por operários da Imprensa Nacional: respetivamente José Nobre França e Albano de Morais.
Nota: este artigo é uma pequena lembrança pelo recente 120º aniversário da morte de Ernesto da Silva, ocorrida no dia 25 de abril de 1903.
Notas:
1 A Obra, 01/05/1903, p.1
2 Lafargue (189?), p.12
3 ibidem, p.17
4 ibidem, p.29
5 O Mundo, 28/04/1903, p.2
6 Lafargue (1931), Le communisme et l’évolution économique (5eme édition), Paris: Librairie Populaire du Parti Socialiste, p.1.
7 Lafargue (189?), O comunismo e a evolução económica, Lisboa: Instituto Geral das Artes Gráficas, p.3
8 O Pensamento Social, 13/10/1872, p.2.
9 Leszek Kolakowski (2008), Main currents of marxism, New York: W. W. Norton & Company, p.470
10 Lénine (1974), Collected Works (vol 17), Moscow: Progress Publishers, p.304.