Gaza/Israel

Reflexões a propósito dos mandados de captura emitidos pelo TPI

07 de dezembro 2024 - 16:48

A disposição dos governos cúmplices da ocupação sionista para cumprirem os mandados de captura emitidos pelo Tribunal Penal Internacional contra Netanyahu é pouca e escudam-se em argumentos jurídicos. Um professor de Direito Internacional explica as razões pelas quais o TPI está habilitado a julgar os crimes de guerra em Gaza.

por

Nicolas Boeglin

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Sede do TPI em Haia
Sede do TPI em Haia. Foto de Rick Bajornas/ONU

As autoridades de alguns países mostram-se dispostas a cumprir os mandados de captura emitidos pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) contra dois líderes políticos de Israel e um da ala militar do Hamas. Outros países, porém, recusam cumprir essa obrigação, à qual estão sujeitos a partir do momento em que subscreveram o Tratado de Roma, que criou o TPI; além disso, há quem ponha em dúvida a capacidade do TPI para investigar e julgar crimes de guerra perpetrados na faixa de Gaza; há até quem defenda que certos cargos políticos são imunes à justiça. Nicolas Boeling, professor de Direito Internacional numa universidade de Costa Rica, discorre sobre este problema e sobre as circunstâncias da agressão de Israel ao povo palestino da faixa de Gaza e do Líbano, para concluir que o TPI está perfeitamente habilitado a julgar esses casos e a emitir mandados de captura de qualquer pessoa, seja qual for o seu estatuto político, que tenha sido julgada culpada de crimes de guerra ou contra a humanidade.

Publicamos parcialmente o artigo de Boeling e editamos o texto, para o adequar melhor ao leitor não especializado e tornar a sua leitura mais fácil. Trata-se, no entanto, de um artigo extremamente minucioso e bem documentado, razão pela qual aconselhamos vivamente o leitor especializado em Direito Internacional a consultar o original na sua versão completa.



No comunicado de imprensa «Notes from visit to Gaza» do Alto-Comissariado para os Direitos Humanos das Nações Unidas, publicado em 29/11/2024 mas muito pouco referido na grande imprensa internacional, podemos ler o seguinte:

«Com a chegada do início do inverno e da chuva, aumenta a necessidade de abrigos decentes e roupas de inverno. As condições em Gaza são horrendas. Milhares de pessoas recentemente deslocadas, predominantemente de Jabaliya, Beit Lahiya e Beit Hanun, abrigam-se em edifícios parcialmente destruídos ou acampamentos improvisados, em condições desumanas, sujeitos a severa falta de alimentos e condições sanitárias terríveis. Todas as mulheres que encontrei perderam familiares, estavam separadas das suas famílias, tinham familiares soterrados nos escombros ou estavam elas próprias feridas ou doentes.

Em desespero diante de mim, pediam desesperadamente um cessar-fogo.

Encontrei-me com pescadores em Khan Younis. Mais de 4.000 pescadores e 14.000 pessoas dependem dessa indústria. Desde o início da guerra, foram destruídos arrastões, redes e outro equipamento e cerca de 67 pescadores foram mortos pelo exército israelita. Apesar disso, em desespero de causa, alguns deles fazem-se ao mar, correndo o risco de serem baleados pela marinha israelita.»

Introdução

Em 21 de novembro de 2024 o juízo de instrução do Tribunal Penal Internacional (TPI, em inglês ICC, em francês CPI) anunciou que tinha confirmado e emitido mandados de captura contra (…) o actual primeiro-ministro e o ministro da Defesa de Israel até há poucas semanas (ver o comunicado de imprensa oficial do TPI), bem como um alto comandante militar do Hamas considerado responsável pela planificação e coordenação do ataque de 7 de outubro de 2023 (ver comunicado de imprensa).

No seu primeiro comunicado referente às autoridades israelitas, os juízes do TPI constatavam que:

«Em relação aos crimes, a Câmara encontrou fundamentos credíveis de que o Sr. Netanyahu, nascido a 21 de outubro de 1949, Primeiro-Ministro de Israel à época da referida conduta, e o Sr. Gallant, nascido a 8 de novembro de 1958, Ministro da Defesa de Israel à época da alegada conduta, têm responsabilidade criminal pelos seguintes crimes e co-autores dos seguintes actos, em conjunto com outros: o crime de guerra da fome como método de guerra; e os crimes contra a humanidade de homicídio, perseguição e outros actos desumanos. A Câmara também encontrou indícios convincentes de que o Sr. Netanyahu e o Sr. Gallant têm responsabilidades criminais como civis superiores pelos crimes de guerra que consistem em dirigir e atacar intencionalmente a população civil.»

No segundo comunicado referente ao chefe militar do Hamas, podemos ler:

«A Câmara encontrou fundamentos para acreditar que o Sr. Deif, nascido em 1965, o mais alto comando da ala militar do Hamas (conhecida como al-Qassam Brigades) ao tempo da alegada conduta, é responsável pelos crimes contra a humanidade de assassínio; exterminação; tortura; e violação e outras formas de violência sexual; bem como pelos crimes de guerra de assassínio, tratamento cruel, tortura; tomada de reféns; atentados contra a dignidade pessoal; e violação e outras formas de violência sexual.

O Tribunal encontrou indícios razoáveis para acreditar que o Sr. Deif é criminalmente responsável pelos crimes supramencionados por (i) ter cometido os actos conjuntamente e através de terceiros (ii) por não ter exercido o controlo que lhe competia sobre as forças sob o seu efectivo comando e controlo.»

Numa entrevista recente realizada pela Magazine+972 (um meio de comunicação digital israelita) lê-se que, para um dos representantes das vítimas palestinas,

«Acusações adicionais não são apenas possíveis – são prováveis. A jurisdição do TPI abrange crimes cometidos desde 2014, período que inclui um vasto leque de violações documentadas, incluindo execuções extrajudiciais, colonatos ilegais e o bloqueio de Gaza. Estes incidentes não são isolados, fazem parte de um padrão mais vasto de opressão sistemática.»

Nas linhas seguintes tentaremos analisar o contexto processual em que estes três mandados de captura foram confirmados por três juízes do TPI, e explicar o alcance desta decisão há tanto tempo aguardada pelas vítimas palestinas e israelitas e seus representantes, mas também por numerosos sectores em todo o mundo e pela comunidade internacional em geral.

Sobre algumas das reacções oficiais

Como é hábito, as mais altas autoridades israelitas não encontraram melhor resposta senão acusar de «antisemitismo» os juízes do TPI que tomaram esta decisão (ver artigo do TimesofIsrael). Estas declarações incendiárias dos dirigentes israelitas não são novidade e podem explicar a origem das ameaças contra dois juízes do TPI, denunciadas pela sua Presidente em 28/11/2024 (ver texto do seu comunicado oficial em francês e em inglês).

Como também se tornou habitual, a mais alta autoridade dos EUA apressou-se a desacreditar e desqualificar a decisão do TPI (ver comunicado oficial da Casa Branca de 21/11/2024).

A Amnistia Internacional declarou-se profundamente satisfeita com esta decisão mas exigiu aos estados membros do Estatuto de Roma de 1998, que criou o TPI, que respeitem todas as suas obrigações (ver comunicado de imprensa). Por seu lado, a ONG israelita PeaceNow emitiu um comunicado a saudar a decisão do TPI (ver texto): trata-se de um texto muito pouco mediatizado na imprensa israelita, tal como outro de outra ONG israelita, a B’Tselem (ver texto). No plano internacional, o comunicado conjunto de peritos em direitos humanos das Nações Unidas datado de 26 de novembro (ver texto) sofreu sorte semelhante: nenhuma difusão na grande imprensa internacional.

A França, por seu lado, acatou («pris acte») esta decisão (ver comunicado de imprensa), não se esquecendo de manifestar no comunicado o seu apoio aos juízes do TPI: apoio esse que 11 ONG francesas consideraram tão frágil … que se apressaram a recordá-lo às autoridades (ver comunicado conjunto publicado no sítio da AURDIP). De facto, esta fragilidade manifestou-se alguns dias depois em declarações oficiais ambíguas e um segundo comunicado oficial (ver texto) da França, o que levou a Federação Internacional dos Direitos Humanos (FIDH) a denunciar que «a França mente» (ver comunicado de 27 de novembro). Leram bem, «a França mente», não foi erro da nossa parte (nem da parte da FIDH) [1]. (…)

No que diz respeito aos EUA, temos de recordar uma proposta do Congresso norte-americano datada de 7/05/2024 que visa sancionar o TPI se este ousar ordenar um inquérito ou um processo contra dirigentes políticos e militares dos aliados dos EUA. Esta proposta, aprovada em junho de 2024 (ver artigo do The Guardian) é justificada no seu preâmbulo «para impor sanções ao Tribunal Penal Internacional lançado em qualquer tipo de inquérito, captura ou busca de qualquer pessoa protegida pelos EUA e seus aliados».

Não se faz nesse texto qualquer menção a Israel, mas é interessante notar que a iniciativa foi apresentada a 7/05/2024, poucas semanas antes de o procurador do TPI ter publicado os mandados de captura contra dois dirigentes israelitas e três dirigentes do Hamas, em 20 de maio. Note-se que a lista de promotores da referida proposta do Congresso americano inclui colaboradores próximos do novo presidente eleito [Donald Trump], propostos desde 5 de novembro para ocuparem postos importantes na sua futura administração.

Consequência ou não da decisão do TPI, foram minuciosamente expostas nos principais quotidianos israelitas informações relativas à irresponsabilidade do seu primeiro-ministro antes do ataque de 7 de outubro (ver por exemplo um artigo do The Times of Israel de 24/11/2024); tal foi relatado na revista digital israelita Magazine+972, numa entrevista cuja leitura se recomenda (ver artigo). A 21 de novembro, um responsável pela «fuga» de documentos altamente secretos ao mais alto nível foi condenado no meio de um escândalo político que envolveu o primeiro-ministro e as suas manobras para dissimular a dita irresponsabilidade (ver artigo do The Times of Israel). No domingo de 24 de novembro as mais altas autoridades de Israel atacaram o jornal israelita Haaretz (ver artigo do Haaretz e do El Pais em Espanha).

O comunicado de uma reunião dos membros do G7 em Itália, publicado a 26/11/2024, também merece menção. Nele se lê que os membros do G7 não conseguiram chegar a acordo senão para indicar – omitindo qualquer referência ao TPI – que:

«In exercising its right to defend itself, Israel must fully comply with its obligations under international law in all circumstances, including International Humanitarian Law. We reiterate our commitment to International Humanitarian Law and will comply with our respective obligations»

(…)

Breve contextualização

Os mandados de captura emitidos pelo procurador do TPI contra três dirigentes do Hamas e duas altas autoridades israelitas aguardavam pacientemente desde 20/05/2024, data do seu anúncio oficial (ver em inglês e em francês). A 20 de maio os EUA sentiram-se na obrigação de exprimir a sua firme oposição ao anúncio do procurador do TPI (ver comunicado de imprensa do Departamento de Estado).

(…) Contrariamente a outras regiões do mundo, vários estados confirmaram a América Latina como bastião da justiça penal internacional e da luta contra a impunidade crescente, nomeadamente no que se refere aos abusos de todo o tipo cometidos por Israel no território palestiniano ocupado.

Convém notar que a opinião jurídica apresentada pelo Brasil ao TPI e pela Colômbia foram acompanhadas por um parecer jurídico conjunto do Chile e do México, tal como o que foi elaborado pela África do Sul, Bangladeche, Bolívia, Comores e Djibuti (ver texto conjunto). Duas organizações internacionais também enviaram aos juízes do TPI os seus pareceres: a Organização para a Cooperação Islâmica (ver documento) e a Liga dos Estados Árabes (ver documento). Quanto aos estados situados no continente europeu, há que referir em particular as opiniões jurídicas da Espanha (ver documento), da Irlanda (ver documento) e da Noruega (ver documento).

Estes pareceres jurídicos vão todos no mesmo sentido do que foi apresentado pela Palestina: a justiça penal internacional está perfeitamente apta a ser aplicada no território palestiniano ocupado, sem qualquer limitação, e seria mais que tempo de ela se materializar na emissão dos mandados de captura solicitados desde 20/05/2024.

(…) Note-se que em finais de maio/2024 os jornalistas de investigação da Magazine+972 israelita publicaram um longo relatório sobre um sistema de escuta que permitiu aos serviços secretos israelitas vigiar os computadores e o conjunto do pessoal do TPI; e isto durava há vários anos (ver artigo intitulado «Surveillance and interference: Israel’s covert war on ICC exposed»). (…)

«According to the sources, a central goal of Israel’s surveillance operation was to enable the military to “open investigations retroactively” into cases of violence against Palestinians that reach the prosecutor’s office in The Hague. In doing so, Israel aimed to exploit the “principle of complementarity,” which asserts that a case is inadmissible before the ICC if it is already being thoroughly investigated by a state with jurisdiction over it.»

Aí está uma maneira habilidosa de antecipar os inquéritos em curso dentro do TPI e elaborar antecipadamente os seus próprios inquéritos retroactivamente, a fim de invocar a seguir o princípio da complementaridade.

A justiça penal internacional: um verdadeiro desafio para Israel e seus aliados

As escutas permanentes de que foi alvo o TPI desde há anos explicam-se pelo facto de o TPI constituir um desafio para Israel: algumas das indiscrições diplomáticas do passado (muito pouco conhecidas) permitem-nos confirmá-lo.

Assim, em novembro de 2012, quando a Assembleia Geral das Nações Unidas concedeu à Palestina o estatuto de «Estado observador não membro» (numa votação em que apenas 9 países votaram contra, a saber: Canadá, EUA, Israel, Ilhas Marshall, Nauru, Palau, Panamá e República Checa), o Reino Unido optou por abster-se. No entanto, o Reino Unido tinha anunciado que votaria a favor, mas apenas se a Palestina desse garantias de não recorrer ao TPI:

«The U.K. suggested that it might vote “yes” if the Palestinian Authority offered assurances that it wouldn’t pursue charges in the International Criminal Court, but apparently came away unsatisfied» (ver comunicado de imprensa de novembro de 2012 no The Washington Post, um medium onde os jornalistas estão geralmente bem informados).»

Esta profunda inquietação com a justiça penal internacional faz lembrar outra confidência diplomática anterior à de 2012, tornada pública no portal do Wikileaks: a propósito da ofensiva militar israelita mortífera em Gaza em 2009 [2],pode ler-se, aquando de uma conversa com os diplomatas americanos (ver o telegrama de 23/02/2010 da embaixada dos EUA, à época em Telavive), a seguinte confidência do coronel Liron Libman em 2010:

«Libman noted that the ICC was the most dangerous issue for Israel and wondered whether the U.S. could simply state publicly its position that the ICC has no jurisdiction over Israel regarding the Gaza operation.»

(…) Mais recentemente (2020), há que relembrar que num comunicado de imprensa de março de 2020 (ver texto completo), a Amnistia Internacional alertou a opinião pública para a manobra de um pequeno número de estados, sublinhando uma outra pressão, bem mais abafada, desta vez por iniciativa do Canadá:

«We are also deeply concerned by news reports that one state party, namely Canada, has “reminded the Court” of its provision of budgetary resources in a letter to the ICC concerning its jurisdiction over the “situation in Palestine”, which appears to be a threat to withdraw financial support.»

(…) Por fim, recordemos que a entrega, pela Palestina, em 21/01/2009, de uma declaração de aceitação da jurisdição do TPI foi considerada pelo serviço jurídico do exército israelita como uma nova forma de terrorismo, desconhecida por muitos especialistas nesse domínio: o «terrorismo legal». [3] (…)

A insensatez da chamada «guerra» de Israel em Gaza

O último relatório das Nações Unidas sobre a situação em Gaza (26/11/2024) descreve em pormenor o drama indizível que se vive no território palestino de Gaza e regista 44.249 mortos. [4] O relatório anterior (19/11/2024) dava conta da insensatez da acção militar israelita em Gaza, que já tinha feito quase 44.000 mortos e mais de 100.000 feridos:

«Between the afternoons of 12 and 19 November, according to the Ministry of Health (MoH) in Gaza, 307 Palestinians were killed and 932 were injured. Between 7 October 2023 and 19 November 2024, at least 43,972 Palestinians were killed and 104,008 were injured, according to MoH in Gaza.

Between the afternoons of 12 and 19 November, three Israeli soldiers were killed in Gaza, according to the Israeli military. Between 7 October 2023 and 19 November 2024, according to the Israeli military and official Israeli sources cited in the media, more than 1,576 Israelis and foreign nationals were killed, the majority on 7 October 2023 and its immediate aftermath. The figure includes 376 soldiers killed in Gaza or along the border in Israel since the beginning of the ground operation. In addition, 2,440 Israeli soldiers were reported injured since the beginning of the ground operation.»

Note-se que o balanço de mais de 44.200 mortos em Gaza é, segundo alguns especialistas, muito inferior à realidade. Segundo um artigo intitulado «Guerras na Ucrânia e em Israel, (finalmente) vias de saída em perspectiva?», publicado por um especialista militar frequentemente convidado pelos media franceses, o número real poderia ser de cerca de 100.000 mortos em Gaza desde 7/10/2023:

«a avaliação dos desgastes dos bombardeamentos mmostra – mesmo numa hipótese por baixo – que o balanço se situa em cerca de 100.000 mortos e portanto 350.000 feridos (o rácio de 3,5 é a “norma”), ou seja, fazendo as contas “por baixo”, 20 % da população palestiniana de Gaza (450.000 / população inicial de 3,5 milhões) foi ferida ou morta nesta guerra desmesurada.»

(…) o assassínio deliberado por Israel de jornalistas, operadores de câmara e assistentes dos órgãos de imprensa incitou uma centena de organizações de protecção dos jornalistas a erguer a voz e exigir à União Europeia (UE) que aja (ver carta colectiva de 22/08/2024). (…)

Num relatório (22/11/2024) do Comité para a Protecção dos Jornalistas (CPL), o número de jornalistas mortos em Gaza pelas forças militares israelitas desde 7/10/2023 eleva-se a 137 profissionais do mundo da informação. (…)

[ver também relatório (em várias línguas) A/79/384, redigido pela relatora especial e apresentado à Assembleia Geral das Nações Unidas em outubro de 2024, com o título «O Genocídio como Apagamento Colonial». Em 8/11/2024 as Nações Unidas publicaram novo relatório sobre o período de 1/11/2023 a 30/04/2024, onde se pode ler:]

«The monitoring and verification of grave violations remained extremely challenging, including owing to access constraints, a high level of insecurity, and threats and direct attacks also on United Nations personnel, monitors and humanitarian actors. Nevertheless, verification work continued, with the number of killings verified by OHCHR by 2 September 2024 standing at 8,119 Palestinians in Gaza, including 2,036 women and 3,588 children (1,865 boys and 1,723 girls). Of these verified figures, 7,607 were killed in residential buildings or similar housing, out of which 44 per cent were children, 26 per cent women and 30 per cent men.»

(…)

Fotografia de um bombardeamento israelita em em Al-Mawasi, em Gaza, efectuado em 13/11/2024: é visível a profundidade do impacto no solo, em consequência do tipo de bombas extremamente poderosas utilizadas deliberadamente por Israel para bombardear os acampamentos improvisados onde se concentra grande quantidade de refugiados e deslocados de Gaza. Fotografia extraída do artigo de imprensa «I Don’t Care Who’s the President There. I Just Want May Kids Survive in Gaza», Magazine+972 (Israel), 14/11/2024
(…)

Algumas entrevistas recomendadas

Para melhor compreender o absurdo da estratégia israelita em Gaza, em flagrante violação (documentada) das regras mais elementares da ordem jurídica internacional e cujo desrespeito deveria ser, do ponto de vista estritamente jurídico, punido pela comunidade internacional no seu conjunto, vale a pena referir esta entrevista com um dos grandes especialistas franceses do Próximo Oriente (…) [ver também, do mesmo autor, Le livre noir de Gaza]. Igualmente recomendamos uma outra entrevista.

Para alcançar a subtileza do jogo a que se entregam as autoridades israelitas desde 7/11/2023 para instrumentalizar o traumatismo [que os acontecimentos dessa data] representam para a sociedade israelita, com grande sucesso em certos meios políticos em diversas partes do mundo, recomendamos esta entrevista recente do Democracy Now, de outubro de 2024, com um especialista americano da sociedade israelita: «Naomi Klein: Israel has weaponised Oct 7th trauma to justify its genocide in Gaza».

Sugerimos ainda a entrevista (disponível no YouTube) do Democracy Now de fins de outubro de 2024 com a relatora especial das Nações Unidas sobre o alcance do seu último relatório [já referido mais acima] (…)

Por fim acrescentamos uma entrevista realizada na Bélgica sobre a decisão do TPI, feita à referida relatora especial das Nações Unidas em 21 de novembro, e uma conferência recente organizada pelo Islamic Relief Canada.

Mais um passo em frente para as vítimas palestinas e para a justiça penal internacional

Desde 21/11/2024 a comunidade internacional conta com um segundo passo capital de importância histórica para as vítimas palestinas e, em geral, para a justiça penal internacional; bem como para a luta contra a impunidade a que as autoridades israelitas se habituaram há longos anos, amparados na protecção incondicional do seu aliado note-americano.

Em fevereiro de 2021 já tinha sido dado um primeiro passo, também ele capital, graças a uma decisão pouco divulgada e comentada do TPI, na qual o juízo preliminar do TPI concluía (p. 60) estar perfeitamente habilitado a examinar a situação no conjunto do território palestiniano, sem qualquer excepção (…). [5]

Escusado seria dizer que, mal foi pronunciada, esta decisão do TPI deu aso a que os EUA manifestassem a sua firme oposição (ver comunicado do Departamento de Estado, 5/02/2021). Quando o inquérito foi formalmente aberto pelo gabinete do procurador do TPI algumas semanas mais tarde, em março de 2021, os EUA sentiram-se novamente obrigados a exprimir alto e bom som a sua recusa categórica (ver comunicado do Departamento de Estado, 3/03/2021).

Note-se que o anúncio oficial do TPI, datado de 21/11/2024 e relativo aos mandados de captura, foi precedido 24 horas antes pela enésima tentativa dos EUA no Conselho de Segurança para bloquear com o seu veto uma decisão sobre Gaza (…) Foi o quarto veto solitário dos EUA desde 7/10/2023 no Conselho de Segurança. Foi também o primeiro veto pós-eleitoral nesse mês de novembro de 2024, que infirma a ideia de que, «libertada» das condicionantes eleitorais vigentes até 5 de novembro, a actual administração [Joe Biden] norte-americana poderia finalmente distanciar-se de Israel e deixar passar uma resolução no seio do Conselho de Segurança com vista a travar a lógica de destruição insensata em Gaza, bem como no Líbano desde meados de setembro (…)

Como já recordámos no início destas reflexões, foi pela voz da sua mais alta autoridade que os EUA correram a desqualificar a decisão do TPI: ver comunicado oficial do seu presidente, em 21/11/2024.

Independentemente das opiniões dos círculos políticos norte-americanos sobre o TPI, e da sua compreensão bastante peculiar da ordem jurídica internacional, os mandados de captura emitidos pelo TPI a 21 de novembro obrigam doravante os 125 Estados membros do Estatuto de Roma (ver o registo oficial das assinaturas e ratificações) a entregar os dois dirigentes israelitas se estes se encontrarem no seu território, ou em aviões, navios ou outros espaços sujeitos à sua jurisdição: isto tornará muito mais difícil a sua deslocação ao estrangeiro.

Ao mesmo tempo, esta decisão da Secção de Instrução lança um longo processo interno ao TPI para assegurar o julgamento futuro dos dois dirigentes israelitas e do chefe militar do Hamas.

A nível diplomático, a animada troca de palavras entre os representantes de Israel e da Palestina na sessão do Conselho de Segurança de 25 de novembro de 2024 (ver vídeo) mostra o embaraço e a grande dificuldade que a delegação israelita teve de enfrentar os seus pares no Conselho de Segurança, desde que os mandados de detenção foram confirmados pelo TPI.

Em jeito de conclusão: a clareza da mensagem enviada pelo TPI aos outros estados e juízes
Estes madados de captura enviam um primeiro sinal claro a diversos estados e sectores políticos que consideram há já algum tempo que a justiça penal internacional é parcial e tendenciosa, em particular os que se situam no continente africano. Recordemos que o primeiro estado a ratificar o Estatuto de Roma foi o Senegal (fevereiro de 1999) e que foi a ratificação número 60 da República Democrática do Congo que permitiu a sua entrada em vigor (abril de 2002). Tendo sido seguidos por vários outros estados da região, o entusiasmo inicial com a justiça penal internacional acabaria por dar lugar a um profundo mal-estar em África, [6] lastimando-se de uma atenção do TPI mais centrada em África e menos noutros lugares, ao ponto de levar vários estados africanos a denunciarem o Estatuto de Roma: o Burundi em outubro de 2016 (ver comunicado de imprensa), a Gâmbia em novembro de 2016 (ver comunicado) e a África do Sul. Esta última, na sua decisão de outubro de 2016 (ver comunicado) revogou a sua decisão meses mais tarde, em março de 2017 (ver comunicado).

Também do lado da Rússia e seus aliados vieram críticas ao TPI, nomeadamente desde março de 2023, quando o TPI emitiu um mandado de captura contra o seu presidente e outra funcionária russa encarregada de enviar para a Rússia as crianças capturadas na Ucrânia (ver comunicado oficial do TPI de 17/03/2023).

Por outro lado, os mandados de captura emitidos em 21/11/2024 enviam uma mensagem clara aos estados que, por esta ou aquela razão, continuam a negociar acordos bilaterais com as autoridades israelitas actuais e se aventuram a anunciá-los alto e bom som em plena cimeira mundial: na recente COP29 (cimeira sobre o clima em Baku, no Azerbaijão), a Costa Rica anunciou a sua surpreendente assinatura de um protocolo de acordo com Israel em matéria ambiental (ver comunicado oficial da Costa Rica com data de 13/11/2024, e comunicado oficial de Israel).

Assim que a notícia foi divulgada, as organizações ambientais internacionais atribuíram à Costa Rica o prémio «Fóssil do Dia»: ver o artigo publicado no semanário costa-riquenho Ojoalclima, cuja última parte sublinha o (súbito) silêncio envergonhado das autoridades costa-riquenhas sobre o assunto. (…)

Por último, é possível que os juízes nacionais hesitantes em agir judicialmente encontrem uma razão suplementar, que não constava do processo até 20 de novembro passado, para se pronunciarem sobre os processos que lhes foram apresentados a favor das vítimas palestinianas, em conformidade com a obrigação geral dos Estados de prevenir o crime de genocídio e os crimes de guerra. É importante lembrar que numerosos soldados israelitas que exibem nas redes sociais os seus «troféus» e crimes de guerra em Gaza têm outro passaporte além do passaporte israelita. [7] (…)


Artigo original integral: «Gaza / Israël: quelques réflexions concernant les mandats d’arrêt délivrés récemment par la Cour Pénale Internationale (CPI)», publicado em Derecho Internacional, 21/11/2024. Traduzido e editado por Rui Viana Pereira para o CADPP - Pela anulação das dívidas ilegítimas


Notas

[1] A jurisprudência dos tribunais preliminares do TPI é bastante clara no que diz respeito às imunidades dos chefes de estado (e impõe-se um webinar discreto com o departamento jurídico do Quai d’Orsay [a procuradoria francesa], tão breve quanto possível…). A propósito da África do Sul e da passagem pelo seu território do chefe de estado sudanês (ver decisão de 6/07/2017) foi expresso na página 44 que «The Chamber concludes that, by not arresting Omar Al-Bashir while he was on its territory between 13 and 15 June 2015, South Africa failed to comply with the Court’s request for the arrest and surrender of Omar Al-Bashir contrary to the provisions of the Statute, thereby preventing the Court from exercising its functions and powers under the Statute in connection with the criminal proceedings instituted against Omar Al-Bashir». A propósito da Jordânia e da passagem pelo seu território do chefe de estado sudanês, o TPI teve ocasião de indicar (ver decisão de dezembro de 2017, p. 17) que «the immunities of Omar Al-Bashir as Head of State, under customary international law, do not bar States Parties to the Rome Statute from executing the Court’s request of his arrest and surrender for crimes under the jurisdiction of the Court allegedly committed in Darfur within the parameters of the Security Council referral». A propósito da Mongólia e da passagem pelo seu território de Vladimir Putin, em outubro de 2024 (ver decisão) a secção de instrução do TPI também esclareceu que: «27. Consequently, article 27 of the Statute has the effect of removing any and all international law immunities of officials, including Heads of State, and binds to that effect States Parties, as well as States that have accepted the Court’s jurisdiction, not to recognise any kind of immunity or apply special procedural rules that they may attach to any persons. Whether these persons are nationals of States Parties or nationals of non-States Parties is irrelevant. The Statute, in any case, does not make any distinction in this regard. States Parties and States that have accepted the Court’s jurisdiction have therefore the obligation to arrest and surrender any person for whom the Court has issued a warrant of arrest, irrespective of their official capacity and nationality. The obligation to arrest and surrender is one of the means to ‘give effect’ to the obligation to cooperate with the Court in the execution of its mandate». Façamos ainda menção a esta entrevista muito bem conduzida e intitulada: «As declarações da França sobre a imunidade de Natanjahu são falsas: Clémence Bectarte», de 29/11/2024.

[2] A ofensiva militar de Israel em Gaza entre 8/12/2008 e 17/01/2009 (ver hiperlink para o relatório das Nações Unidas) saldou em 13 vítimas israelitas contra mais de 1400 palestinianos de Gaza mortos: ver relatório das «baixas» nos parágrafos 352-364 do relatório.

[3] A ofensiva militar de Israel em Gaza entre 8/12/2008 e 17/01/2009 (ver hiperlink para o relatório das Nações Unidas) saldou em 13 vítimas israelitas contra mais de 1400 palestinianos de Gaza mortos: ver relatório das «baixas» nos parágrafos 352-364 do relatório.

[4] Nota do Tradutor: Os números das baixas em Gaza têm sido fornecidos pelo Ministério da Saúde de Gaza (MSG), entidade considerada fiável. No entanto, é preciso saber que um dos aspectos que confere fiabilidade aos relatórios do MSG é o facto de ele apenas contabilizar os mortos que foram identificados. Todos aqueles que foi impossível identificar, e sobretudo os que permanecem soterrados nos escombros, segundo algumas estimativas, mais do que duplicariam o número de vítimas. Especulações à parte, só muito depois de terminado o conflito será possível dar conta e identificar todos os mortos e desaparecidos.

[5] Cf. BOEGLIN N., «Palestine / Cour Pénale Internationale (CPI): brève mise en perspective concernant la décision récente de la Chambre Préliminaire», Le Monde du Droit, 24/02/2021. Texto completo disponível aqui, igualmente publicado em versão mais longa no Club de Media Part, 17/03/2021. Cf. também DUBUISSON F., «Le jugement de la Chambre préliminaire de la CPI du 5 février 2021 statuant sur la compétence territoriale de la Cour en Palestine», Le Club des Juristes, 2/03/2021.

[6] Cf. NYABEYEU TCHOUKEU L. «L’Afrique et la Cour pénale internationale», in Recherches Internationales, n°105, 2015, pp. 153-168. Disponível aqui.

[7] No caso do soldado israelita com passaporte francês acusado de actos de tortura, ver esta nota publicada no Le Monde, abril/2024. No caso dos soldados belgo-israelitas, um deles franco-atirador, esta nota de JusticeInfo de outubro/2024 expõe em pormenor os dois casos presentes aos tribunais belgas. Aí podemos ler que «É preciso respeitar o direito Internacional para forçar um cessar-fogo e pôr fim à impunidade dos crimes cometidos. A justiça belga deve fazer o trabalho que lhe compete, paralelamente à justiça internacional». O Reino Unido, por seu lado, conta com cerca de uma centena de cidadãos seus nas fileiras do exército israelita enviado para Gaza (ver comunicado de imprensa). Seria bom que cada estado se inspirasse no Reino Unido e identificasse os seus cidadãos combatentes em Gaza, a fim de procurar saber se eles são (ou não) responsáveis por crimes de guerra.