A integração europeia poderia e deveria ser um processo de cooperação entre iguais, gerador de convergência, de prosperidade partilhada, de erradicação da pobreza e de nivelamento por cima dos direitos sociais e laborais. A realidade, porém, é que a cooptação política e ideológica do projeto de construção europeia pelo neoliberalismo, especialmente a partir do Tratado de Maastricht de 1992, converteu a UE num espaço de divergência entre países e regiões centrais e periféricos, um espaço de erosão de direitos laborais e sociais e de escasso dinamismo económico.
As pressões mais intensas para o aprofundamento da distopia neoliberal têm ocorrido em três grandes domínios: a constitucionalização do liberalismo nas políticas comercial e industrial; a adoção de uma arquitetura financeira não democrática e que asfixia as famílias, empresas e economias mais vulneráveis; e uma camisa-de-forças de regras orçamentais com um viés pró-cíclico e que muito dificulta investimentos críticos em áreas como as respostas à crise da habitação ou à emergência climática.
Ainda assim, a última década demonstrou que muitas regras e constrangimentos que eram apresentados como inexoráveis podem, assim haja vontade política, ser suspensos, contornados ou mesmo derrogados. No contexto da pandemia, foi possível suspender as regras orçamentais do pacto de estabilidade e crescimento e as regras relativas às ajudas de Estado. No âmbito dos programas de compras de ativos iniciados sob a governação de Draghi, o Banco Central Europeu passou a comprar títulos de dívida soberana, contribuindo decisivamente para a queda dos juros pagos pelos Estados e para a sustentabilidade financeira destes últimos. No contexto do Plano de Recuperação e Resiliência – NextGenerationEU, a União Europeia passou a emitir dívida comum, concretizando na prática os eurobonds que durante tanto tempo foram tão categoricamente rejeitados.
O Bloco de Esquerda não tem ilusões quanto ao caráter iníquo e gerador de desigualdades de muitos dos elementos do processo de integração económica europeia tal como tem sido construído nas últimas décadas. Porém, estes elementos são uma realidade em permanente mudança, que pode e deve ser disputada politicamente. A tarefa à nossa frente é a construção de maiorias sociais que permitam abrir mais brechas na muralha neoliberal, dirigindo o projeto europeu no sentido de mais solidariedade, mais justiça social e mais espaço de efetivo desenvolvimento.
Inverter a desregulação, recuperar espaço de desenvolvimento
O mercado único europeu, a política de concorrência e os tratados comerciais assinados com outros países e continentes têm tido como princípios fundamentais a liberalização e a desregulação. Isso teve duas consequências principais, ambas da maior gravidade. Por um lado, a forte limitação dos instrumentos de política à disposição dos Estados para promoverem o seu processo de desenvolvimento. Por outro, o nivelamento por baixo de direitos laborais, o dumping social e ambiental e o aprofundamento da divergência entre centros e periferias, penalizando especialmente os trabalhadores, as classes populares e as economias mais vulneráveis da União Europeia.
Europa
“Se antes os países ainda recebiam empréstimos, agora só vão receber ordens”
A despeito da evidência do papel central das políticas públicas na qualificação produtiva dos Estados e da renovada centralidade da política industrial noutras grandes economias, a União Europeia continua apegada a uma visão firmemente liberal da política comercial e da política industrial, mesmo quando importantes grupos económicos e frações do grande capital europeu reclamam por mais intervencionismo e mais apoios estatais. As políticas industriais que o Bloco de Esquerda defende são outras, que não a concessão de benesses a esses grupos. O que defendemos é a recuperação de instrumentos e a intervenção estratégica no sentido da reorientação e requalificação da estrutura produtiva com vista à transição climática, à promoção do trabalho e dos seus direitos, ao reforço das comunidades e a uma maior justiça social. Para tal, propomos:
- o reforço significativo dos fundos e mecanismos de coesão regional e de apoio à transição justa;
- a suspensão alargada e permanente das regras relativas às ajudas de Estado de modo a voltar a dotar os Estados de instrumentos de promoção da qualificação produtiva;
- uma muito mais forte e exigente regulação da finança, limitando a mobilidade irrestrita do capital;
- a revisão dos tratados comerciais com países e regiões terceiras no sentido do reforço das salvaguardas laborais e ambientais.
A banca ao serviço dos povos
A arquitetura monetária e financeira da União Europeia tem problemas fundamentais que resultam de opções ideológicas regressivas tomadas ao longo do tempo e consagradas nos sucessivos tratados europeus. Em consequência dessas opções, a instituição responsável pelas políticas monetária e cambial e pela supervisão financeira num espaço constituído por duas dezenas de países e mais de 300 milhões de pessoas é um banco central não sujeito ao controlo democrático, que não responde perante o Parlamento Europeu, os governos ou os cidadãos europeus.
O Banco Central Europeu é problemático em virtude do seu mandato exclusivamente centrado no controlo da inflação, com todos os outros objetivos remetidos para segundo plano. Nisso, o BCE é até mais ortodoxo e regressivo do que outros bancos centrais comparáveis, como a Reserva Federal norte-americana, que possuem um mandato dual que os capacita para promover o nível de emprego a par da estabilidade de preços. É também problemática a proibição estatutária de financiar os défices orçamentais dos estados-membros, ainda que, desde a era Draghi, se tenha passado a comprar dívida soberana no mercado secundário, com isso contribuindo decisivamente para atenuar a insustentabilidade das dívidas soberanas de muitos Estados-membros, embora de uma forma menos eficaz do que o fizesse diretamente e com mais efeitos secundários em termos de hipertrofia da finança e aumento da desigualdade. E é ainda problemático por causa da impossibilidade intrínseca de responder com uma política única a circunstâncias que afetam de forma muito diferenciada os diferentes estados-membros.
No contexto da atual crise inflacionista, a resposta do BCE tem sido especialmente nociva, apostando no aumento das taxas de juro de modo a conter os níveis de consumo e investimento, induzindo uma recessão de modo a pressionar os preços em baixa. Essa opção, deliberada, é feita apesar do reconhecimento de que as origens da crise inflacionária tiveram a ver com fatores do lado da oferta: perturbações das cadeias de abastecimento na sequência da pandemia e dos confinamentos, depois os efeitos da invasão e guerra na Ucrânia e finalmente o aproveitamento pelas grandes empresas de setores oligopolísticos que aumentaram significativamente as suas margens de lucro. Nem isso impediu o BCE de aumentar as suas taxas de juro diretoras por dez ocasiões entre julho de 2022 e setembro de 2023, de modo a travar à força as economias europeias e em particular o crescimento dos salários.
A política de aumento das taxas de juro cria problemas especialmente graves para as famílias endividadas, como tantas pessoas em Portugal e por toda a Europa têm sentido de forma muito intensa no último ano. Em muitos casos, implicaram já o aumento para o dobro do montante das prestações dos empréstimos à habitação. É uma consequência socialmente injusta e cruel, que afeta especialmente as famílias com dívidas aos bancos numa altura em que já haviam sofrido uma erosão do seu poder de compra em resultado da inflação.
Penaliza também de forma especialmente intensa os contextos nacionais, como o português, em que a oferta pública de habitação é residual e em que a maior parte dos empréstimos são a taxa variável, indexados à Euribor – o que sucede em menor grau na maioria dos outros países europeus. As famílias trabalhadoras e das classes populares vêem-se assim confrontadas com um triplo embate regressivo e empobrecedor: perda de poder de compra por causa da inflação; redução brutal do rendimento disponível por causa do aumento dos juros e das prestações ao banco no caso de muitas delas; e risco de recessão, com implicações negativas potenciais para o nível de emprego e para a evolução dos salários.
Esta política é também fortemente prejudicial para o investimento, por encarecer o acesso ao crédito. Num contexto extraordinariamente exigente do ponto de vista das necessidades de investimento no combate às alterações climáticas, no reforço de serviços públicos, as escolhas do BCE entram diretamente em contradição com os próprios objetivos definidos pelas instituições europeias para o futuro da nossa economia.
Consciente dos riscos para o sistema financeiro da dinâmica recessiva que tem vindo a introduzir, o Banco Central Europeu procura superar a contradição manifestando a sua disponibilidade para intervir, sempre que for preciso e tanto quanto for preciso, no sentido de promover o resgate de instituições financeiras em dificuldades. Esta disponibilidade é, porém, totalmente discricionária e profundamente desequilibrada: resgata os bancos mas não as pessoas e comunidades; visa a consolidação de grandes grupos financeiros pan-europeus e não a justiça social, a eliminação da pobreza ou a promoção do emprego.
É necessária e possível uma alternativa progressista a esta arquitetura monetária e financeira e a esta asfixia das pessoas pela finança. Para tal, o Bloco defende:
- a reversão da política de juros elevados do Banco Central Europeu, removendo esta dinâmica recessiva autoinduzida e esta penalização adicional sobre as famílias;
- uma estratégia de controlo da inflação assente na preservação e valorização dos rendimentos dos trabalhadores, dos pensionistas e dos mais pobres, no controlo dos preços dos produtos essenciais e na tributação dos lucros extraordinários;
- o reforço do investimento público para promover os circuitos de abastecimento curtos, reduzir a dependência energética e superar os constrangimentos das cadeias de abastecimento essenciais;
- a reversão da estratégia contida na União Bancária de concentração das instituições financeiras em grandes grupos europeus que, ao tornarem-se demasiado grandes para poderem falir, tomam os Estados como reféns;
- o resgate da política monetária do controlo da finança, colocando-a sob controlo democrático, ao serviço do emprego e da justiça social, com possibilidade de atender às circunstâncias diferenciadas dos diferentes países e regiões.
Romper amarras orçamentais
Tal como já tinha acontecido com a crise financeira, a pandemia da COVID-19 veio demonstrar o caráter desadequado e contraproducente das regras de governação económica assentes nos critérios arbitrários do pacto de estabilidade e crescimento. O reforço da via disciplinar através do tratado orçamental apenas contribuiu para criar um quadro generalizado de incumprimento e aumentar a contestação as regras. Dos quadrantes e das instituições mais insuspeitas começaram a surgir críticas crescentes. Uma das mais sistemáticas foi feita pelo Conselho Orçamental Europeu, que advogou uma revisão das mesmas e defendeu a introdução de uma regra de ouro que protegesse o investimento público. As críticas às regras atuais assentam em três grandes áreas: a prociclicalidade, a proteção do investimento público e a legitimação democrática. A Comissão apresentou uma proposta de novas regras que afirmava resolver os três problemas. Não resolve nenhum e piora pelo menos dois.
O grande problema da prociclicalidade é o facto de as regras não incluírem um mecanismo de resposta a momentos de crise económica e às suas consequências orçamentais. Ao definir trajetórias de despesa, défice e dívida que têm de ser decrescentes e nem sequer permitem o backloading do ajustamento para que o mesmo se possa fazer através do crescimento, a proposta da Comissão visa consagrar na lei a lógica dos programas de ajustamento. A hipótese de as regras acomodarem respostas orçamentais contracíclicas continua de fora, mesmo na versão defendida pelo COE, que advogou uma regra de ouro, ou seja, a exclusão do investimento público do cálculo do défice.
Este é o segundo problema. Após meses de compromissos no sentido de criar regras amigas do investimento, que pudessem ser consistentes com os compromissos assumidos pela União no plano da transição verde e digital, da reindustrialização, do pilar social, as novas regras não prevêem nenhuma norma que proteja a despesa de investimento. Pelo contrário, a trajetória de referência é definida em função de um indicador fundamental, a despesa primária, líquida de estabilizadores automáticos, mas sem qualquer discriminação positiva da despesa de investimento. Esta opção terá duas consequências: 1) deprimir ainda mais o investimento público, por ser a despesa mais flexível e cujos resultados são mais projetados no futuro; 2) criar um enviesamento estrutural para que o ajustamento se faça através dos cortes nos serviços e políticas públicas.
Finalmente, a Comissão acenou com um reforço da legitimação nacional e democrática através de planos nacionais a quatro anos, que podem ser alterados quando as eleições nacionais produzirem alterações nos executivos. Infelizmente, também aqui, a realidade é muito diferente do publicitado. Os planos nacionais são elaborados tendo como base uma trajetória de referência proposta pela Comissão. Os Estados podem contrapor uma trajetória diferente, mas em caso de desacordo da Comissão ou do Conselho, a trajetória a seguir é a da Comissão. Um dispositivo colonial que reproduz a lógica dos programas de ajustamento em versão mais discreta e permanente.
A revisão das regras de governação económica foi uma oportunidade histórica desperdiçada, ou melhor, que foi antes aproveitada para reforçar o quadro disciplinar e arbitrário que já vigorava. A enorme margem de discrição que é dada à Comissão terá, naturalmente, efeitos bem diferentes em função da dimensão e peso político dos estados implicados. As regras não serão as mesmas para a França ou para a Grécia. Mas para Portugal, as notícias serão as piores. Contra estas regras orçamentais absurdas e iníquas, o Bloco de Esquerda defende:
- A exclusão do investimento do cálculo do défice;
- A rejeição da despesa primária líquida como indicador central da trajetória de referência;
- O abandono dos critérios arbitrários do PEC e o respeito pelas competências nacionais em matéria de definição da política orçamental;
- A definição de planos nacionais sufragados nos parlamentos nacionais e assentes numa lógica de sustentabilidade da dívida no médio prazo;
- A inclusão de objetivos sociais e ambientais nos planos nacionais de política orçamental;
- A tributação dos excedentes externos para reforço do orçamento comunitário, nomeadamente da política de coesão;
- O reforço do orçamento comunitário e da sua dimensão redistributiva.