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No filme clássico de culto de 1973, The Harder They Come, de Perry Henzell, o aspirante a cantor Ivan Martin aceita relutantemente uma proposta degradante de 20 dólares para o seu single de sucesso por parte do patrão da mais poderosa editora musical de Kingston, Hilton, que lhe responde infamemente que é ele que faz os êxitos, não o público. Ivan tenta romper com o sistema de injustiça e suborno sem sucesso. Acaba por ser forçado à atividade criminosa para pagar as suas contas, enquanto o seu disco chega ao top das tabelas musicais na Jamaica.
The Harder They Come serve como representação de uma indústria construída sobre as fundações da exploração. Com a chegada da Web 2.0, os músicos e as editoras independentes passaram a conseguir lançar música para uma audiência ligada globalmente a custos marginais muito baixos, alguns argumentaram então que a indústria seria democratizada. Todos os artistas conseguiriam ter uma boa vida, enquanto as editoras independentes poderiam competir de forma mais igualitária com as grandes companhias discográficas.
Contudo, como a maior parte das visões das utopias digitais, isto acabou por ficar muito longe da realidade. A fatia de marcado das grandes empresas tecnológicas na indústria musical aumentou imenso nos últimos anos – o streaming substituiu a música gravada como maior fonte de rendimento da indústria – e as plataformas digitais exercem ainda mais poder predatório.
Durante a pandemia, os artistas apoiaram-se amplamente nas plataformas digitais de streaming para ganharam o seu sustento devido aos impedimentos de fazerem concertos e ao inadequado apoio estatal (no Reino Unido, mais de um quarto das pessoas que trabalham na indústria musical não preenchiam os requisitos para aceder ao Self-Employed Income Support Scheme). Como os músicos dependiam dos espetáculos ao vivo, as questões estruturais do streaming passaram a ficar então sob os holofotes, com os artistas forçados a aceitar pagamentos de royalties numa espiral descendente como sua única fonte de rendimento
O boom do streaming durante os confinamentos consolidou ainda mais a posição das principais plataformas de streaming, levando a uma maior desigualdade e a uma remuneração injusta. As grandes editoras usam a sua vantagem estrutural para obter grandes lucros às custas de editoras independentes e músicos, enquanto a gamificação do sucesso tenta virar músicos atomizados uns contra os outros. Como escreve a crítica cultural Liz Pelly no Baffler, o Spotify tem um “modelo semelhante ao Uber para artistas independentes”.
O bem mais lucrativo do Spotify é o seu algoritmo, que parece mercantilizar os gostos do utilizador com sugestões e listas de reprodução preparadas à medida. Utilizando vigilância, a plataforma procura rivalizar com o Facebook e o Google enquanto espaço para anúncios. Através de contratos secretos, desconhecidos do público, o algoritmo e as listas de reprodução guiam as pessoas para ouvir os artistas representados pelas grandes editoras, assemelhando-se ao sistema de suborno exclusor que vimos em The Harder They Come. As editoras pagam, ou aceitam direitos de autor mais baixos, em troca têm exposição aumentada do Spotify através das listas de reprodução preparadas e dos seu algoritmo, tal como esquema da Spotify “paga para tocar”.
Apenas artistas que são subservientes à indústria cultural tendem a ter sucesso com o streaming. 1% dos artistas contabilizam entre 78-80% dos streams e Cherie Hu conclui que apenas 0,4% dos artistas do Reino Unido (1.723) ganha a vida através do streaming e a maioria tem contrato com as grandes editoras.
Associados aos cortes devastadores nos financiamentos à música, cada vez mais artistas são provenientes de meios privilegiados e os músicos provenientes da classe trabalhadora são cada vez mais excluídos em termos financeiros. Como Dan Hancox nota in Inner City Pressure: The Story of Grime esta é uma tendência que tem vindo a proliferar desde o New Deal do New Labour, em 1998, ter excluído os músicos do subsídio de desemprego. O ano passado, o Sindicato dos Músicos apelou a um rendimento básico universal de forma a aumentar o financiamento público da indústria.
Como sugere Nick Srnicek em Platform Capitalism, as plataformas têm tendências monopolistas. Os seus “efeitos de rede”, através dos quais o valor aumenta com o aumento de utilizadores, significa que é quase impossível para as plataformas mais pequenas entrarem no mercado e competirem eficazmente. Quando uma plataforma de streaming se consegue estabelecer e tornar-se significativa, consegue colocar mais música no seu catálogo, levando a mais subscrições e, em última análise, a dados de utilizadores mais valiosos.
No início deste ano, um inquérito parlamentar ao mercado de streaming sugeria uma “reinicialização completa” deste e foi anunciado que a CMA (Autoridade da Concorrência e dos Mercados) irá lançar um estudo com base nessas recomendações. Porém, as tentativas de regulação de monopólios naturais são frequentemente ineficazes e tendem a reforçar os princípio neoliberais da competição, atomização e exploração.
A ação parlamentar tem sido forçada por apelos do Sindicato dos Músicos e da Ivors Academy [associação de compositores de música]. Nos Estados Unidos, o Sindicato dos Músicos e Trabalhadores Aliados também lançou a campanha “justiça no Spotify” em 2020, conseguindo mais de 4.000 assinaturas de trabalhadores da indústria musical e lançando várias exigências ao Spotify. Apesar da ação coletiva dos trabalhadores ser vital na luta contra as práticas de exploração das grandes empresas tecnológicas, isto só pode ser uma solução de curto prazo. Só poderá haver justiça quando a música sair da lógica do mercado.
Tem havido uma mudança recente em direção a plataformas mais justas – como a Bandcamp e a Resonate – ou o serviço de subscrições Patreon. Estas plataformas são mais benéficas para o artista e foram uma tábua de salvação para muitos durante a pandemia. No entanto, uma vez mais, são soluções de curto prazo que dependem dos artistas já terem uma base de fãs substancial para ganharem um salário decente. Os músicos continuam a expressar a sua frustração com os baixos pagamentos pelo streaming dos seus trabalhos no Bandcamp.
Para mudar o paradigma atual, devemos conjungar propostas de regulação com mudanças mais fundamentais, de longo prazo, na propriedade e no controlo das plataformas digitais. Um serviço de streaming financiado publicamente no qual a música seja vista como um bem público a ser acedido universalmente, de propriedade coletivo e controlado pelo povo democratizaria a indústria musical e criaria uma economia digital mais sustentável.
Como o Common Wealth escreve no seu relatório A Common Platform, as cooperativas digitais enfrentam frequentemente dois problemas. Primeiro, é difícil uma cooperativa atrair financiamento ético. Segundo, as cooperativas digitais ainda são dependentes do lucro e, desta forma, não separam a arte da mercantilização.
Semelhante ao advento de recursos culturais públicos – como bibliotecas, galerias de arte e arquivos públicos – um streaming comum seria uma plataforma pública, onde o financiamento do Estado substituiria o investimento de capital de risco. É importante que, sem algoritmo e controle das listas de reprodução, um streaming comum reduziria a desigualdade entre grande editoras e independentes, além de prevenir a vigilância e a mercantilização de dados. Através da democratização e da propriedade coletiva, os algoritmos podem-se tornar transparentes e responsabilizáveis, garantindo assim a privacidade e a proteção de dados de acordo com os desejos e necessidades do público.
O atual modelo de streaming não foi construído com os artistas em mento. Os interesses das grandes editoras corporativas, plataformas de streaming e capital de risco visam garantir que o sistema permaneça inalterado e satisfaça os seus interesses, enquanto a exploração dos artistas e a desvalorização da sua música continuam. Ao contrário da opinião de Rishi Sunak e do governo conservador, todos os músicos, comercialmente viáveis ou não, podem receber recursos adequados. A música não deve ser simplesmente conteúdo usado para vender publicidade para marcas corporativas: projetado para servir artistas, trabalhadores e público, um modelo de streaming cooperativo de propriedade comum resgataria o potencial radical das plataformas de streaming dos preços predatórios, do capitalismo da vigilância e da financeirização.
Charlie Bird é estudante na Universidade de Manchester.
Publicado originalmente na Jacobin. Tradução de Carlos Carujo para o Esquerda.net.