EUA

Por que perdeu Kamala Harris

06 de novembro 2024 - 16:54

Para conquistar os eleitores da classe trabalhadora os democratas precisavam de atacar as elites económicas. Mas a campanha de Kamala Harris não ofereceu consistentemente um contraponto anti-elite ao populismo de direita de Donald Trump.

por

Milan Loewer

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Kamala Harris
Foto de Gage Skidmore/Wikimedia Commons.
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A Convenção Nacional Democrata, em agosto, foi unanimemente aclamada como um grande sucesso, apresentando uma frente unificada que se estendeu de Shawn Fain e Bernie Sanders a Adam Kinzinger e Leon Panetta. Ezra Klein viu um partido que finalmente “quer ganhar”. As vibrações eram boas, quase eufóricas. Nas últimas semanas, no entanto, Harris caiu nas sondagens e, a caminho do dia das eleições, muitos democratas passaram a sentir-se pouco confiantes.

O que é que se estava a passar? Uma sondagem de 1.000 eleitores da Pensilvânia, realizada pelo Center for Working-Class Politics (CWCP), a Jacobin e YouGov, mostrava que a campanha estava a caminhar na direção certa este verão. Também sugeria porque é que, apesar dos esforços de Donald Trump para alienar eleitores, a corrida continuava renhida.

No final de agosto, o historiador Eric Foner escreveu que os Democratas estavam a tentar fazer com que as eleições fossem sobre definições concorrentes de liberdade – sobre, como Tim Walz disse no seu discurso de aceitação, “a liberdade de fazer uma vida melhor para si e para as pessoas que ama”, contra a liberdade das corporações “poluírem o seu ar” e dos bancos “se aproveitarem dos clientes”. O presidente do sindicato UAW, Shawn Fain, foi ainda mais longe na convenção nacional ao nomear e culpar os vilões que se interpõem no caminho de uma vida melhor para os trabalhadores: “A ganância corporativa transforma o sangue, o suor e as lágrimas dos trabalhadores em recompras de ações de Wall Street e jackpots de CEO”, argumentou, acrescentando que Trump era um ‘fura-greves’ que protegeria os interesses das corporações e dos bilionários. Nesse mesmo mês, a campanha anunciou uma série de compromissos para resolver o problema da escassez de habitação, reprimir a manipulação de preços e aumentar o salário mínimo.

A nossa sondagem encontrou um forte apoio a este tipo de mensagens económicas populistas e uma antipatia generalizada pelos bilionários e pelas elites empresariais, especialmente entre os grupos eleitorais que Harris tinha dificuldade em atingir – membros de sindicatos, eleitores sem um diploma universitário e operários, nos quais Harris estava a perder por 4, 7 e 19 pontos, respetivamente, na nossa sondagem. Apesar destas constatações claras, Harris afastou-se das mensagens económicas anti-elite no último mês da campanha e recuou ou reduziu a ênfase em algumas das suas políticas mais populares em resposta à pressão da comunidade empresarial.

Os democratas decidiram, uma vez mais, fazer a aposta muito arriscada de que, ao atender aos eleitores moderados e com formação universitária, ganhariam mais apoio do que perdiam em deserções da classe trabalhadora. Até ao dia das eleições, apostaram a maior parte das suas fichas numa mensagem que alerta os eleitores para a ameaça que representa uma segunda presidência de Trump. Os resultados do nosso estudo indicavam tratar-se de uma aposta com um enorme efeito contrário.

Resultados inequívocos

Testámos cinco sound bites retirados diretamente da linguagem da própria campanha de Harris sobre 1) a proteção dos direitos ao aborto, 2) a segurança da fronteira e a criação de um caminho para a cidadania, 3) a ameaça que Trump representa para a democracia e as suas promessas de virar o sistema judicial contra os seus inimigos, 4) a “economia de oportunidades”, enfatizando o apoio às pequenas empresas e os cortes de impostos para a classe média, e 5) um discurso “populista suave” para lutar pelas pessoas comuns contra as corporações que se recusam a seguir as regras. Também testámos sound bites hipotéticos “populistas fortes” e económicos progressistas: a mensagem populista forte incluía uma promessa de fazer frente aos “vigaristas bilionários e aos políticos de Washington que os servem”, enquanto a mensagem económica progressista enfatizava o reforço dos sindicatos, a tributação das empresas e dos ricos e a expansão dos serviços sociais. Pedimos aos inquiridos que classificassem estes sound bites numa escala de 1 (fortemente contra) a 7 (fortemente a favor).

Os resultados foram inequívocos: os sound bites económicos populistas e progressistas fortes superaram as outras estratégias de mensagens por larga margem, seguidos pelas mensagens de Harris sobre “economia de oportunidades”, populismo suave, aborto, imigração e, por último, democracia. Considerando todos os inquiridos que deram a estes sound bites uma pontuação de cinco ou superior como “apoiantes”, as mensagens populistas fortes e progressistas económicas receberam 9 e 8 por cento mais apoio do que as mensagens democráticas. As mensagens populistas foram especialmente eficazes entre os inquiridos com baixos rendimentos, operários e sem formação universitária, recebendo 10, 12 e 13% mais apoio líquido do que a mensagem democrática.

Apesar de alguns desconfiarem do populismo económico, receando que este dissuada os eleitores “moderados” indecisos, cruciais do ponto de vista eleitoral, verificámos o contrário: o único outro grupo que demonstrou um apoio igualmente significativo foi o dos independentes, que respondem mais positivamente aos fortes discursos económicos populistas e progressistas do que aos discursos sobre a democracia, por cerca de 11 pontos.

Para examinar as compensações de diferentes estratégias de mensagens entre indivíduos, também analisámos o apoio relativo (em vez de líquido). Esta abordagem mais detalhada mostra que o sound bite populista forte obteve uma pontuação mais elevada do que o sound bite democrático entre 27% dos eleitores da Pensilvânia, enquanto apenas 8% atribuíram uma pontuação mais elevada ao sound bite democrático. A mensagem económica progressista é igualmente persuasiva, sendo que apenas o populismo forte se sai melhor a nível individual.

Os dados são ainda mais claros entre os operários e os independentes, entre os quais 37 e 31% preferem o populismo forte às mensagens democráticas, respetivamente, enquanto apenas 4 e 10% preferem as mensagens democráticas ao populismo forte.

Crucialmente, o populismo também teve um desempenho muito bom contra o sound bite da imigração, questionando a suposição de que a mudança de Harris para a direita na imigração atraiu com sucesso “moderados”. De um modo geral, apesar da escolha do populismo económico em detrimento de outras estratégias de mensagens envolver uma perda, esta é muito menos apoio do que o que se ganha.

É o povo contra a elite, estúpido!

A força das mensagens económicas populistas tem de ser entendida no contexto mais vasto de uma desconfiança crescente em relação às instituições políticas e económicas, especialmente entre aqueles que se sentem deixados para trás pelas mudanças sociais pós-industriais. Para os que chegaram ao topo, a nova economia do “vencedor que ganha tudo” produziu enormes fortunas e concentrações de poder, enquanto os que não se saíram tão bem – especialmente os operários – estão cada vez mais desiludidos com o status quo e pessimistas quanto ao futuro.

Mas não são apenas os eleitores da classe trabalhadora que sentem que o país está a ir na direção errada. Perante o aumento da desigualdade, a confiança no sistema político nunca foi tão baixa; menos pessoas do que nunca se identificam com qualquer um dos partidos; 70% dos americanos acreditam que interesses poderosos manipulam o sistema económico; apenas 40% dos americanos com rendimentos mais baixos acreditam que ainda é possível alcançar o “sonho americano”; e quase ninguém acredita que o país está “a ir na direção certa”. Neste contexto, não é de surpreender que a forte mensagem populista que testámos – que chama a atenção para “os vigaristas bilionários, as grandes empresas e os políticos de Washington que os servem” – tenha tido um desempenho tão bom junto dos cidadãos da Pensilvânia, e especialmente junto dos cidadãos da classe trabalhadora.

Para examinar mais pormenorizadamente as atitudes anti-elite, fizemos uma série de perguntas que medem as atitudes em relação a uma série de instituições e indústrias influentes. Especificamente, perguntámos aos inquiridos se estes grupos “contribuem para o bem-estar comum” ou se “servem os seus próprios interesses à custa dos americanos comuns”.

Concluímos que os “inimigos” tipicamente identificados no populismo de direita – tais como organizações de comunicação social, organizações sem fins lucrativos, universidades e sindicatos – não são objetos particularmente eficazes da ira populista. Em vez disso, os grupos menos populares na nossa sondagem foram os lobistas e os grandes doadores políticos, com 78% e 74% dos inquiridos a dizerem que serviam os seus próprios interesses à custa dos americanos comuns, respetivamente. Em todo o espetro político, os americanos concordam que a corrupção legalizada é corrupção.

Os inquiridos também colocaram uma série de outras elites no topo da sua lista de alvos: o “1%”, as grandes farmacêuticas, Wall Street e as grandes empresas de tecnologia são amplamente vistas como influências perniciosas na vida americana, seguidas pelas instituições políticas e governamentais, como os partidos e os funcionários públicos, cuja impopularidade é mais impulsionada pelos republicanos e independentes do que pelos democratas. É importante notar que a nossa sondagem mostra que independentes e inquiridos da classe trabalhadora são significativamente mais desconfiados em relação às elites. Aparentemente, conquistar estes grupos não requer uma posição mais “moderada” relativamente à ganância empresarial ou à corrupção legalizada.

A sondagem também sugere que um argumento contra as elites culturais e o sistema “woke” soaria oco ao pé de uma política que chamasse a atenção para os principais alvos da ira anti-elite: os lobistas, os doadores e as corporações que efetivamente manipulam o sistema. Por que razão, então, Trump tem conseguido o voto anti-sistema?

Desde que entrou na cena nacional em 2016, Trump tem-se apresentado como campeão dos americanos comuns, lutando contra um sistema antipatriótico. A narrativa trumpista coloca os liberais no controlo de muitas das instituições poderosas da vida americana – governo, lei, filantropia, media, universidades, indústrias de alta tecnologia, cuidados de saúde e até finança. Há algum elemento de verdade nesta narrativa e, enquanto os democratas se mantiverem ligados à política destas instituições poderosas e às classes profissionais que as povoam, Trump conseguirá refratar o sentimento anti-elite através de uma lente partidária e cultural. Ao cederem este território ao MAGA e ao não conseguirem articular uma política anti-elite sua, os Democratas permitiram que Trump reclamasse o manto populista, mesmo quando as suas políticas representam um enorme benefício para o poder corporativo.

Os democratas tinham uma batalha difícil: uma política de esquerda populista credível implicaria cortar os laços com algumas das elites, grupos de interesse e círculos eleitorais que têm vindo a cultivar desde a década de 1980. Isto não está isento de perdas mas custa ainda mais aos democratas não o fazerem.

Uma campanha à deriva

É claro que o Partido Democrata nunca iria sofrer uma transformação radical no decurso de uma única e muito truncada corrida presidencial. Mas a ganância das empresas e a manipulação dos preços foram um tema importante da campanha até setembro – e muitos dos representantes de Harris estavam a ir atrás da Big Pharma, dos lucros de Wall Street e do 1%. Nas semanas que antecederam as eleições, no entanto, a campanha tentou distanciar-se de tudo o que, mesmo remotamente, cheirasse a uma agenda económica anti-elite, recuando em compromissos anteriores relativos ao controlo dos preços e aos impostos sobre as mais-valias. Em vez disso, o New York Times relata que a campanha de Harris recorreu a amigos de Wall Street para obter estratégia de campanha e aconselhamento político, levando o bilionário Mark Cuban a declarar alegremente que os “princípios progressistas... do Partido Democrata... desapareceram. Agora é o partido de Kamala Harris”.

O “partido de Kamala Harris” tem muitas políticas. Desde o final de agosto, a campanha revelou um plano para não regulamentar as criptomoedas, estimulando um influxo de doações de campanha do setor. Eles lançaram uma Agenda de Oportunidades para Homens Negros, fornecendo uma série de incentivos fiscais e programas de empréstimo que capacitariam os homens negros a tornarem-se, entre outras coisas, investidores de blockchain, proprietários de dispensários de canábis, proprietários de pequenas empresas, professores de escolas públicas e participantes de “programas de mentoria” financiados pelo governo. As suas políticas económicas centrais subsidiariam novas pequenas empresas, expandiriam o crédito fiscal para crianças e rendimentos auferidos e proporcionariam benefícios fiscais aos compradores de casas de primeira geração que tivessem pago a renda a tempo durante dois anos.

Algumas destas políticas podem ser boas, mas é difícil perceber o que as une. Em vez de dizer às pessoas o que planeia fazer por elas, aqui e agora, Harris reavivou uma linguagem neoliberal e obsoleta de processo e movimento, de empurrões, incentivos e testes de meios, de “desenvolvimento de soluções” e “expansão de oportunidades” – uma série de melhorias incrementais para problemas que ninguém causou. Esta abordagem micro-direcionada combina bem com uma campanha que não tem uma posição clara em relação ao status quo, uma campanha que se contenta em contratar a sua política a consultores de Wall Street e ao complexo industrial dos think-tanks. Quando lhe perguntaram em que é que uma administração Harris seria diferente da administração Biden, respondeu: “Não me ocorre nada”, antes de voltar atrás e anunciar que planeava ter um republicano no seu gabinete.

Na medida em que a campanha de Harris teve uma narrativa abrangente, não foi a “liberdade” ou o facto de enfrentar as elites empresariais; foi Donald Trump e a ameaça que ele representa.

A campanha passou a semana que antecedeu o dia das eleições numa digressão pelo “muro azul” com Liz Cheney para cortejar os independentes e os republicanos moderados. Como diz a CNN, estes “eventos não se destinam a centrar-se em propostas políticas progressistas, mas sim em avisos sobre o que pode significar um segundo mandato de Trump”. A nossa sondagem sugere que esta estratégia foi um erro grave, uma vez que as mensagens sobre a ameaça de Trump à democracia têm resultados particularmente fracos entre os independentes e os republicanos moderados.

Tem o apoio líquido mais baixo entre estes grupos, e uma comparação do apoio relativo a diferentes estratégias de mensagens mostra que o sound bite sobre a democracia teve uma pontuação mais baixa do que a maioria dos outros entre 30% dos independentes e republicanos moderados. Recebeu mais apoio do que as alternativas populares entre apenas 10 a 15% dos independentes e republicanos moderados. Por outras palavras, as mensagens sobre a democracia são um perdedor em massa precisamente entre os grupos que a digressão Cheney-Harris estava a tentar conquistar.

Com a sua digressão pelo muro azul, Harris quase pareceu querer fazer o trabalho de Trump por ele. Ela estava a dizer aos eleitores: “Os especialistas de Washington e os bilionários razoáveis concordam que Trump é demasiado perigoso para ser presidente”, posicionando-o efetivamente como o inimigo de um sistema e de um status quo profundamente impopulares.

A escolha de futuro dos Democratas

Ao longo do último mês, o sentimento de possibilidade e otimismo após o DNC foi sendo eclipsado pela realidade da política do establishment democrata e por uma queda nas sondagens. A direção da campanha nas últimas semanas prejudicou Harris junto dos eleitores em geral, mas especialmente junto dos eleitores críticos da classe trabalhadora em estados como a Pensilvânia. De facto, dada a forma peculiar como as sondagens têm sido ponderadas neste ciclo, a classe trabalhadora foi ainda mais decisiva do que as sondagens sugeriam.

Embora a mensagem democrática de Harris não pareça ter sido eficaz junto dos eleitores, foi bastante eficaz a suprimir a dissidência da ala progressista do seu próprio partido, legitimamente aterrorizada com uma segunda presidência de Trump. Mantiveram-se em silêncio enquanto Harris seguia as sugestões dos dirigentes do partido, dos doadores e dos consultores de Wall Street sobre tudo, desde os impostos sobre as mais-valias até à Palestina. Mas o seu silêncio não favoreceu em nada a sua campanha.

O discurso de Harris sobre o aborto ainda dava alguma esperança parecendo ter sido bastante eficaz junto dos moderados e da base democrata. Além disso, o principal super PAC da campanha de Harris, Future Forward, tentou mudar a ênfase para questões económicas, registando uma surpreendente discordância pública com as mensagens de Harris centradas na democracia. Um dos seus anúncios mais vistos no dia das eleições contrastava os planos de Harris de reduzir os impostos para a classe média (possivelmente a sua posição mais direta e popular) com os planos de Trump de conceder benefícios fiscais aos bilionários.

Muita coisa está em jogo, uma segunda presidência de Trump representa, de facto, um perigo imenso para a democracia americana. Mas a viabilidade dessa democracia também depende da forma como os democratas resolverem a tensão no seio do partido: Serão o partido das classes mais privilegiadas e das elites empresariais, ou abandonarão os seus antigos aliados para defender os trabalhadores contra um sistema corrupto.


Milan Loewer é investigador no Center for Working-Class Politics e vive em Nova Iorque.

Texto publicado originalmente na Jacobin. O texto foi editado nos seus tempos verbais uma vez que foi escrito antes de serem conhecidos os resultados das eleições desta terça-feira. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.