Nos complexos do Penha e do Alemão, onde vivem mais de 150 mil habitantes, viveram-se esta terça-feira “cenas de guerra, execuções sumárias, violação de domicílios, impedimento de socorro a feridos e a total suspensão dos direitos mais básicos”, denuncia a Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro.
A polícia entrou nos bairros e disparou a matar. Cerca de 2.500 agentes da polícia civil e militar participaram nesta operação batizada de “Contenção”, que tinha por objetivo anunciado capturar lideranças criminosas e conter a expansão territorial do Comando Vermelho. 81 pessoas foram presas e 72 armas de fogo apreendidas. Quanto à contagem dos mortos, ela pode ultrapassar as 130 pessoas. Muitos dos corpos foram encontrados pelos moradores nas matas e levados para Praça São Lucas, onde ficou bem à vista a dimensão do massacre. A polícia confirmou na quarta-feira a existência de 119 mortos, entre os quais os quatro agentes policiais.
“Tanto essas execuções, quanto os policiais que morreram, tudo isso [são] marcos históricos que gritam a ineficiência da política de segurança pública do Rio de Janeiro. Ou, pior que isso, a eficiência dela, a forma como ela é desenhada, estruturada, pensada e aplicada para lidar com algumas vidas", afirmou Raul Santiago, morador do Morro do Alemão e um dos primeiros a noticiar o encontro com os corpos das vítimas da operação policial de terça-feira.
Também citado pela Agência Brasil, outro ativista que participou na retirada dos corpos, ntónio Carlos Costa questionou: “O que há de novo nesse massacre? Apenas a sua extensão, a quantidade de mortos… O que não há de novo é essa política de segurança pública, a destruição da vida do morador de comunidade. Quando ouvimos as respostas sobre a operação, ouvimos o que foi falado há 40, 50 anos atrás", lamentou o presidente da organização não governamental Rio de Paz.
O ativista diz que as causas do problema são conhecidas, mas as respostas necessárias não são dadas por ausência de vontade política, “ Porque quem morre são os moradores de comunidades e porque são eleitos homens que conseguem chegar aos mais altos postos com o discurso do ‘bandido bom é bandido morto’”.
A Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro (Faferj) repudiou o que chama de “massacre dos Complexos da Penha e do Alemão” e condena a política de segurança atual que apenas “aprofundou o abismo social, naturalizou a violência de Estado e perpetuou um ciclo de morte que só interessa ao projeto de extermínio da população pobre e negra deste país.” Para esta organização, a “segurança se faz com presença do Estado, não com invasão. Com políticas sociais, não com políticas de morte. Com vida digna, não com luto permanente”.
Governador bolsonarista fala em “sucesso” e diz que só os polícias são considerados “vítimas”
O governador do Rio de Janeiro, aliado de Jair Bolsonaro, reconheceu que a operação excedeu os “limites e as competências” do seu governo, mas prometeu ir ainda mais longe “na nossa missão de servir e proteger nosso povo”.
"Temos muita tranquilidade de defendermos tudo que fizemos ontem. Queria me solidarizar com a família dos quatro guerreiros que deram a vida para salvar a população. De vítima ontem lá, só tivemos esses policiais", afirmou Carlos Castro.
O governador queixou-se de que o seu estado está “sozinho nesta guerra” e defendeu a intervenção das Forças Armadas. Questionado sobre a razão de não ter pedido apoio federal, respondeu que os pedidos anteriores foram negados. O Ministério da Defesa confirmou que o pedido feito em janeiro para o empréstimo de veículos blindados foi analisado pela Advocacia-Geral da União, que entendeu que só poderia ser aceite se existisse um decreto presidencial de Garantia de Lei e da Ordem.
Por seu lado, o Ministério da Justiça e Segurança Pública deu conta das 178 operações levadas a cabo só este ano pela Polícia Federal no Rio, que resultou na apreensão de 10 tobeladas de drogas e 190 armas, além da transferência de 99 milhões de reais (15,9 milhões de euros) este ano do Fundo Penitenciário Nacional para o estado do Rio de Janeiro, que só usou pouco mais de um terço da verba. E dos 288 milhões de reais (46,25 milhões de euros) transferidos entre 2019 e 2025 do Fundo Nacional de Segurança Pública, pouco mais de metade da verba foi executada pelo governo estadual.
A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União já pediram explicações ao governador sobre “de que forma o direito à segurança pública foi promovido” nesta operação e se foram cumpridas as exigências do Supremo Tribunal Federal para reduzir a letalidade policial neste tipo de operações, por exemplo através da prévia definição do grau de força adequado, o uso de câmeras corporais e nas viaturas e a existência e publicação de um relatório detalhado da operação.
ONU “horrorizada” com massare no Rio de Janeiro
"Estamos horrorizados com a operação policial em curso nas favelas do Rio de Janeiro, que, segundo relatos, já resultou na morte de mais de 60 pessoas, incluindo quatro agentes da polícia”, escreveu o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) na sua conta oficial no X, acrescentando que "esta operação letal reforça a tendência de consequências extremamente mortais das ações policiais nas comunidades marginalizadas do Brasil".
"Recordamos às autoridades as suas obrigações ao abrigo do direito internacional dos direitos humanos e apelamos a investigações rápidas e eficazes", frisou o ACNUDH.
Numa declaração subscrita por 27 ONG de direitos humanos, entre as quais a Amnistia Internacional, Global Justice, Conectas e o Observatório das Favelas, as organizações acusam o governador de ser responsável por quatro das cinco ações mais letais da história recente no estado brasileiro, “superando seus próprios recordes anteriores registrados no Jacarezinho (2021) e na Vila Cruzeiro (2022)”.
“O que o governador Cláudio Castro classificou hoje como a maior operação da história do Rio de Janeiro é, na verdade, uma matança produzida pelo Estado brasileiro”, afirmam as organizações, recordando os números do Instituto de Segurança Pública que contabilizam nos últimos dez anos 5.421 jovens até 29 anos mortos em intervenções policiais.