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Reabilita primeiro. Ganha depois

A quem serão acessíveis estas novas casas de uma Lisboa “reabilitada”?, questiona um grupo de arquitetos. Por Manuel Bivar, Márcia Saldanha, Ricardo Lopes e Sebastião Santos.
Imóveis reabilitados ao abrigo do programa da CML estão à venda em site de imobiliário de luxo.

Reabilitar o património municipal devoluto, melhorar a gestão do parque habitacional, apoiar os pequenos e médios investidores, diversificar o mercado de reabilitação urbana, dinamizar o sector da construção, aumentar a oferta de habitação em Lisboa. Estas são as propostas do programa “Reabilita Primeiro Paga Depois”, com o qual a Câmara Municipal de Lisboa (CML) ganhou o prémio de “Município do Ano na Região de Lisboa de 2016”, promovido pela Universidade do Minho para distinguir as “boas práticas dos municípios portugueses”.

No âmbito deste programa, entre 2013 e 2016, a CML colocou à venda mais de uma centena de edifícios devolutos. Os compradores tinham entre 21 e 28 meses para reabilitar o imóvel e o pagamento teria de ser feito quando a reabilitação estivesse concluída.  No ano de arranque do programa, quando confrontada sobre a venda da Vila Rosário, vila operária da Penha de França, entretanto transformada em condomínio fechado, a então vereadora da Habitação Helena Roseta defendeu-se das críticas afirmando que os compradores dos prédios não seriam “apenas empresas, mas, em número aproximadamente igual, pessoas singulares que adquirem estes imóveis para habitação do respetivo agregado familiar”. Em 2013, quando feitas estas afirmações, tinham já sido realizadas três hastas públicas. Dos 46 prédios vendidos, 25 foram comprados por empresas e 21 por particulares. Só um particular, comprou três prédios. No final do programa, dos 102 prédios colocados em hasta pública pela CML, 6 não foram vendidos, 59 foram comprados por empresas e 37 por particulares. Os dados referem-se às vendas realizadas entre a 1ª e a 7ª hasta pública, já que relativamente à 8ª, que decorreu em Junho de 2016, os nomes dos compradores não chegaram ainda a ser divulgados no site da CML. De resto, parece pouco provável que os particulares que compraram edifícios o tenham feito para habitação própria. Um programa desenhado para vender prédios inteiros não parece ter tido como destinatários famílias em busca de habitação própria. Tendo em conta que o rendimento médio português, depois de descontados impostos, ronda os 846 euros mensais, será difícil imaginar que estas tenham capacidade para comprar um imóvel com vários fogos, quanto mais reabilitá-lo.  

A acompanhar o programa “Reabilita primeiro paga depois”, parece estar o programa de reabilitação de espaço público “Uma praça em cada bairro” que o presidente da CML, Fernando Medina considerou uma forma de não “apenas embelezar, mas sim devolver a cidade às pessoas e assegurar um direito à cidadania”. Decidimos apurar o resultado destes programas numa das freguesias do centro de Lisboa onde mais se tem falado em gentrificação, São Vicente. No âmbito do programa “Reabilita Primeiro Paga Depois” foram vendidos nesta freguesia 16 edifícios e ao abrigo do programa de reabilitação “Uma praça em cada bairro”, o Largo da Graça, considerado o coração da freguesia, sofreu obras de reabilitação, empreitada esta aprovada em 9 de setembro de 2015 e concluída recentemente. Os edifícios vendidos pela CML em São Vicente situam-se, na sua maioria, junto a este largo. Conseguimos já apurar o destino de 10 dos 16 edifícios alienados na freguesia de S. Vicente pela CML: Metade estão (ou serão brevemente) colocados no mercado de alojamento de curta duração, conforme publicitado em diversos sites de alojamento local. Nenhum dos fogos é destinado a arrendamento de longa duração. Na outra metade, apartamentos com áreas desde 30m2 a 90 m2 estão disponíveis para venda. Os únicos com os valores disponíveis nas plataformas online à data oscilam entre os 300 mil e 500 mil euros. Os valores de venda atuais de apenas um ou dois apartamentos, nos agora chamados “empreendimentos”, rondam o valor total de alienação pela CML dos mesmos edifícios inteiros. Na Rua da Graça, o “Graça 67”, com 13 apartamentos e duas lojas, foi vendido pela CML por 703 mil euros. O valor de venda do edifício depois da reabilitação ronda os 5 milhões de euros. Já o empreendimento “Graça 135”, vendido em hasta pública por cerca de 1 milhão de euros, renderá agora cerca de 6 milhões de euros. O edifício Rua Josefa de Óbidos 32, vendido pela CML, por 203 mil e quinhentos euros tem, atualmente, uma única fracção ainda disponível para venda por 327 mil euros, que excede o valor da venda em hasta pública do edifício inteiro. Os restantes pisos do edifício funcionam como alojamento turístico. Ainda a assinalar o edifício da Rua da Graça 13-15, colocado à venda no mercado no estado em que foi comprado à CML, por 1 milhão de euros (dobro do preço pelo qual foi adquirido). Este já se encontra reservado, sem que tenham sido quaisquer obras realizadas, apenas com o projeto aprovado na Câmara Municipal de Lisboa – o que contraria expressamente as regras do programa que vinculam o comprador à realização das empreitadas de reabilitação.

Resta-nos questionar a quem serão acessíveis estas novas casas de uma Lisboa “reabilitada”. A atual gestão camarária, que termina agora seu mandato, tem conseguido de forma exemplar, acrescentar valor económico à cidade e esse parece mesmo ter sido o seu principal objetivo. Os programas já referidos, “Reabilita primeiro paga depois” e “Uma praça em cada bairro” parecem ter contribuído para  alavancar o mercado imobiliário ou estimular o mercado de arrendamento de curta duração, elevando os preços para níveis incomportáveis para a maioria dos portugueses. Acrescentando a estes programas outros de âmbito nacional, tais como os 'Vistos Gold' e o 'Estatuto de residente não habitual', percebemos que desta conjuntura política, resultou o aumento de habitação e talvez mesmo o acesso à cidade, talvez não seja é para o comum português que simplesmente queira viver ou continuar a viver na capital.  

 


Artigo de Manuel Bívar, Márcia Saldanha, Ricardo Lopes e Sebastião Santos (arquitetos)

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