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Road to Nowhere – As Dragagens do Sado e o Aeroporto do Montijo

Estes 2 projectos megalómanos e mal-pensados têm muito mais coisas a uni-los do que a separá-los e são sintomas de uma preocupante tendência global. Ambos põem em risco, sem real necessidade, 2 dos estuários mais importantes da Europa, em termos de biodiversidade! Por Luís Fazendeiro
Baía de Setúbal, Foto tirada do Forte de S. Filipe por Diego Delso/wikimedia
Baía de Setúbal, Foto tirada do Forte de S. Filipe por Diego Delso/wikimedia

De acordo com um relatório recente da Agência Ambiental Europeia, os sectores da aviação e do transporte marítimo registaram o maior aumento de gases de efeito de estufa (GEE) nas últimas décadas. Se as tendências actuais se mantiverem, estima-se que em 2050 estes 2 sectores sejam responsáveis por cerca de 40% de todas as emissões de dióxido de carbono, a nível mundial.

Pois nem de propósito, no passado dia 8 de janeiro de 2019 houve dois desenvolvimentos relacionados com esta temática em Portugal, ambos com a possibilidade de enormes repercussões a longo prazo. O primeiro foi a assinatura do acordo entre o Governo português e a Vinci, multinacional de origem francesa que detém o controle da ANA (Aeroportos de Portugal) até 2062 (por 50 anos! Por este privilégio, a Vinci, em 2012, pagou apenas 3 mil milhões de euros, no que foi considerado o negócio do ano em termos de aeroportos pela World Finance Awards… Pudera! Se só em 2017 a ANA anunciou lucros de perto de 250 milhões…), para o início das obras de expansão do aeroporto da Portela e a construção de outro aeroporto no Montijo, na Base Militar BA6. O 2º acontecimento foi a emissão do TUPEM (Título de Utilização Privativa do Espaço Marítimo) Nº 030/01/2019, que permite a imersão de areias no delta do estuário do Sado, num valor de 2,6 milhões de metros cúbicos.

O novo porto de águas profundas de Setúbal

Vamos começar pelo 2º ponto, uma vez que tem tido menos atenção mediática. O objectivo destas obras de dragagem, para as quais o TUPEM acima referido é válido por 5 anos, até ao final de 2024, é Setúbal passar a ter um porto de águas profundas, de modo a poder acolher os maiores navios do mundo, ainda que já haja um a menos de 60km de distância, logo ali ao lado, em Sines. Assim, as operações de dragagem não se reduzem a uma mera operação de manutenção. O objectivo é retirar cerca de 6,5 milhões de metros cúbicos de areias, parte delas contaminadas com pesticidas, metais pesados e materiais cancerígenos, do fundo do estuário do Sado, numa faixa ao longo de 13km, que vai desde a barra até ao cais de Setúbal. E depois depositá-las mesmo à entrada do estuário! A responsável pelo gestão do processo é a Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra (APSS), Sociedade Anónima. A sua presidente, Lídia Sequeira, foi já gestora de uma empresa de consultadoria da actual Ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, a mesma pessoa que a nomeou para esse cargo na APSS.

Tal como sucedeu no caso do furo para prospeção de petróleo ao largo de Aljezur, este projecto é contestado até por vários dos principais grupos empresariais da região, devido aos riscos que pode trazer para o turismo, para a pesca local e para o turismo de natureza. Relembre-se que o Sado é um dos pouquíssimos estuários em toda a Europa onde existe uma comunidade de golfinhos (28 na última contagem) a viver durante todo o ano. Além do direito à vida que estas magníficas criaturas certamente deveriam ter, este é também um sinal da importante biodiversidade das águas do estuário, que existe num equilíbrio frágil – e do qual centenas de pessoas na região dependem economicamente! Mas nas incríveis palavras da Ministra do Mar, que parecem saídas de um romance de Eça de Queiroz, o que é preciso evitar a tudo o custo é “escalar no Porto de Setúbal o refugo das frotas mundiais”. Ou seja, conseguir trazer para lá os maiores e mais deslumbrantes navios do mundo. O resto é conversa! Eis-nos pois a revisitar uma velha visão, ainda longe de desaparecer, de Portugal como o país que procura repetir, a custo, aquilo que tantos outros já deixaram de fazer há décadas, constantemente envergonhado de si próprio e com receio de não estar suficientemente “up-to-date”.

No passado dia 15 de Dezembro houve uma Assembleia Popular na União Setubalense, onde cerca de 200 participantes, incluindo cientistas, pescadores, ambientalistas e donos de pequenas empresas, manifestaram a sua total discordância com este projecto, bem como o propósito de tudo fazer para o travar. Entre estes encontrava-se o Movimento Cívico SOS Sado, que muito tem feito não só para informar a população sobre os riscos implicados como para travar as obras, inclusive através de vários processos judiciais. Muitas outras organizações, como a Zero e o Clube da Arrábida, ou os partidos políticos PAN, Bloco de Esquerda e PEV manifestaram já a sua total oposição contra o projecto, mas o risco continua a pairar sobre todo o estuário do Sado, sobre as suas várias Reservas e Parques Naturais e sobre a população local.

O novo aeroporto do Montijo

Já o aeroporto do Montijo tem sido alvo de um pouco mais de atenção mediática, por razões óbvias. Os factos são já bem conhecidos. O actual aeroporto Humberto Delgado começa a dar sinais de saturação, logo os lobbies do turismo e do sector imobiliário lançam o alarme para não se perca nenhum potencial passageiro. Nos últimos 7 anos, o número anual de passageiros na Portela quase duplicou, passando de 15 milhões em 2011 para 29 milhões em 2018, segundo dados da ANA. Ora as filas, atrasos de vôos e reclamações começam agora a prejudicar o negócio (ou melhor, a impôr alguns limites, ainda que modestos, ao seu crescimento), pelo que há que encontrar rapidamente maneiras de despejar mais pessoas em Lisboa, dê por onde der. Entretanto a expansão prevista para o aeroporto Humberto Delgado, na Portela, já vai permitir um aumento enorme na sua capacidade máxima, havendo o objectivo declarado de este atingir os 50 milhões de passageiros. Será que alguém ainda acredita que a cidade de Lisboa aguente ou necessite de tamanha quantidade?!

Os vários mitos em relação à opção do Montijo, que está agora prevista para ser concluída em 2022, foram já desmontados pela Plataforma Cívica Aeroporto BA6 Não!, que conta com o apoio técnico de vários especialistas, tanto nas áreas da engenharia civil como da aeronáutica e da proteção ambiental. As contrapartidas incluem o ruído e a poluição ambiental que as dezenas de milhares de habitantes em redor terão de sofrer. Existe ainda um risco muito real de colisões entre aeronaves e aves de grande porte, num dos estuários mais importantes de toda a Europa, em termos de biodiversidade. Devido à importância desta obra, e ao enorme número de sectores que abrange, desde o ordenamento do território, ao Ambiente, mobilidade, recursos hídricos ou habitação, a própria lei portuguesa indica que esta deveria ser alvo de uma Avaliação Estratégica Ambiental e no entanto o Estado está disposto a dar o aval à mesma, sem que haja sequer um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) aprovado. Quando questionado sobre o que sucederia se a Agência Portuguesa do Ambiente desse uma opinião negativa acerca da obra, o Primeiro Ministro admitiu no Parlamento, quase com orgulho, que “não há plano B”!

Uma má ideia nunca vem só!

Na verdade, estes 2 projectos megalómanos e mal-pensados têm muito mais coisas a uni-los do que a separá-los e são sintomas de uma preocupante tendência global. Senão vejamos:

- ambos levarão a um aumento considerável das emissões de gases de efeito de estufa;

- em ambos os casos serão os sectores mais desprotegidos das populações locais que sofrerão de forma desproporcional, e em 1ª mão, os seus impactos, seja o ruído e a poluição, no caso do novo aeroporto, ou a provável contaminação de águas e espécies marinhas, bem como perda de actividade económica, no caso das dragagens em Setúbal;

- em ambos os casos o processo está a ser conduzido por empresas privadas (sejam elas a Vinci, dona da ANA, ou a APSS, que administra o porto de Setúbal), com o Estado português a ir a reboque, em nome de interesses económicos de curto prazo, claramente prejudiciais para o interesse nacional;

- em ambos existe (felizmente!) um largo sector da população local que se opõe aos mesmos, bem como várias organizações que lutam pelo cancelamento das obras;

- finalmente, ambos põem em risco, sem real necessidade, 2 dos estuários mais importantes da Europa, em termos de biodiversidade!

 

As alternativas para esta tendência derrotista, condenada ao fracasso, são também cada vez mais, e passam todas por uma economia mais localizada e justa, em que a obsessão pelo crescimento a todo o custo deixa de ser o factor central e estruturante de toda a sociedade.

A estrada para lugar algum

Em meados dos anos 80, os Talking Heads cantavam: “We’re on the Road to Nowhere”.

Nessa altura, a causa de maior preocupação eminente era o possível conflito nuclear entre as duas super-potências, mas as questões ambientais não andavam muito longe, em particular o buraco da camada de ozono, as chuvas ácidas e – num distante 3º lugar, mas ganhando rapidamente espaço na agenda pública - o aquecimento global. Para quem tiver o mínimo de consciência acerca da magnitude dos riscos que “estamos” actualmente a correr com a biosfera do planeta (o único que conhecemos capaz de suportar vida em grande escala), o refrão de “Road to Nowhere” soa cada vez mais premonitório e assustador!

Este “estamos”, diplomático e algo antiquado, é a forma polida de designar um hipotético “colectivo humano”, mas na verdade a decisão de correr estes enormes riscos, em nome de toda a espécie humana e de grande parte da vida neste planeta, é tomada, quase diariamente, por uma pequeníssima elite de decisores políticos, gestores de grandes empresas e de milionários! Para as actuais classes políticas (supostamente) encarregadas de avaliar as decisões que levam a novos aeroportos, a novos portos de águas profundas, não parece haver outra alternativa senão a de marchar alegremente, e cada vez mais depressa, em direção a um precipício cada vez mais próximo.

Temos hoje o dever moral de tudo fazer para não nos deixarmos arrastar por eles!

Artigo de Luís Fazendeiro, investigador em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável; Activista do Climáximo, Plataforma Algarve Livre de Petróleo e Movimento do Centro contra a exploração de gás.

Artigo originalmente publicado no blogue do grupo de ativismo social e ambiental Climáximo.

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