A coordenadora do Bloco de Esquerda, nesta sua intervenção no debate do Orçamento do Estado para 2020, questiona o argumento governamental de que esta proposta de OE, “é o seu melhor orçamento de sempre”. “Só o primeiro (2016) - eliminando cortes - recuperou poder de compra”, afirma.
Catarina Martins destaca também que na proposta do governo há uma novidade: “afirmar claramente que a timidez do investimento serve a estratégia de excedente como forma de pagar a dívida pública. E esse é um mau sinal”. E aponta ainda: “Para o Bloco de Esquerda as prioridades são claras: aumentar os rendimentos e quem vive do seu trabalho e aumentar o investimento”.
"Prioridades do Bloco são claras: aumentar rendimentos de quem vive do seu trabalho"
(intervenção integral de Catarina Martins)
O governo tem um novo mantra: fez o seu melhor orçamento de sempre. Façamos esse debate para além do slogan. Qual é melhor orçamento? Aquele que eliminou cortes nas pensões e salários ou este que os atualiza abaixo da inflação esperada? Os salários e pensões são agora nominalmente mais altos, claro. Mas só o primeiro - eliminando cortes - recuperou poder de compra.
Um orçamento do Estado vale pela resposta que em cada momento dá aos problemas do país, pela diferença que faz na vida das pessoas. E é por isso que a proposta de Orçamento do Estado que o governo apresenta hoje não é melhor do que os anteriores orçamentos. É sua herdeira, e ainda bem, mas nunca devemos viver só da herança.
Não há neste Orçamento cortes, são aplicados mecanismos de atualização mínima automática de pensões, prestações sociais e escalões de IRS, repuseram-se apoios básicos para combater a pobreza, os manuais escolares gratuitos garantem a universalidade da escolaridade obrigatória, acabou-se com a subversão de transportes coletivos mais caros que o carro particular. Este orçamento depende de uma economia que, com as suas dificuldades, funciona e não de receitas extraordinárias vindas de privatizações ruinosas que pagaram despesas de curto prazo e hipotecaram o futuro do país. A segurança social estabilizou e reforçou-se com a criação de emprego.
É pouco? Não, foi muito. E está feito.
Esta recuperação do país foi das decisões mais importantes dos últimos anos e o Bloco orgulha-se de ter participado neste caminho. Foi um caminho que deixou a direita sem programa e sem proposta até hoje, como se viu nas eleições, como se vê neste debate. Mas mais importante: foi o caminho que recuperou o país, respondendo pelas pessoas.
O que está feito permite hoje construir um caminho mais sólido. Ainda bem. Mas confundir o que se fez com que é preciso fazer, é perigoso.
Estamos num novo ciclo. O ciclo marcado dolorosamente pela crise da habitação. O ciclo onde a resposta à emergência climática tem de ser efetiva. O ciclo em que os serviços públicos não podem esperar mais, na saúde ou nos transportes. O ciclo onde responder por quem trabalha exige a coragem das grandes mudanças de justiça social e económica: direitos do trabalho, erradicação da precariedade, reforço do sistema de pensões.
O que falta a esta proposta de Orçamento não é apenas a disponibilidade negocial, que o governo só mostrou muito tardiamente. Falta-lhe resposta e estratégia para os problemas de hoje. Não chega viver do que já foi feito nem celebrar o facto de não o desfazermos.
O descongelamento de carreiras terá efeitos em 2020? Seguramente. Já estava decidido. Os escalões de IRS criados na anterior legislatura far-se-ão sentir? Claro, são decisões tomadas. Há manuais escolares gratuitos? Novidade seria se deixasse de haver. A atualização do indexante de Apoios Sociais tem efeito? Bem, decidimos isso há muito tempo. Se assim não fosse, até os mais pobres perdiam com a inflação. Mas, na verdade, somando todas estas medidas de recuperação de rendimentos - que na sua esmagadora maioria mais não são que aplicação de decisões passadas -, quem aqui vive e faz contas à vida para chegar ao fim do mês não irá ter o aumento de que precisa e que é seu direito.
O mesmo no investimento. Sobe 28%, certo. Mas 28% de pouco não será nunca grande coisa. E ao olhar para o investimento, mais uma vez, vemos o que vem do passado - e que não poderia deixar de lá estar - mas não vemos o que o futuro nos exige. Das obras em escolas à compra de comboios, já estava tudo decidido e apenas aguarda execução. Na habitação há verba para o 1º direito - a resposta a quem precisa de realojamento urgente e que foi identificado na anterior legislatura - mas não há investimento capaz de um mercado de arrendamento público que combata a especulação e garanta o direito à habitação. Na saúde, na proposta inicial do governo, combate-se a suborçamentação mas não se aumenta a despesa face ao executado.
Na verdade há na proposta de Orçamento do Estado uma novidade: afirmar claramente que a timidez do investimento serve a estratégia de excedente como forma de pagar a dívida pública. E esse é um mau sinal.
É um mau sinal não apenas porque limita o investimento e portanto a economia. É um mau sinal porque é um recuo político explícito face ao caminho dos últimos 4 anos. Afirmamos sempre que só o crescimento económico podia proteger o país. Assim se aumentaram salários e pensões contra as pressões de Bruxelas. E provámos que esse caminho era certo.
Quando o governo aparece centrado no objetivo do défice e sem propor um outro horizonte compreensível para a sua estratégia orçamental, planta a dúvida legítima: terá a recuperação de rendimentos dos últimos 4 anos deixado, também o PS, sem programa?
Para o Bloco de Esquerda as prioridades são claras: aumentar os rendimentos e quem vive do seu trabalho e aumentar o investimento.
Afastada pelo governo a alteração da legislação laboral, a medida orçamental transversal capaz de recuperação do poder de compra de quem vive do seu trabalho é a descida do IVA da energia. Menos despesa na tarifa da luz é mais salário e mais pensão. Num dos países com a energia mais cara da Europa, é também uma medida de justiça. Bem pode dizer o governo que a descida da conta da luz contraria o objetivo de resposta à emergência climática. Nem é verdade, porque a implementação da tarifa social já provou que mais acesso não é mais consumo, nem teria nunca sentido um programa de combate para a emergência climática que discrimina pela carteira. A resposta para a neutralidade carbónica está sim em mais e melhores transportes públicos, investimento na eficiência energética, proteção do território. E o Bloco não desistirá de nenhum destes objetivos. Como não desiste de recuperar os serviços públicos, o Serviço Nacional de Saúde, como a Escola Pública, de tornar a Justiça mais capaz, de investir na cultura e ciência, de concretizar o Estatuto dos Cuidadores Informais, de construir caminhos de dignidade contra a exclusão, de combater o privilégio e as desigualdades, de responder à crise da habitação.
Não fechamos nenhuma porta a negociações. Assumimos toda a responsabilidade e não esperamos facilidades. Ninguém espere também que nos esqueçamos do nosso mandato.”