Racismo estrutural

“Para combater alguma coisa é preciso reconhecer a sua existência”

07 de maio 2024 - 14:29

Os ataques violentos a imigrantes na sexta-feira no Porto relançam o debate sobre o racismo em Portugal. O Esquerda.net ouviu quem sente na pele as discriminações quotidianas decorrentes deste flagelo.

porMariana Carneiro

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Beja: Praça da escravatura moderna
Foto de Mariana Carneiro.

Nos últimos anos, são inúmeros os casos registados de discriminação e violência racista em Portugal. O assassinato brutal de Alcindo Monteiro, a 10 de junho de 1995, ainda ecoa na nossa memória, mas outras vítimas se foram somando, cujos nomes foram evocados no passado mês de março. 

No Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial, o Grupo de Ação Conjunta contra o Racismo e a Xenofobia de Lisboa promoveu uma concentração no Largo José Saramago, local onde deveria estar instalado o Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas, para homenagear as vítimas de violência racial e xenófoba em Portugal. Nesse dia, o Esquerda.net recolheu vários testemunhos sobre a expressão do racismo estrutural no país. Posteriormente, falámos com outros migrantes e pessoas racializadas, que sentem na pele as discriminações quotidianas decorrentes deste flagelo.

Alguns vieram do Brasil, de ex-colónias portuguesas em África, do Senegal ou do Nepal. Enquanto uns estão há poucos anos em Portugal, outros vieram para o país em tenra idade. Há quem tenha nascido em Portugal e não tenha sequer atravessado as suas fronteiras, mas continua a ser discriminado pela sua cor de pele.

“O racismo continua a fazer parte do nosso dia a dia”

Destes testemunhos ressaltou a convicção de que a violência racista é apenas a face mais visível de uma realidade quotidiana que relega para um estatuto de inferioridade as pessoas racializadas. Num país onde impera o racismo estrutural, herança do passado colonial português, abundam todo o tipo de discriminações, seja na área do emprego, educação, habitação, justiça, ou nas relações mais triviais.

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“O racismo continua a fazer parte do nosso dia a dia”, “o racismo está por todo o lado e é muito visível”, explicaram aqueles que se debatem com constrangimentos diários.

“Mediante a nossa cor da pele, a nossa origem, somos discriminados e apartados de alguns direitos consagrados na Constituição da República Portuguesa”, denunciaram.

“A cor da pele, a origem, o lugar onde moramos. Tudo serve para nos discriminar. Há um racismo estrutural que ainda perpetua várias violências contra várias existências”, referiu uma migrante brasileira, detalhando as discriminações diárias de que é alvo: “Somos alvo de discriminações quotidianas. O simples facto de eu ir a um banco ou ir a uma loja e ser perseguida por um segurança constantemente é exemplo disso. Ou de nunca conseguir vagas de trabalho a que me candidato quando existem outras pessoas não racializadas também interessadas nas vagas”. 

“Tentam invisibilizar-nos, guetizar-nos, remeter-nos ao silêncio”

Uma empregada de limpeza cabo-verdiana também nos falou sobre a discriminação sentida na pele: “Sentimos racismo em vários momentos. Quando tentamos alugar uma casa, e até na forma como falam connosco”. “Eu só sirvo para trabalhar e pagar impostos. Mas não tenho direitos”, acrescentou.

Uma jovem afro-descendente nascida na Amadora referiu esta mesma realidade: “Há pessoas que vivem segregadas da sociedade. Estão remetidas às periferias, em casas sem condições, com transportes que só são pensados para as levarem para o trabalho e depois de volta a casa. Tentam invisibilizar-nos, guetizar-nos, remeter-nos ao silêncio”.

“Diariamente, vemos que há trabalho invisibilizado, que é assegurado por pessoas com um tom de pele diferente. Essas pessoas vivem nas periferias, em casas muito mais degradadas”, reiterou um ativista moçambicano. 

A invisibilidade é também a condição a que está condenado um trabalhador nepalês que trabalhou na agricultura na zona de Beja até ser descartado, assegurando que vários produtos gourmet continuassem a encher as prateleiras dos nossos supermercados. Com rendimento mensal que não chegava ao salário mínimo nacional, apesar de o patrão determinar unilateralmente quando e como este deve trabalhar, vivia numa casa insalubre e sobrelotada. “Não tinha quase tempo para viver, só para trabalhar. E quando ia à cidade olhavam-me de lado, como se não tivesse valor nenhum. Só quero viver e trabalhar aqui”, afirmou.

Uma jovem de uma comunidade cigana dos arredores de Loures também denunciou a exclusão a que é condenada: “Não somos um povo sem história, somos um povo que foi privado de ter a sua história”. “Ninguém se lembra de nós. Somos abandonados constantemente, quer pelo Estado Social, quer pelos consecutivos governos”, detalhou.

O racismo nem sempre é explícito: “Há também um racismo disfarçado e envergonhado, o do ‘eu não sou racista, mas…’”, frisou ainda uma jovem estudante brasileira.

Um migrante guineense enfatizou, por sua vez, que “o racismo não se resume às conversas de café. É um racismo estrutural”. “As instituições continuam a reproduzir atitudes racistas através da Educação, através do sistema judicial, através de todas as instituições. E mesmo a comunicação social”, apontou.

“Para combater alguma coisa é preciso reconhecer a sua existência”

Ao mesmo tempo que a extrema-direita aposta na legitimação do racismo, Portugal continua a mostrar-se incapaz de enfrentar o seu passado colonialista e a alimentar um estado de negação que nos impede de dar um passo em frente.

“O racismo nunca foi desmontado em Portugal. Herdámos um sistema colonialista. Vivemos sob uma ditadura que criou uma cultura racista, uma cultura colonialista. Agora é preciso desfazer essa herança racista, e para isso não basta fazer uma lei e declarar que o racismo desapareceu”, alertou um jovem angolano.

Outro jovem afro-descendente acrescentou que “Portugal ainda não fez contas com o seu passado”. “Continuam a estar presentes resquícios do racismo porque lidamos com um passado não resolvido”, realçou.

“Não se reconhece que existe racismo. E para combater alguma coisa é preciso reconhecer a sua existência e, a partir daí, tentar perceber como podemos atuar”, advertiu, por sua vez, um trabalhador guineense de Almada.

Esta negação tem efeitos devastadores: “A negação mata, porque não nos permite enfrentar o problema do racismo. E os casos de violência motivados por ódio repetem-se”, indicou uma jovem são-tomense.

O "outro" como bode expiatório

As desigualdades são estruturantes para o capitalismo, delas depende a sua sobrevivência. Desigualdades essas que não são naturais, decorrem de construções de cariz social, económico e cultural que estratificam as pessoas. Assim se estabelecem relações de poder que subjugam aquelas a quem é reconhecido estatuto inferior. 

O racismo e a xenofobia servem o propósito de perpetuar as desigualdades. A ideia de superioridade justifica a exploração laboral, mas também outras formas de dominação e violência que recaem sobre as pessoas racializadas, sobre as pessoas migrantes.

“Uma das premissas do capitalismo é dividir as pessoas. E o racismo é uma dessas vertentes. E é muito mais fácil culpar os imigrantes, o outro, pelos problemas sociais que acontecem no país, em vez de os resolver”, explicou um ativista brasileiro.

Quem também continua a alimentar a onda das discriminações é a extrema-direita, que afasta as atenções da verdadeira raiz das desigualdades sociais, e se veste de anti-sistema: “Quando as condições de vida das pessoas se degradam, os movimentos populistas e racistas crescem. Porque eles aproveitam esse descontentamento e apontam o dedo a quem está numa situação ainda mais frágil”, denunciou um jovem guineense.

Neste contexto, o combate ao racismo é uma luta que “tem de ser coletiva” e que que nos deve mobilizar a todas e todos, defendeu.

Mariana Carneiro
Sobre o/a autor(a)

Mariana Carneiro

Socióloga do Trabalho. Mestranda em História Contemporânea. Ativista antirracista e pelos direitos dos imigrantes.