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Para abater o fascismo

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Na sequência do final da 2.ª Guerra Mundial, quando os fascismos, na Europa, desapareceram por imposição das democracias vencedoras do conflito, restavam dois regimes ‒ o de Portugal e de Espanha ‒ onde, declaradamente, se vislumbravam as marcas ideológicas do sistema de governação e de organização política italiano.
Com a fundação da ONU, baseada na Carta do Atlântico, entrou na ordem do dia a questão das descolonizações defendida tanto pelas democracias ocidentais como pela URSS. Dada a circunstância de Portugal ter visto boicotada, em 1946, a sua admissão por decisão da URSS e da Polónia, arrastaram-se conversações diplomáticas e a ditadura de António de Oliveira Salazar viu-se obrigada a fazer alterações à Constituição Política, maquilhando-a de democrática e, para fugir ao controlo da ONU sobre as colónias, regressou a um velho conceito constitucional da Monarquia, que consistia em considerar os territórios coloniais como extensão do território metropolitano. É evidente que esta habilidade, sendo aceite, não passou despercebida no Conselho de Segurança onde Portugal contava com o apoio dos EUA e do Reino Unido, para quem os territórios coloniais portugueses foram sempre uma moeda de troca diplomática para apaziguar conflitos europeus de grande envergadura. Pode dizer, sem receio de errar, que, com a entrada de Portugal na ONU, em 1955, e com a alteração constitucional transformadora das colónias em províncias ultramarinas, Salazar, sem disparar um tiro, havia aberto a porta a um grande conflito militar em África. Realmente, a guerra não começou em Fevereiro de 1961, mas no dia 14 de Dezembro de 1955.
A quase inexistente economia nacional, alicerçada ainda na agricultura feita com base na exploração de mão-de-obra barata, não permitia ao país dotar-se de material de guerra para além daquele que era oferecido pelos EUA, ao abrigo da adesão à NATO, o qual não podia ser desviado da Europa para África sob qualquer pretexto. Foi, contudo, a adesão à NATO que permitiu o surgimento, entre uma parte da geração de oficiais do Exército e da Força Aérea, que foi, entre 1948 e 1961, aos EUA aprender novas tácticas militares e novas técnicas de utilização do material de guerra cedido, permitiu, dizia, tomar contacto com um regime democrático bem distante daquele em que havia crescido e se havia formado. O pluralismo partidário e a consciência de que era possível conviver com a oposição sem a amordaçar fez nascer, em significativo número de oficiais, uma nova forma de estar dentro da ditadura fascista nacional. Esta foi a génese da primeira tentativa de solucionar o “problema” colonial, quando a guerra surgiu em Angola. Foi a chamada abrilada de 61 conduzida por oficiais generais que, até aí, se haviam mostrado indefectíveis defensores do salazarismo: queriam encontrar uma outra solução para o conflito africano que não passasse pelo uso das armas. Foi tremenda a ingenuidade destes homens, que se debatiam entre a fidelidade a um governante e a previsibilidade de uma guerra de desgaste que se iria eternizar. Não tinham absorvido a ideia de que a política colonial de Salazar passava pelo fim do regime. Naturalmente, foram substituídos nos altos cargos que desempenhavam dentro das forças armadas por outros mais dóceis e submissos ao fascismo.
Entretanto, em Dezembro de 1961, a União Indiana anexou o chamado Estado Português da Índia (Goa, Damão e Diu), levando à rendição a pequena força militar que guarnecia aqueles territórios, a qual ficou prisioneira em campos de concentração e completamente abandonada pelo Governo de Lisboa. Politicamente o regime fascista fez recair sobre os militares a responsabilidade da derrota, porque não se sacrificaram, morrendo, perante uma força imensamente superior. Esta foi uma lição para os cadetes da Academia Militar que se repercutiu no tempo por vários anos: o regime não era culpado de nada… sacudia a responsabilidade para as costas de outros: o governador-geral da Índia, general Vassalo e Silva, foi julgado e exonerado do Exército.
Foi a geração de cadetes da Academia Militar de 1960 a 1965 que marchou para África (Angola, Guiné e Moçambique), já alferes, tenentes e capitães, com a finalidade de garantir a continuidade da guerra; foi ela quem se apercebeu da impossibilidade de uma vitória militar, porque a questão colonial só tinha solução política; foi quem não quis ficar com o ónus da derrota militar na Guiné, quando o general Spínola deu, a Marcelo Caetano, como certa a impossibilidade de uma vitória. Vai ser essa geração de cadetes, então já capitães, que resolverá a questão ultramarina, pondo fim a um regime fascista cada vez mais endurecido por força do isolamento internacional a que estava a ser obrigado.
Toda a história tem o seu começo e também a do MFA o teve.
O tipo de unidade operacional mais eficaz, mas, também, mais completa na guerra de guerrilhas foi a companhia (cerca de cento e vinte homens) comandada por um capitão. Eram esses soldados que, sediados em zonas inóspitas, nos matos de Angola, Guiné e Moçambique, garantiam a presença portuguesa, mantendo, dentro do possível, os acessos terrestres livres de ameaça e, apoiando sanitariamente as populações das aldeias indígenas das cercanias, impediam-nas de serem cativadas pela ideologia dos guerrilheiros. Locais havia onde as companhias nem conseguiam sair dos precários aquartelamentos para captar água potável sem que fossem fortemente escoltadas tal era a pressão da guerrilha. Eram os chamados buracos. Ora, para manter este dispositivo e toda a parafernália logística que o alimentava eram necessários capitães e os do quadro permanente tornaram-se escassos, daí que o Exército se socorresse da mobilização forçada de tenentes milicianos que, mediante um pequeno curso prático, como capitães, colmatavam as faltas nas diferentes frentes de combate. Evidentemente, era um esforço que merecia ser compensado e, nada melhor do que publicar em 13 de Julho de 1973 o decreto-lei n.º 353/73, dando a possibilidade de, mediante a frequência de dois semestres lectivos na Academia Militar e mais dois nas respectivas escolas práticas das armas, ingressarem no quadro permanente com a antiguidade que tinham de tenentes milicianos. Em resumo, estes oficiais iam, de uma penada, ultrapassar nas promoções aos postos superiores todos os capitães do quadro permanente que haviam frequentado quatro anos de curso na mesma Academia. Tal facto constituiu um dos rastilhos para motivar os capitães do quadro permanente em serviço na metrópole e nas colónias a entrar em ruptura com a hierarquia militar e o Governo. Mas, antes, houve outros.
Com efeito, de 1 a 3 de Junho de 1973, ocorreu no Porto o congresso dos combatentes que, pelo tom nacionalista e ultra-patriótico, visava consagrar a guerra colonial como solução do problema africano. Daqui nasceram motivações individuais e colectivas que se foram pulverizando à medida que as semanas passaram até à saída do decreto-lei 353/73. Mas, buscando mais fundo, temos o III Congresso Democrático de Aveiro, que teve lugar entre 4 e 8 de Abril de 1973, participando nele alguns oficiais na situação de activo que, percebendo o valor e alcance das conclusões, vieram a ser elementos fundamentais para activar os subsequentes acontecimentos já relatados.
O caldo de cultura para dar início à conspiração estava criado: havia motivações políticas e profissionais que aglutinavam os capitães. Todavia, não se pode nem conseguem, nem, talvez, seja importante marcar o momento em que a conspiração começou, pois, tanto na Guiné, como em Portugal e em Moçambique houve núcleos conspirativos que juntaram ou por razões políticas ou por motivos profissionais todos quantos estavam descontentes com a situação. Em Bissau, em Agosto, reúnem-se alguns capitães com declarado intuito conspirativo e, no dia 9 de Setembro de 1973, juntou-se um significativo número de capitães, alguns tenentes e alferes, no jardim junto ao templo de Diana, em Évora, que, segundo as instruções de Vasco Lourenço, partiu de imediato para o local da reunião no Monte Sobral, em Alcáçovas, Alentejo.
Estes dois momentos marcaram o começo da acção conspirativa com matriz política. Os próprios intervenientes, conscientes da importância do acto, baptizaram-no de Movimento dos Capitães. Entretanto, no Club Militar Naval, em sucessivas reuniões, já há meses, se debatiam questões políticas e militares com uma conveniente neutralidade dos oficiais da Marinha mais antigos e mais graduados.
Em 24 de Novembro, em S. Pedro do Estoril, houve a primeira grande e alargada reunião que incluiu já outros oficiais de graduação superior à de capitão. Foi a intervenção do tenente-coronel Luís Banazol que espoletou a ideia, que já estava definida na cabeça dos capitães, ao afirmar que o governo só cairia a tiro e cabia às forças armadas fazê-lo.
Daqui para a frente foi essencial, em segredo, constituir as comissões necessárias para pôr em marcha toda a conspiração de modo organizado e estendida ao máximo possível de unidades militares da metrópole.
Da Guiné e de Moçambique pressionava-se para que o Movimento dos Capitães pusesse na rua, o mais breve possível, a revolução. Em Lisboa deliberava-se com cautela e faziam-se planos. Tudo estava em organização e todos receavam qualquer iniciativa por parte dos ultra salazaristas, em especial do general Kaúlza de Arriaga.
O general Kaúlza Oliveira de Arriaga.
Marcelo Caetano, no dia 5 de Março de 1974, discursou na Assembleia Nacional e deixou claro que não haveria desistências na guerra colonial. Nesse mesmo dia, à noite, em Cascais, reuniram-se cento e noventa e sete oficiais que ratificaram a criação do Movimento das Forças Armadas (MFA), pois estava garantida a neutralidade da Força Aérea no momento da revolta. Desse dia em diante foi o tempo de preparar as ligações entre unidades, estabelecer a ordem de operações e garantir que as comunicações rádio e telefónicas não iam falhar e definir os alvos a serem neutralizados para fazer cair o regime, definir o programa do MFA.
Uma precipitação com origem no general Spínola, que nunca aceitou ser testa de ferro do MFA, a 16 de Março, fez sair sobre Lisboa o regimento das Caldas da Rainha que foi interceptado à entrada da capital. Os responsáveis pelas diversas comissões do MFA, discordando da iniciativa, souberam, contudo, tirar dela as respectivas ilações, aperfeiçoando a ordem de operações.
Com cerca de vinte e quatro horas de antecedência foi estabelecido que o dia para sair a revolução era a madrugada de 25 de Abril. Contava-se com a força de carros de combate comandada pelo capitão Salgueiro Maia, proveniente de Santarém, com a força de infantaria saída de Mafra, um pequeno grupo de oficiais da Força Aérea que ocuparia as instalações do Rádio Clube Português e de outras companhias de infantaria que dariam protecção, no Parque Eduardo VII, às operações no quartel-general da Região Militar de Lisboa, outros em Porto Alto para garantirem a posse das antenas da Emissora Nacional, para além das tropas de Administração Militar que ocupariam as instalações da RTP, no Lumiar, e a colaboração de um único capitão piloto-aviador que sozinho tomou de assalto a torre de controle do aeroporto de Lisboa e determinou a interdição do espaço aéreo nacional. De Vendas Novas saiu uma bateria de artilharia que se posicionou junto à estátua do Cristo-Rei, em Almada. No Norte marcharam unidades sobre o quartel-general de região militar. Toda a movimentação militar era coordenada pelo major Otelo Saraiva de Carvalho, autor da ordem de operações, a partir do regimento de engenharia, na Pontinha. Foi o chamado Posto de Comando. Organizadamente as forças armadas souberam cumprir os compromissos que, com legitimidade, haviam assumido.
O fascismo caiu ao fim da manhã de 25 de Abril de 1974, sem feridos nem mortos. O entusiasmo popular fez o resto que já não competia aos militares.
Almada, 6 de Setembro de 2023
* Luís Alves de Fraga - Coronel da Força Aérea (Reformado), Doutor em História e Antigo Professor da Universidade Autónoma de Lisboa.
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